Estava com olhos de correnteza. Assim como a mãe da narradora de Olhos d’água. Ali, parecia se perguntar: cadê Marielle?, remetendo o auditório ao modo interrogativo que costuma ritmar seus contos. A escritora Conceição Evaristo foi uma das representantes das vozes femininas da literatura brasileira no Salão do Livro de Paris, ocorrido entre 16 e 19 de março último, no Parque de Exposição de Versalhes, na capital francesa.
Referência na literatura feminina negra lusófona, fortemente engajada na luta contra o preconceito racial e de gênero, Evaristo estava porém em pausa de esperança. Lembrava ao público, na ocasião, que sempre se apoiara na mensagem deixada pelos escravos que fugiam. A fuga para o quilombo, contava ela, era mais um ato de resistência que uma certeza de libertação, dado o alto risco de captura. Nesse caso, a consequência da fuga aplicava um agravante à condição do cativo: o de tornar-se um escravo que já fugiu.
«Sempre pedi para a gente se apegar a essa certeza quilombola», diz. Mas aos 71 anos, ao ver sucumbir pela violência uma mulher na idade de ser sua «filha», que teria provavelmente «uma carreira política promissora, que se afirmava como uma mulher política, o que é muito raro na sociedade brasileira», a escritora se diz em desalento. A dor ia assim pontuando de reticências as frases: «O que vemos acontecer com Marielle Franco… por mais que eu me esforce… há três dias não digo mais a palavra esperança », desabafa a escritora.
O brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (Psol), ocorrido no Rio de Janeiro dias antes do Salão do Livro, marcou a intervenção brasileira no evento, que homenageava nessa edição a “Escrita Feminina”. Crime político? Crime de gênero? Crime racial? A história responderá em pouco tempo. Evaristo, por sua vez, teme pelo silêncio. É que “as mais velhas, como eu, depositavam suas falas na fala da Marielle”, lamentou a escritora, que lançou este ano na França Insubmissas lágrimas de mulher (Insoumises, Éditions Anacaona).
Fato é que, silenciada a voz de Marielle, assistiu-se a seu ressurgimento em milhões de marielles espalhadas mundo afora, solidarizadas com a perda e a clamar por justiça. Como se, em um texto, a voz narrativa se disseminasse por todas as personagens, uníssonas: Basta! Reunindo também nomes como Ana Maria Machado, Lídia Jorge, Guiomar de Grammont e Adriana Calcanhotto, a presença brasileira esteve envolta por uma reivindicação: a necessária investigação e revelação dos autores do crime, exigência constante na fala dos participantes.
Se a batalha de Marielle era por incluir na narrativa política o ponto de vista da mulher negra, a de Conceição Evaristo é a de incluir o ponto de vista feminino e negro na literatura. Um gesto também político. Lembrando que “a voz textual não é de geração espontânea”, a escritora explica que ao criar a voz textual de seus escritos o sujeito autoral é a mulher negra, oriunda de classes populares, que foi professora primária, que tem uma filha especial, que experimentou a pobreza e que enfrenta até hoje o racismo. “Eu não me desvencilho desse corpo negro: é esse corpo que provoca um olhar de acolhimento ou um olhar de interdição, que constrói a minha subjetividade”, desenvolve.
A travessia de Conceição Evaristo se distingue daquela feita comumente pelas escritoras brasileiras que alcançaram reconhecimento. Nascida na favela de Pendura a Saia, na região Sul de Belo Horizonte, mudou-se para o Rio no final dos anos 1960, ainda muito jovem. Buscava melhorar a vida da família, composta por uma fratria de nove crianças. Trabalhou como empregada doméstica até tornar-se professora primária. “Quando vou ficcionalizar uma doméstica, eu ficcionalizo de dentro”, explica. Para ela, uma pessoa branca também pode criar, e “com muita competência”, uma personagem doméstica. Mas isso será feito, a partir de “um outro lugar”, completa, como ocorre às vezes com as domésticas de Clarice Lispector, cuja qualidade não cabe, obviamente, questionar.
A escrita feminina “ainda está buscando modos de visibilidade, disputando campos de leituras.
