Travessia, devastação e morte são temas de “Nada”, “Vazio do lado de fora ” e “Gabriel e a montanha”, filmes que representaram o Brasil na 70ₐ edição do Festival de Cannes, ocorrido em maio último, na Riviera Francesa. Dirigido por Gabriel Martins, “Nada” foi um dos dez curtas-metragens da Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do evento. Com 26 minutos de duração, o curta a trajetória de Bia, adolescente que às vésperas do Enem (Exame nacional do Ensino Médio) ainda não decidiu qual curso pretende escolher. Interpretada pela rapper mineira MC Clara, a adolescente é toda recusa e enfrentamentos. Chegada a hora da decisão, ela escolhe “fazer” nada.

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A adolescente Bia é toda recusa e enfrentamentos: chegada a hora da decisão, ela escolhe “fazer” nada | “Nada”, direção de Gabriel Martins

Ela encarna uma geração, aquela que ao concluir o ensino médio corre o risco de ser tragada pelo recente indicador que agrupa jovens entre 16 e 29 anos, os “nem, nem nem” – nem estuda, nem trabalha nem procura emprego –, população que até bem pouco tempo inexistia para as estatísticas. Mas Bia tem a música. E parece agarrar-se a isso. O diretor mineiro Gabriel Martins, porém, não vê “necessariamente” otimismo no filme. “Os conflitos entre a personagem e o mundo ainda estão lá”, contesta. O filme expõe “um paradoxo presente no cotidiano de todos nós”, diz Martins, “explicando que a geração de Bia vai propor novas formas de olhar o mundo mas vai ao mesmo tempo lidar com novos problemas e conflitos”. Classe C, Bia está convencida de que diploma não agrega. Se Jéssica (“Que horas ela volta”, Muylaert, 2015), classe D com brio, fez a lição de casa com Bourdieu, a protagonista de “Nada”, que não acredita tampouco em ascensão via consumo, é só desconstrução.

Apostando na dualidade do mundo, visto por Martins como “um duelo constante de forças opositoras”, o filme faz convergir em Bia o “ataque”, quando recusa o que está posto, e o “contra-ataque”, trazido por outras forças femininas, mulheres que já estão voltando. Bia está indo. Nessa viagem, atravessa o luto de um patriarcado carcomido que se foi e, embora sem perspectivas aparentes, sabe que cabe a si encontrar outro modo. Crê em si e no destino pelo qual pode pagar na rodoviária. Sábio, Martins, protege sua protagonista. Mas sem afagos. Provoca, em vez disso, nos minutos finais, um confronto com o duplo da garota afrodescendente, que deixa categórico recado. “A solução disso não sabemos nunca pois cabe a ela decidir”. O diretor, que é formado pela Escola Livre de Cinema de Belo Horizonte, diz ter buscado o “elogio” à protagonista, joga todas as fichas “em um futuro construído inicialmente mais por mulheres que por homens”, apregoa.

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“Vazio do lado de fora”: as filmagens aconteceram em meio à intervenção dos tratores que raspavam do caminho tudo que pudesse atrapalhar o projeto de modernização da Cidade Maravilhosa para as Olímpiadas | “Vazio do lado de fora”, direção de Eduardo Brandão Pinto

“Vazio do lado de fora”: as filmagens aconteceram em meio à intervenção dos tratores que raspavam do caminho tudo que pudesse atrapalhar o projeto de modernização da Cidade Maravilhosa para as Olímpiadas | “Vazio do lado de fora”, direção de Eduardo Brandão Pinto

A devastação pessoal da protagonista de “Nada” ecoa também nas personagens femininas de “Vazio do lado de fora”, o outro curta brasileiro presente no evento. Dirigido por Eduardo Brandão Pinto, o filme inspira-se na remoção enfrentada em 2016 pelos moradores da Vila Autódromo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Segundo conta o diretor, eram principalmente mulheres que estavam à frente da luta contra a desocupação. Elas contavam, afirma BP, que as remoções eram acompanhadas de diversas formas de violências cometidas pela prefeitura e empreiteiras, que iam desde estourar canos e criar zonas insalubres a perseguições fiscais aos comerciantes locais. Com isso, tentava-se “podar a vida” destruindo áreas comuns, que tinham uma importância afetiva para os moradores”, conclui.

O tema da remoção foi ganhando corpo à medida que o filme ia sendo finalizado mas “as decisões estéticas que íamos tomando me levaram a perceber que nosso problema não era exatamente a remoção de uma comunidade, mas a devastação de um território, algo mais abrangente e do qual a remoção é uma parte”, analisa. Foi percebendo então, detalha o realizador, que não se tratava de um processo exclusivo da Vila Autódromo e de outras comunidades que sofreram remoções : o Rio de Janeiro inteiro enfrentava essa violência, “consequência das especulações, da produção de capital, dos grandes espetáculos”. A mudança repentina do trajeto dos ônibus, o esquadrinhamento das praças por tapumes e a cohabitação constante entre pedestres, tratores e andaimes numa mesma calçada foram outras formas de violências sofridas pela cidade nos meses que antecederam as Olimpíadas. Embora as comunidades removidas tenham sido as mais atingidas, ressalta BP, a “devastação territorial” afligiu a todos.

