Tom Zé aparece de terno e segurando uma mala de couro na mão. Gil com o kaftan indiano, Gal Costa de penteado caipira, e os Mutantes ostentando guitarras elétricas, enquanto Rogério Duprat segura um penico como quem toma uma xícara de chá. Caetano, de calças vermelhas, sustenta um retrato de Nara Leão. E logo ali, do lado direito da cena, está Torquato Neto – pernas cruzadas, relaxado e sério. 

Essa é a icônica capa do disco Tropicália ou Panis Et Circenses. Lançado em 1968 e considerado um “disco-manifesto”, foi o marco do início desse movimento, por reunir um grupo que ia contra as tendências tradicionalistas, que exaltavam o samba e a bossa-nova e recriminavam o rock inglês e as influências estrangeiras. Ousados e inovadores para a época, eles acreditavam na mistura de todos esses ritmos, criando algo que Torquato e Gil denominaram de “geleia geral brasileira”. 

O fato é pouco conhecido, mas partiu de Torquato a ideia de lançar um disco apresentando o trabalho coletivo, “misturando separadamente” suas influências e talentos. Era o embrião do que seria o álbum, coordenado por Caetano Veloso que escolheu o repertório e destacou o caráter-manifesto do grupo no texto da contracapa, uma espécie de roteiro cinematográfico em que os personagens são os próprios tropicalistas travando um diálogo irreverente e sem nexo. No papo, aparecem referências totalmente destoantes, como Celly Campelo, João Gilberto e Pixinguinha.  

Antes do desfecho fonográfico, no entanto, e enquanto a imprensa divulgava o burburinho dessa reunião artística, Torquato, como articulista de jornal e crítico – ele foi a voz forte dessa geração de artistas na imprensa – já explicava a que vinha o grupo, em muitos artigos, que lhe dão um caráter de importante ideólogo do movimento. Em um dos textos, “Tropicalismo para os principiantes”, o poeta anunciava as diretrizes, o nome e atribuía funções para cada um dos integrantes. Para ele, a palavra-símbolo fugia dos “ismos”. “O certo é Tropicália. Devemos evitar os ismos, pois não se trata de mais uma escola como as anteriores. Ela vai se autodestruir antes que algum mal lhe aconteça”.  

Apesar da pretensão do movimento, Torquato se arriscava a descrevê-lo como uma brincadeira. E previa, falhando: “A moda não deve pegar (nem parece estar sendo lançada para isso), os ídolos continuarão sendo os mesmos – Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. E o verdadeiro, grande tropicalismo estará demonstrado. Isso, o que se pretende e o que se pergunta: como adorar Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar Superbacana? Como achar Fellini genial e Pierrot Le Fou e não gostar de Zé do Caixão? Por que Mariaashi Maeschi é mais místico que Arigó?” , questionava.

“Tropicália ou Panis Et Circenses” é lançado em maio de 1968, pela Philips, com doze faixas – Torquato assina “Geleia Geral” e “Mamãe coragem”, ambas em parceria com Gilberto Gil. Fato curioso é que a música “Tropicália”, escrita por Caetano Veloso naquele ano, ficou fora do disco. A utilização de teclados e guitarras elétricas na composição das músicas e os arranjos mais agressivos de Duprat causaram descontentamento do público mais conservador – havia no grupo a intenção assumida de promover uma mudança radical nos valores estabelecidos até ali, influenciados pelas artes plásticas de Helio Oiticica, pelo teatro de Oswald de Andrade e o cinema de Glauber Rocha.

“O certo é Tropicália. Devemos evitar os ismos, pois não se trata de mais uma escola, como as anteriores. Ela vai se autodestruir antes que algum mal lhe aconteça” – Torquato Neto

Convidado pelo maestro Duprat, de quem era amigo, o fotógrafo e cineasta Olivier Perroy recebeu o grupo de artistas em sua casa, em São Paulo, para fazer a foto do disco. Em entrevista à Revestrés, por e-mail, ele relembra os acontecimentos: “Todos queriam um cenário tropical kitsch, e ficamos parte do dia recortando palmeiras e bananeiras em cartolina colorida e papel crepom”, relata. “No fim ninguém gostou”.

