Era fim de tarde na Rua Coelho de Resende, zona Sul de Teresina. Da casa dos pais de Torquato Neto, familiares, amigos e admiradores seguiram em cortejo até o Cemitério São José – percurso que cruzava a Avenida Frei Serafim e dobrava à esquerda na Avenida Miguel Rosa. Da chegada ao aeroporto Petrônio Portela, às 14h30, ao sepultamento, às 19h, centenas de pessoas prestaram pêsames e se despediram do poeta. 

 

A essa altura a notícia da morte já estava em todos os jornais locais da época: A Hora, O Estado, Jornal do Piauí e O Dia. De capa a artigos esportivos: todo mundo escreveu alguma coisa. “Os jornais abriram manchete para o acontecimento. Torquato era muito querido dentro da imprensa piauiense”, relata Paulo José Cunha, jornalista e primo de Torquato. “Todas as rádios passaram a tocar as músicas dele, com intervenções de radialistas, parentes e amigos”.  

A composição “Pra dizer adeus” foi a preferida de veículos como A Hora e Jornal do Piauí para se referirem ao fato. “Adeus / Vou pra não voltar / E onde quer que eu vá / Sei que vou sozinho”, dizia o poema musicado por Edu Lobo e cantado por intérpretes como Elis Regina. “Teve pelo menos duas abordagens nos jornais: o fato da morte e a chegada dele como artista conhecido, parceiro de Gil e Caetano”, conta George Mendes, publicitário, primo e responsável pelo acervo do artista.  

Foto | Acervo Torquato Neto

Os jornais O Dia e O Estado dedicaram espaços generosos ao assunto. O primeiro publicou, na íntegra, poemas e composições de Torquato, indicou a repercussão do fato em veículos nacionais e destacou a recepção na cidade, tendo sido também motivo de nota na coluna social de Elvira Raulino. Além disso, frisou projetos que pretendia realizar como o filme pouco ou nada conhecido “Idade, Cidade Verde”. “Deste projeto nada sabemos de concreto – porém acreditamos que não o realizou ou deixou-o por incompleto”, dizia artigo do dia 11 de novembro.   

O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Revista Veja dedicaram páginas a Torquato Neto.

Por sua vez, o jornal O Estado deu a colunistas e convidados a missão de registrar essa memória. Textos e homenagens de Ary Sherlock, Claudete Dias e Noronha Filho relembraram poemas e composições, parcerias e o estilo vanguardista de Torquato, além do próprio acontecimento, mencionado como de impacto nos meios artísticos e sociais de Teresina. Até a página de Esporte ganhou artigo: O Botafogo de Torquato Neto. 

Mas nem tudo se resumiu aos limites geográficos do Piauí. O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Revista Veja foram alguns dos veículos de alcance nacional que dedicaram suas páginas a Torquato Neto. Tendo sido redator do Correio da Manhã e do carioca Última Hora, no qual manteve a coluna Geléia Geral, Torquato teve, neste último, crônicas e colunas dedicadas a ele como a do jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli, relembrando o dia em que foi ao seu casamento.  

Lembrado pelo tipo magro, cabelo comprido e barba, em sua coluna Teorema, o jornalista Raul Giudicelli recorda as ocasiões em que o jovem poeta escrevia em mesa de frente para a sua na redação de Última Hora. “No bar, lá embaixo, algumas caipirinhas nos aproximaram”, conta. “Deu-me um sorriso alegre, acenei-lhe e saí. E não o vi mais. E nunca mais o verei. Li o que os jornais escreveram e estão escrevendo sobre ele. Que era bom – isso me afirmam os colegas de redação. Que era bom músico e poeta – aí estão suas músicas. Que era casado, tinha um filhinho e parecia feliz com eles – isso todos sabem”, escreve perguntando-se sobre tudo e lamentando a morte do colega.

Jornal do Brasil e O Globo foram outros dos jornais da Guanabara que destacaram o fato, evidenciando sua trajetória artística. Enquanto o Jornal do Brasil o definiu como “teórico do movimento tropicalista” e “artista de nosso tempo”, com destaque para sua atitude desafiadora em composições como “Mamãe Coragem”, e enquanto ator no filme “Nosferatu no Brasil”, de Ivan Cardoso; o jornal O Globo relembrou suas parcerias, os lugares onde morou e colaborações para jornais cariocas, chamando-o de “um baiano do Piauí”.

Os demais veículos Brasil afora não deixaram esquecer. Na seção de datas, a Revista Veja, marcou o acontecido em seu obituário, juntamente com informações de seu trabalho. Já a Folha de S. Paulo referiu-se ao trabalho de Torquato como “obra poética e musical de valor” e o destacou como “um dos mais ativos participantes do movimento musical tropicalista”.

Escorpião encravado na própria ferida

Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1972. Torquato liga para amigos, convidando-os para saírem em comemoração ao seu aniversário de 28 anos. Lena Rios, Renato Piau, Luiz Otávio Pimentel, entre outros amigos encontram-no ao longo do dia para tomar chope, bater papo e passear entre os bares do Rio, tendo Ana Maria, esposa de Torquato, se juntado ao grupo somente no fim da tarde. Já eram 4h da manhã quando decidem voltar aos seus apartamentos. As notícias e relatos da época dão conta que Ana Maria e Torquato conversaram até as 5h30 da manhã e, assim que ela deitou-se para dormir, ele se trancou no banheiro. Vedou todas as frestas, ligou o gás e se foi.