A estetização dos territórios devastados nesse filme, cuja fotografia é assinada por Ana Galizia, não retira dessa ficção seu aspecto documental, que vai do tema à incorporação no elenco de personagens reais representando na tela a própria história. As filmagens aconteceram em meio à intervenção dos tratores que raspavam do caminho tudo que pudesse atrapalhar o projeto de modernização da Cidade Maravilhosa para as Olímpiadas. Embora dispusesse de um roteiro prévio, a realidade impunha-se levando a equipe a “se relacionar ficcional e documentalmente com o que estava sendo criado”, lembra BP. A interferência se dava inclusive nas cenas em que havia diálogos e em planos nos quais a movimentação das personagens exigia marcação rigorosa.

Como ocorre nas produções documentais, a realidade, aqui representada principalmente pelos tratores invadindo frequentemente o plano, intervinha moldando a ficção. A solução encontrada foi compor com essas duas dimensões: “que esses elementos que não podíamos controlar jogassem a favor da composição de quadro que queríamos obter; que a marcação dos movimentos pudesse acolher um trator que surgisse no fundo de quadro”, especifica. Para BP, havia uma urgência de demolição e esse aspecto se materializava nos pedaços de parede do que teria sido um quarto ou um banheiro misturados a um resto de sabonete e um lençol encontrados entre os escombros. A devastação tinha pressa. Por outro lado, pondera, também “circulava uma energia de luta e de reinvenção que dava fôlego ao processos criativos”.

Selecionado entre 2.600 concorrentes de 14 países nos quais estiveram representados três continentes o curta de BP – que se formou no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense – integrou a lista da 20ₐ edição da mostra competitiva da Cinéfondation, uma mostra paralela à Mostra Oficial, que reúne trabalhos de conclusão de curso de estudantes de cinema.

Ao encontro do outro

Alinhado ao cinema de Jean Rouch (“Eu, um negro”, 1958 ou “Crônica de um verão”, 1961, em parceria com Edgar Morin), BP afirma que busca em seus filmes o mesmo motor de seu documentarista de referência: “a curiosidade pelo outro”. O diretor explica que para Rouch – criador da vertente de filmes etnográficos Cinema Verdade e cujo centenário de nascimento é celebrado este ano –, o filme permite ao espectador e ao realizador conectar-se com o desconhecido, com experiências vivenciadas pelo outro”, explica o diretor. Ele lamenta que o interesse por esse tipo de cinema no Brasil esteja se tornando “raro”, principalmente nos espaços de formação, onde vigora “a prerrogativa de que só devemos filmar aquilo que já experimentamos, que é parte imediata de nossa experiência corpórea e social, que se restrinja ao “lugar de fala” de quem realiza o filme”.

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Morto por hipotermia abraçado no chão à câmara fotográfica, Gabriel registrou de certo modo a própria morte | “Gabriel e a montanha” direção de Fellipe Barbosa

Como o curta de BP, o filme “Gabriel e a montanha” também parte de uma situação real e resulta de uma viagem de encontro ao desconhecido. Por ter como cenário a Africa e incluir pessoas que representam a si mesmas, também acena de certo modo para o estilo de Jean Rouch. Dirigido pelo carioca Fellipe Barbosa, o longa-metragem tenta reconstituir o último trecho de um giro pelo planeta feito por Gabriel Buchmann, amigo do diretor. Antes de iniciar seus estudos numa universidade americana, o carioca Buchmann, interpretado pelo ator João Pedro Zappa, realiza o sonho de atravessar o mundo e, após dez meses viajando por diversos países, aporta ao continente africano: Tanzânia, Quênia, Nambia e o Monte Mulanje, seu destino final.

Concorrente na mostra competitiva paralela Semana da Crítica, cujo júri foi presidido este ano pelo cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, “Gabriel e a montanha” obteve o prêmio revelação France 4 – que recompensa um primeiro ou segundo filme – e o Prêmio Fondation Gan à la diffusion, que visa a colaborar para a distribuição do filme. Esse é o segundo longa de Barbosa, que também dirigiu “Casa Grande” (2014) e é mestre em cinema pela Universidade de Columbia.

O filme de Barbosa reconstitui a antecâmara de uma tragédia. Por entregar logo na primeira sequência o desfecho desse rito de passagem à vida adulta interrompido, evita o suspense, que seria grotesco. Infelizmente, a dignidade dessa escolha acaba sendo neutralizada porque cada objeto que cai ou se perde, ou ainda passeio que não se cumpre, torna-se, retrospectivamente, um índice da fatalidade que se tenta reconstituir. A procura por marcas de previsibilidade da morte é comum na fase do luto. Há certo impudor, porém, em mostrá-la na tela porque revela um aspecto íntimo demais daquele que se foi.

Mais do que vivenciar o luto, o diretor de “Gabriel e a montanha” diz que procurou entregar ao amigo a aceitação da própria morte. Esse gesto simbólico se revela na inserção, nas sequências finais, das últimas fotos feitas por Gabriel. Morto por hipotermia abraçado no chão à câmara fotográfica, Gabriel registrou de certo modo a própria morte. Mostradas em ordem temporal decrescente, indo da mais desfocada, provavelmente ultima imagem vista por ele, à mais nítida, as fotos são o contra-campo de uma agonia. Relacionadas à foto após os créditos em que Gabriel surge em túnica massai portando o cajado que ganhou no batismo, essas imagens pontuam o renascimento de Gabriel como espírito da natureza selvagem das estepes africanas.

(Matéria publicada na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)