A profissão de escritor está em transformação. Se antes ele podia se isolar na sua caverna íntima e aguardar a editora produzir, comercializar e divulgar seus livros, o autor do novo milênio procura se expor nas diversas mídias para alcançar leitores e divulgar o seu trabalho. Embora escritores mais reservados torçam o nariz para o assunto, o marketing de engajamento chegou ao meio literário e fez com que muitos autores inaugurassem canais do Youtube, perfis no Instagram, páginas no FacebookTwitter etc, para fidelizar seu público e vender livros. Em paralelo, a popularização de feiras e festas literárias ao redor do país criou um espaço físico de diálogo entre escritores e leitores novos e experientes.   

 

“O trabalho do escritor é ficar em silêncio lendo e escrevendo. Para quem está de fora pode parecer estranho um sujeito que deixa de fazer outras coisas por conta desse trabalho, mas é o mesmo para quem está fazendo um doutorado, por exemplo, um preço que se paga para realizar uma atividade isolada.” A afirmação é do escritor e coordenador de projetos de leitura do Sesc Nacional, Henrique Rodrigues. Os eventos literários, além de movimentar a cadeia produtiva do livro, retiram os autores da sua “atividade isolada” e os aproximam de leitores para discutir determinados livros ou ideias pertinentes a diversas obras. Mário Rodrigues, vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2016 na categoria Contos com o livro Receita para se fazer um monstro, pondera que essa proximidade não deve ser vista como algo novo. “Se fizermos uma pequena retrospectiva, encontraremos nos aedos da Grécia, nos jograis da Idade Média e em Castro Alves siderando teatros lotados, por exemplo, que a relação escritor e público nunca foi algo tão alienígena assim.” Mas além de resgatar fórmulas históricas, os eventos literários atuais têm uma nova roupagem ao público. Segundo o escritor Marcelino Freire, foi justamente isso que o motivou a criar a Balada Literária, em São Paulo. “Gosto deste conceito de ‘festa’ trazido pela Festa Literária Internacional de Paraty e do ‘circo’ da Jornada Literária de Passo Fundo, que acontecia em uma tenda de circo. A literatura é sempre carrancuda, solene. Aí mostrar que a literatura pode ser divertida, vibrante, isso me interessa muito. Daí porque eu quis fazer a Balada Literária idem, para colocar o escritor ao lado da drag queen, da batata frita, da night.” 

A literatura pode ser divertida, vibrante, isso me interessa muito – Marcelino Freire, escritor e organizador da Balada Literária.

Menos rigorosos que qualquer clássico russo, os eventos literários popularizam-se como momentos de integração (pessoal ou digital), onde o autor tem chance de conversar com os leitores reais do seu trabalho. Mas será que um grande público é o principal indicador de sucesso? “Não. Às vezes, o evento está lotado por ‘n’ motivos, menos os literários e as pessoas saem dali com a sensação de tempo perdido. O bate-papo é bem-sucedido quando algo é construído. Para isso confluem autores, mediadores e público.”, explica Mário Rodrigues. Para a autora infanto-juvenil Stella Maris Rezende, quatro vezes ganhadora do Prêmio Jabuti, uma plateia pequena também pode surpreender. “Às vezes o sucesso está numa plateia pequena, mas intimamente comovida e encantada com o autor, ou seja, há qualidade de público, não uma simples quantidade, e isso é o mais importante.” Independente do número de pessoas dispostas a ouvir, o escritor deposita seu esforço na mensagem transmitida. E os recados mais importantes perpassam pelo respeito e estímulo à leitura, como explicado a seguir pelo escritor Henrique Rodrigues. “Depois de participar de vários formatos de eventos, concluí que a principal questão é o respeito ao público. Se as pessoas estão lá para nos ouvir, é preciso adequar o discurso para que não seja pedante ou pretensioso, mas que suscite alguma reflexão e paixão pela leitura – não necessariamente a minha, mas como uma prática cultural de todos os dias.” 

Contudo, diferente de qualquer estratégia em que os resultados podem ser medidos rapidamente, por vezes o escritor não consegue calcular o impacto da sua presença nos eventos literários porque o hábito da leitura carece de outras instâncias. “Em muitos casos o autor conversa com seu possível público, mas a conquista do leitor é algo muito mais difícil, requer políticas públicas de incentivo à leitura e um aprendizado constante, tendo em vista a nossa imensa e profunda desigualdade social”. Essa imensa e profunda desigualdade social, como citado pela autora Stella Maris Rezende acima, poderia criar diferentes tipos de público ao longo do nosso já diversificado país, contudo, em matéria de Literatura, o escritor Mário Rodrigues diz que isso não acontece. “Não há diferenças profundas quanto ao público dos eventos literários. O ideal, óbvio, seria que o leitor tivesse lido a obra antes, mas geralmente é o contrário: aquela é a oportunidade do autor apresentar-se. Em poucos casos existem professores heroicos que trabalham a obra com antecedência, aí, então, a experiência é bem mais rica para ambos, público e escritor.” 

Às vezes, o evento está lotado por ‘n’ motivos, menos os literários e as pessoas saem dali com a sensação de tempo perdido. – Mário Rodrigues, escritor.