Porém, não sem antes deixar uma mensagem. Ao lado do corpo, foi encontrado um caderno espiral do tipo escolar onde usa frases entrecortadas, letras desiguais no qual estava escrito por último: “Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o THIAGO. Ele pode acordar”. Torquato foi encontrado às 7h30, do dia 10, pela Gal, a Maria das Graças, babá de Thiago, que ainda chamou duas ambulâncias – mas já era sem jeito. Teve ainda velório na manhã do dia 11 na capela Santa Teresina para, em seguida, ser conduzido ao Aeroporto do Galeão. No Rio, a família ajudava nessa transição, como os tios Áurea Dulce e Vital Araújo, este último também perito criminal, que se deslocou de Teresina para providenciar a liberação do corpo.

Ele era o letrista mais incrível. Mas, apesar de muito louco, não fazia nada que não fosse premeditado” –  Ivan Cardoso, para a Revista Manchete.

“Eu morava em Brasília. Estudava jornalismo e estava numa sala de aula da UnB quando Durvalino Couto Filho, que morava na mesma república que eu, foi me informar que ele havia morrido. ‘Torquinha partiu, Paulo’, lembro até hoje de como Duda se referiu a Torquato, de quem havia se tornado amigo”, conta Paulo José Cunha, que correu ao aeroporto e embarcou, coincidentemente, no mesmo voo em que estavam Ana, a viúva de Torquato, e seu tio Vital. “O velório foi feito na casa de tia Salomé. Muita gente compareceu ao local, pessoas atraídas muito mais pelo inusitado do acontecimento – o suicídio de uma pessoa conhecida – do que propriamente pelo conhecimento dele e de sua obra”.

Enquanto uma parte da família providenciava o translado do corpo, a outra parte, que tinha sido avisada da notícia no dia do fato, aguardava sem maiores comunicações. “Foi exatamente no dia em que eu concluí o curso ginasial. Às 9h da manhã, minha mãe me encontrou no colégio Diocesano, chorando, para me dizer que tinha havido uma tragédia e que o Torquato Neto, provavelmente, estava morto”, conta George Mendes.

Incompreendido, Torquato Neto queria ir além. “Ele era o letrista mais incrível. Cultivava o lado do artista maldito, que morre cedo. Mas, apesar de muito louco, não fazia nada que não fosse premeditado”, disse, à epoca, Ivan Cardoso à Revista Manchete. “Torquato era do signo de escorpião, o signo dos que não temem a morte. Depois que o artista se mata, a gente junta a obra dele e descobre o seu lado negativo, que já estava nele há muito tempo”.

De maldito a mito?

Inquieto, contestatório e transgressor, Torquato Neto nutria uma relação de dualidade com os lugares pelos quais passou. Enquanto que em “Marginália II”, ele e Gilberto Gil compuseram o refrão “Aqui é o fim do mundo / Aqui é o fim do mundo”; com a mesma parceria em “A Rua”, Torquato se derrete: “Ê Parnaíba passando / separando a minha rua / das outras, do Maranhão / (…) ê minha rua meu povo”.

Filho do promotor público Heli da Rocha Nunes e da professora Maria Salomé da Cunha Araújo, Torquato foi criado para ser diplomata, mas seguiu a carreira de artista e jornalista. “A juventude naquele tempo estava vivendo esse momento de reviravolta, de luta por liberdade em todos os sentidos. E quem fugia da tradição, é claro que tinha algum tipo de rejeição”, comenta George Mendes. “Talvez alguns representantes do melhor conservadorismo tivessem restrições a ele. E é natural que assim fosse. E Torquato, com aquele cabelo grande, aquelas batas e aquela postura contestatória, em plena vigência da ditadura militar, chocava os extratos mais conservadores da sociedade teresinense”, completa Paulo José Cunha.

Por esse modo de ser, ele recebia olhares atravessados, com direito a ter sua entrada barrada em baile do Jóquei Club do Piauí, à época, clube restrito aos membros da alta sociedade. “Tem uma dose grande de realidade, mas também tem uma pitada de exagero”, diz George Mendes sobre o rumor. “Todo cabeludo naquela época – não precisava ser extravagante – ou era maconheiro ou era doidão. O evento de ter sido barrado é verdade, mas qual a importância disso? Quem conheceu como entrava no Jóquei sabe que precisava de uma carteira de identificação ou o porteiro olhava para sua cara e lhe reconhecia. Então, não barrou o Torquato, barrou um cabeludo…”, declara.

Lembrado pela contribuição dada à Tropicália, o túmulo de Torquato Neto é visitado no Cemitério São José, na zona Norte de Teresina. “Mas o mais visitado mesmo é o do Gregório”, diz Carlito Rodrigues, administrador do cemitério, referindo-se ao motorista Gregório Pereira dos Santos, torturado e assassinado em 1927, cujo túmulo é visitado por cerca de 500 pessoas por ano, grande parte em busca de milagres. “O de Torquato não passa de 300”, afirma. A maior parte destes visitantes são estudantes universitários e pesquisadores.

“Sabia-se que o Torquato tinha uma inconformidade muito grande. Ele queria, muitas vezes, aquilo que não podia ter, queria mais, queria ser cidadão do mundo”, diz George Mendes.

Na letra de Marginália II, Torquato Neto deixa registrado: “Meu sonho desesperado / Meu bem guardado segredo / Conheço bem minha história / Começa na lua cheia / E termina antes do fim”.

Matéria publicada em Revestrés #33 – edição especial Torquato Neto.

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