Um corpo com vestido cor de rosa estirado no chão , de frente para a parede e de costas para o público. Ao seu lado, um livro desgastado e uma vela acesa em cima de um pires. As luzes se apagam. O corpo se levanta e começa a falar.
O título já advertia que ninguém sairia ileso dali aquela noite: “Impossível estuprar esta mulher cheia de vícios”, performance inspirada no capítulo homônimo da obra “Teoria King Kong” (2006), de Virginie Despentes. Quando demos conta, estávamos entregues à história de duas adolescentes estupradas por três caminhoneiros. O monólogo nos leva a um ambiente completamente angustiante e real: existem mulheres, elas são estupradas e nós somos coniventes.
Atônitos, seguimos atentos, acompanhando a performance em carne viva. Fernanda Silva entrega-se ao texto e ao público. Suas expressões revelam o desespero de muitas mulheres que são culpabilizadas pelas próprias agressões sofridas diariamente. A artista fala com o corpo sobre todas as agonias e terror das mulheres – arrasta-se no chão, como quem se esforçasse ao máximo para reunir forças; esconde-se na própria sombra refletida na parede; e deita-se no chão, contorcendo-se, aninhando-se em si mesma, até chegar à posição fetal.
Mas é preciso dar às mulheres o direito a correr o risco de serem violadas – confidencia em algum momento. Já sem esperança, reconhece que o estupro, quando faz parte da realidade de uma mulher, jamais se desvencilha de sua própria história e do que a mulher é. “O estupro, ao mesmo tempo em que a desfigura, também a constitui”, denuncia por fim, invadindo sem cerimônia o peito dos presentes. A vela é apagada. A performance de Fernanda se encerra. O público permanece alguns segundos em silêncio como se tentasse ainda digerir aqueles pesados e infinitos minutos. Logo após, aplaudem, constrangidos.
Fernanda Silva é intensa e destemida dentro e fora do palco. Ao nos encontrarmos, desata a falar sem precisar de um guia ou um ponto de partida. Mas pensa com cuidado nas palavras a serem ditas e emociona-se quando recorda o que passou até reconhecer-se como artista parnaibana, índia e transgênero.
O retorno foi difícil e doloroso. “Como eu volto para uma cidade sem uma vida?
Ela entrega-se ao teatro como se essa fosse sua única razão de existir. E de fato é. Há dezessete anos anunciou que ia deixar a profissão de artista e partiria para São Paulo, morar com um de seus irmãos e viver como uma trabalhadora comum. Na época, espalhou cartazes em Parnaíba, sua cidade natal, e avisou que faria a última apresentação da sua vida. Um ano depois, em 2002, arrependeu-se da decisão e voltou para o Piauí. “Não imaginava que a cidade fosse sem fim. Voltei para Parnaíba com a sensação de total fracasso”, confessa. Durante esse tempo longe, teve contato direto com a discriminação por ser quem é, e com os dissabores da distância – dentro da cidade e do peito.
O retorno foi difícil e doloroso. “Como eu volto para uma cidade sem uma vida? É como se eu tivesse culpa por ter desistido de uma vez, por ter deixado de ser artista para ir ser empacotador de supermercado. Por que eu desisti? Por que deixei isso tão claro? Por que eu quis bradar tão fortemente?”, fala pausadamente, como que esbarrando na memória ainda tão forte e recente. Depois de alguns meses sabáticos, percebeu que jamais poderia ter deixado o teatro – era ele sua forma de ser e agir no mundo. Se fosse de fato preciso recomeçar, era por ali, era novamente pelo corpo e pela arte.
Dois anos depois, veio o baque. “Em 2004 eu fiz o teste de HIV e deu positivo. Meu mundo caiu outra vez. Como eu ia lidar com isso?”. A descoberta aponta para um reinício igualmente angustiante, mudando sua forma de ver o outro e observar o mundo. “Durante um ano fiquei aguçando minha escuta sobre o que eu sabia sobre Aids e percebi um silêncio sobre essa pandemia. Apesar de ser assintomático, eu tenho receio da vitimização por ser soropositivo. A condição de estar com HIV provocou uma rachadura”, confessa.
Fernanda também passa a sentir mais o próprio corpo e a tatear mais delicadamente a vida. Outra vez, o teatro foi o equilíbrio. Enquanto seguia, questionava-se sobre as formas como estava transitando seu corpo no mundo. Inconscientemente, preparava-se para transbordar e romper em si mesma, dez anos depois. “Em 2014 eu tomei coragem. Comprei minhas primeiras roupas e passei a habitar essa condição de Fernanda Silva. Eu sai do masculino por pura inadequação. E comecei a ter outras memórias”.