Com tantos escritores circulando em feiras e festas literárias, sobram muitas histórias. Marcelino Freire relembra quando, em 2012, dedicou a Balada Literária ao recluso escritor Raduan Nassar e ele, para total surpresa de todos, apareceu. “A plateia chorava, sem acreditar.” Outra lembrança de Marcelino envolve o escritor pernambucano Raimundo Carrero. “Presenciei o querido Raimundo Carrero confundir Paul Auster com o gerente do hotel. Auster tomava café de óculos escuros. ‘Só gerente de hotel usa óculos escuros no café da manhã’, argumentou o mestre Carrero.” A agente literária Valéria Martins também tem um caso cinematográfico na memória. “Um autor foi convidado para uma feira no interior e teria que percorrer uma distância longa em quatro horas de carro. O motorista se esqueceu de por água no radiador e o carro ferveu no meio do nada, anoitecendo. Uma carona o salvou. Essa mesma situação aparece no filme ‘O cidadão ilustre’, sobre um escritor vencedor do Prêmio Nobel que resolve voltar à sua cidade natal, no interior da Argentina.” 

Por fim, embora não tenhamos dados precisos sobre a quantidade de feiras literárias ao redor do país e nem do público participante, podemos medir o impacto desses eventos no relatório de vendas de livros de 2017 produzido pela consultoria Nielsen e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). No acumulado do ano passado, segundo o documento, houve um crescimento tanto em valor quanto em volume de livros vendidos, em comparação com 2016; em valor, aumento de 6,29%, enquanto em volume 4,90%. Ou seja, o mercado literário vendeu mais livros, com preços, em média, um pouco mais altos quando comparado ao ano anterior. Os resultados positivos fizeram de 2017 um ano de recuperação financeira (em 2016 o mercado fechou com queda nas vendas de 9,2%), e certamente parte do mérito reside nas feiras literárias e nos escritores, que não se intimidam frente à plateia.  

 

Escolha de escritores:  entre o valor literário  e a capacidade de atrair público 

Com a primeira edição realizada em 2003 pela Associação Casa Azul, a Flip consolidou-se como referência para eventos literários ao redor do país. A fórmula alia a bela cidade de Paraty, integração com os moradores locais, grandes nomes da literatura e uma autora ou autor a cada ano para ditar a espinha dorsal das principiais mesas de discussão. A curadoria atual é da jornalista Josélia Aguiar, que escolheu em 2017 o autor Lima Barreto e para 2018 a poeta Hilda Hilst como homenageada. Mas como ela decide a personalidade de cada ano? “Lima Barreto era um autor que há muito tempo leitores desejavam, mas trazia consigo questões muito delicadas de tratar e no momento em que fosse escolhido seria um desafio imenso, talvez maior do que o oferecido por outros autores. Por uma preferência pessoal, quando fui escolhida curadora, eu quis muito que fosse ele, e, agora, Hilda Hilst, que também tem uma popularidade grande”. 

 

Os agentes literários são outra figura muito importante para ajudar os curadores a definir os participantes de um evento. Valéria Martins, a única agente do país nessa categoria, explica que sua função auxilia fornecendo informações detalhadas sobre os escritores, que representa, aos organizadores. “As feiras de livros muitas vezes são feitas por técnicos de prefeituras e secretarias de cultura. Eles se sentem mais seguros quando alguém com conhecimento do mercado literário e das biografias dos escritores fornece informações confiáveis.” 

Quanto à escolha dos escritores para determinado evento, por vezes temos o conflito entre o valor literário e a capacidade de arregimentar público. Não por acaso, levando em conta as bienais do Rio de Janeiro e São Paulo, diversos autores provenientes do universo online, principalmente youtubers com milhares de seguidores, passaram a integrar a programação desses eventos. Josélia Aguiar defende, contudo, a supremacia da obra escrita. “No caso da Flip, o que conta é a qualidade da obra e, naquele ano específico, o quanto pode ser parte do programa.” Valéria Martins especifica que existem propósitos diferentes dependendo da organização do evento. “Quanto à participação de youtubers em feiras de livros, eu diria que eventos com caráter mais comercial (foco na venda de livros), como Bienais do Livro, têm interesse maior nesses autores. Já os eventos com foco em incentivo à leitura e formação de leitores preferem autores literários.” 

 

Fique de olho em alguns dos eventos literários do país:

Evento  Cidade / UF  Site para mais informações 
Bienal Brasil do Livro  Brasília – DF  www.bienalbrasildolivro.com.br 
Bienal de Alagoas  Maceió – AL  www.bienalalagoas.com 
Bienal de Curitiba  Curitiba – PR  www.bienaldecuritiba.com.br/2016/literatura 
Bienal de Minas  Belo Horizonte – MG  www.bienaldolivrominas.com.br 
Bienal de Pernambuco  Recife – PE  www.bienalpernambuco.com/apresentacao 
Bienal do livro da Bahia  Salvador – BA  www.bienaldolivrobahia.com.br 
Bienal do livro de São Paulo  São Paulo – SP  www.bienaldolivrosp.com.br 
Feira de Joinville  Joinville – SC  www.feiradolivrojoinville.com.br 
Feira de Ribeirão Preto  Ribeirão Preto – SP  www.fundacaodolivroeleiturarp.com 
FLIP  Parati – RJ  www.flip.org.br 
Salão do Livro do Piauí  Teresina – PI  www.salipi.com.br 

 

(Matéria publicada na Revestrés#34 – janeiro-fevereiro de 2018).