No caso de Conceição Evaristo, o que brota dessa subjetividade é acolhido pela mulher, negra, inscrita numa realidade, como numa política afirmativa que se erguesse contra a interdição. Referindo-se àquelas que não veem especificidade feminina, nem uma especificidade negra na literatura, a escritora considera que um aspecto inconsciente pode determinar essa recusa. “Nossa subjetividade é formada numa sociedade extremamente machista, patriarcal”, diz, concluindo que isso pode resultar em interdições. Em cerceamentos. Por que George Sand – pseudônimo masculino da francesa Amantine Lucile Aurore Dupin, romancista do século XIX – apresentava-se como homem e não como mulher?, questiona Evaristo. Porque “havia uma interdição”, responde. Por que essa dificuldade em se afirmar como mulher, incluídas as diferenças?, provoca.
Para a autora de Ponciá Vicêncio, a escrita feminina “ainda está buscando modos de visibilidade, disputando campos de leituras”. Se se considerar que as escritoras brancas, no Brasil, só começam a ter uma visibilidade no período do Modernismo, com as mulheres negras, compara a escritora, essa é uma conquista “muito mais recente”. Muito embora, ressalta, o primeiro romance abolicionista brasileiro tenha sido escrito por uma mulher, Maria Firmino dos Reis (O Abolicionista, 1887).
Disputando campos
Quando se fala em escrita feminina, raciocina a romancista, supõe-se também uma disputa entre mulheres brancas e homens brancos para terem seus discursos reconhecidos. Quando, porém, se fala de uma escrita feminina negra, tem que se saber que está se falando de uma disputa com o homem branco e com a própria mulher branca, analisa. “Enquanto mulher, temos uma condição que nos une, enquanto condição social, estamos em outro patamar”, conclui.
A grande maioria dos prêmios literários no Brasil se destina a homens, em detrimento das mulheres escritoras. Muito menos vai para as mulheres negras.
Uma pesquisa realizada pela professora Regina Dalcastagné (Universidade de Brasília), cita a escritora, revela que a grande maioria dos prêmios literários no Brasil se destina a homens, em detrimento das mulheres escritoras. Nesse contexto, destaca, “muito menos vai para as mulheres negras”. Agraciada em 2015 por Olhos d’Água (Pallas), Conceição Evaristo é a primeira mulher negra a obter o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas. O prêmio foi criado em 1959.
Uma diferença é afirmada: “nossa maneira de ser acolhida no mundo, fator que marca nossa subjetividade, reflete-se na escrita”, sustenta. O que gera incompreensão, ressalta, é que ao afirmar-se essa diferença, deduz-se uma hierarquização de valores, que na verdade inexiste. “Não estamos falando aqui de mais feio ou mais bonito”, diz. Mas de uma diferença, conclui. “Minha experiência como mulher negra pode influenciar minha escrita de uma maneira diferente, distinguindo-a da escrita de Ana Maria Machado, por exemplo”. Se Machado traz para seu texto a experiência dela como mulher branca, evocando o “feminismo branco”, compara Evaristo, a escritora Esmeralda Ribeiro traz a experiência dela como mulher negra, conduzindo à noção de “feminismo negro”.
Ela explica que ao se esforçar em minimizar em seus textos os efeitos da contaminação com o estereótipo literário da mulher negra, espera criar um “contradiscurso”. E enfatiza: “Eu não quero criar uma Rita Baiana (O Cortiço, de Aluísio Azevedo) ou uma Gabriela, Cravo e Canela (Jorge Amado); quero criar personagens que se aproximem o mais possível de mim ou que eu me aproxime o mais possível dela, ou que se aproxime o mais possível da minha mãe, da minha tia ou da minha comadre que morou ali ao lado”, exemplifica.
A escrita feminina negra, completa, apoia-se no vivido. A experiência de uma mulher branca em determinados espaços, suas vivências emocionais e afetivas “diferem totalmente da minha experiência como mulher negra nesses mesmos espaços”. Essa vivência perfilando o escrito é base da noção de “escrevivências”, termo trabalhado pela escritora, que atualmente é professora visitante do Departamento de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (Ufmg).
(Publicada na Revestrés#35 – março-abril de 2018).