O grupo acabou escolhendo como cenário uma parede vitraux art nouveau que havia na casa do fotógrafo. “Na última hora, já eram duas e meia da madrugada, Duprat decidiu que queria posar com um penico na mão”, conta Perroy. “Ele correu na casa de uma tia velha e de lá trouxe o objeto que usou na cena”.

A ideia era fazer uma paródia das fotos de famílias, encomendadas, onde todos posavam com seriedade e afinco, quase que interpretando seus papeis. Ao mesmo tempo, segundo os críticos, remete à capa do clássico “Sgt Papper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles.

“A foto acabou sendo feita quase cinco da manhã”, relembra o fotógrafo. “O ambiente foi se formando anturalmnte, como se fosse uma criação coletiva, todos numa boa”. Nara Leão e Capinam, que não puderam ir no dia do registro, aparecem emoldurados em fotografias que foram acrescentadas em montagem posterior – a imagem ganhou tratamento gráfico do artista Rubens Guerchman. “Essa foto acabou tornando-se um emblema do tropicalismo, até hoje eu não entendo porque”, prossegue Perroy. “Acabou ultrapassando de maneira incrível o significado de uma capa de disco e continua sendo um mistério para mim”.

O disco foi considerado pela revista Realidade como o mais importante daquele ano, em resenha que dizia: “Em todas as faixas mostra que em matéria de música, letra, mensagem, arranjo e originalidade, o grupo tropicalista está à frente de todos os outros compositores brasileiros”.  Mais de 40 anos depois de seu lançamento, ele ficou em segundo lugar na lista dos 100 maiores discos da música brasileira, feita pela revista Rolling Stones – a Tropicália consagrou-se como um movimento vivo que resistiu ao tempo, contrariando as expectativas de Torquato.

Tropicália – liberdade para ser e acontecer

O movimento Tropicália teve sua origem sustentada por quatro marcos principais, todos ocorridos em 1967: a exposição “Tropicália, manifestação ambiental”, de Hélio Oiticica, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril; a estreia do filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, em maio; a peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, encenada em setembro pelo Grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa e, por fim, as participações de Caetano Veloso e Gilberto Gil no 3º Festival de Música da Record, em outubro, interpretando as músicas “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, que traziam uma nova linguagem e inaugurava a guitarra elétrica na MPB.

“A cultura brasileira é toda calcada na Europa e América do Norte, num arianismo inadimissível” – Hélio Oiticica.

Os pesquisadores e críticos do assunto são unânimes em afirmar que não se trata apenas de um novo estilo musical – isso seria reduzir o movimento, que, na verdade, difundiu uma nova atitude crítica e espalhou influências para todas as artes. Tudo isso construído da mistura de um forte sentimento nacionalista e da influência da Semana de 22 – era latente a necessidade de se criar uma nova linguagem, incorporando valores e novas influências culturais. Vale lembrar que o contexto era um Brasil de ditadura militar, com convergência de interesses que misturavam as ideias de teatro, das artes plásticas e da música do grupo baiano.

Para Toninho Vaz, biógrafo de Torquato Neto, a exposição de Hélio Oiticica em abril de 1967 foi o grande marco da Tropicália – algumas instalações criadas pelo artista misturava elementos do cotidiano urbano com plantas tropicais, e foram batizadas com este nome, Tropicália. Um mês antes disso, em texto para a revista Nova Objetividade, o autor explicava a obra: “A cultura brasileira é toda calcada na Europa e América do Norte, num arianismo inadimissível aqui. Quis criar com a Tropicália o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo. Só o negro e o índio não vieram com a cultura europeia. Quem não tiver consciência disso que caia fora”.

A palavra-chave, então, era liberdade: liberdade para criar, ser e acontecer. O “Terra em Transe”, de Glauber, já trazia sua contribuição, com imagens carnavalizadas de um país imaginário e caótico. Ainda em 1967, os discos de estreia de Caetano e Gal Costa (“Domingo”) e também Gilberto Gil (“Louvação”), seriam gatilhos inspiradores para o ensaio do manifesto que viria em seguida. Os dois discos apresentavam, ao todo, cinco canções escritas por Torquato Neto, aos 22 anos.

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Matéria publicada em Revestrés #33 – edição especial Torquato Neto.

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