Durante 35 anos a artista identificava-se como Fernando, o professor de teatro parnaibano, referência para novos artistas, formado em Pedagogia, filho de pai pescador e mãe lavadeira. “Esses anos foram importantes porque permitiram que a Fernanda perfurasse a história. É como se tivesse sido uma preparação imperceptível. Foi o tempo que ela ganhou para ver uma brecha a tempo não se fechar completamente”, justifica-se, referindo-se a si mesma em terceira pessoa e completa: “Então ela surgiu exuberante, com muita alegria, sem se dar conta da violência que iria querer abafá-la”.
Esses acessos foram negados quando eu me permiti entrar na condição de mulher, do feminino. Por que eu tinha que me esconder? Por que o espaço público me era negado?
Toda a sua vida até ali foi renegada. “Minha primeira dificuldade foi não ser aceita nas ruas. Isso era chocante. Quando era Fernando, eu transitava todos os espaços, era o diretor, artista, intelectual, conhecido. E esses acessos foram negados quando eu me permiti entrar na condição de mulher, do feminino. Por que eu tinha que me esconder? Por que o espaço público me era negado? Isso é aterrorizante”, angustia-se. As reações fizeram com que buscasse ajuda psicológica e emocional. “Mas novamente foi a arte que ressurgiu como uma ponte para eu retomar a vida, reconstruindo outro senso de realidade que incorporasse a minha identidade de gênero”.
Ao mesmo tempo em que Fernanda começava a ocupar os espaços, ela se dava conta da linha tênue que unia o lugar de ser mulher com as violências sofridas. “Tudo que eu leio sobre violência contra mulher é exatamente como estar lendo sobre a violência contra mim. Foi esse o olhar que me tomou”, afirma. Esse olhar foi importante para a artista dar vida a performances como “Impossível estuprar esta mulher cheia de vícios”.
Mesmo convicta de que tem que continuar com a arte para não desistir da vida, Fernanda questiona o seu lugar de artista, quatro anos depois de assumir sua travestilidade. “Como é que eu permaneço nesse lugar do artista profissional, exibindo no bom sentido o meu pensamento e a minha vontade, formas de agir e estar no mundo, sendo que nesse mundo, agora, além de artista, me atrito com ele sobre o respeito?”, e acrescenta: “Antes eu não tinha que pedir respeito”.
A performance viva em cartaz
Quando Fernanda acompanhou pela primeira vez a Via Sacra, principal espetáculo religioso de Parnaíba, encantou-se com a efervescência do teatro ao ar livre. Adolescente, aventurou-se em cursos de teatro, arriscou escrever peças para seleções locais e, com 17 anos, fundou o Grupo de Teatro Metáfora que, dez anos depois tornou-se um Galpão, com endereço fixo, mantendo suas atividades há 24 anos. “Todas as gerações de teatro em Parnaíba passaram por uma formação feita por mim”, afirma.
Com o grupo, atualmente composto por artistas como Nathanael Sousa, Salatiel Gonçalves e Shawene Gonçalves, foram produzidas peças importantes, com destaque para: “A casa das sombras” (1996), “The Lady Macbeth – uma performance errante” (2015) e “Uma pequena dança para Penélope e seu cachorro” (2016).
Mas o contato com a arte vem de antes. Na infância, a artista dividia seu tempo entre a pesca com o pai e o circo de palhaços dos irmãos. “Eu era o mais novo de sete irmãos, sendo uma mulher cis. Meu pai desde o começo já via que eu não sabia controlar a canoa e remar. E meus irmãos, conhecidos como ‘Irmãos Silva’ tinham um circo que funcionava no meu quintal. O circo está sempre no meu subconsciente e me fascina eternamente”, revela.
Em 2017 a performance “Involuntários da Pátria” fez com que a artista se apresentasse na 26ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes do país, e vai levá-la ainda este ano para Portugal. O trabalho, inspirado no texto homônimo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, foi criado no espaço Campo Arte Contemporânea, em Teresina, em parceria com a gestora cultural Sônia Sobral. Ele permitiu que Fernanda fizesse outras descobertas e adquirisse um tato mais aprofundado com o teatro e com o seu próprio corpo, que seguem em sintonia. Preparando a respiração, como se estivesse prestes a entrar em cena, declara: “Eu penso na arte como um respiradouro – é bem aqui que tu respira melhor e da conta do devir”.
Fernanda Silva prefere ser identificada como uma artista do corpo. “Meu corpo é um trânsito atravessado por uma identidade de gênero. Os questionamentos levados para o meu trabalho artístico são reflexões que podem se dar com o corpo inteiro: o corpo está sensível, o corpo ser um processo aberto da própria vida, ou ser a vida”. E finaliza: “Parnaíba vai ter que me engolir”.
(Matéria publicada em Revestrés#35 – março-abril de 2018).
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