Desde pequena sempre gostei de andar pelada (ou quase) pela casa. Convenhamos, Teresina é conhecida nacionalmente por sua temperatura “amena” e desfrutar desse clima sem roupa não me parece uma ideia tão absurda! No entanto, lembro-me de sempre ouvir “pedidos” para colocar uma roupa porque tinha gente chegando em casa e eu não era índia para ficar “desfilando” sem roupa.  

Ao que parece, nosso constrangimento frente a nudez tem raízes antigas. Pero Vaz de Caminha já se admirava dos trajes utilizados pelos nativos brasileiros, no melhor estilo “como viemos ao mundo”. Ao descrever a chegada ao Brasil, o escrivão da coroa portuguesa revela, em vários pontos de sua carta, sua perplexidade diante dos corpos nus: 

“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”… “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”. 

A inquietude portuguesa diante do corpo nu só não era maior que a naturalidade com a qual os indígenas lidavam com quaisquer partes de seus corpos: rosto, mão, seios ou partes íntimas. Desculpe a longa divagação, mas tudo isso é para dizer o óbvio: a relação que estabelecemos com o nosso corpo é cultural.  

Na maior parte do mundo corpos nus ainda causam certo estranhamento. Mas movimentos como o FKK, Freikörperkultur, traduzido do alemão como cultura do corpo livre, cultivam uma abordagem ao nudismo de maneira não sexualizada, ao contrário: ligada ao desfrutar da natureza de maneira simples e integrada, despidos de roupas e vergonhas em espaços públicos. Sim, espaços públicos como praias e parques. A ideia é bem antiga: aproveitar a vida como se veio ao mundo. Contudo, ganha ares cada vez mais revolucionários diante da ascensão conservadora. 

O movimento FKK defende o respeito a si, aos outros e ao meio ambiente. A ideia principal é fazer com que as pessoas não sintam vergonha dos seus corpos e possam desfrutar dos espaços públicos da maneira como se sentem mais confortáveis. Como dito anteriormente, o respeito está na base de tudo. Como nem todas as pessoas se sentem confortáveis diante de pessoas nuas, na Áustria há espaços reservados para a prática do FKK. Isso quer dizer que parques e praias reservam espaços para os adeptos da cultura do corpo livre, preservando-lhes o direito de aproveitar o espaço público da mesma forma que os não adeptos.  

Em bom português: se você está disposto a se despir de suas vergonhas e se integrar à natureza de maneira plena, você é muito bem-vindo. Caso queira apenas ser voyeur, este lugar não é para você, uma vez que não há conotações sexuais. E se você acha que tudo isso é “pouca-vergonha”, não entendeu o movimento, não precisa se juntar, mas pode ler até o final para se informar um pouco mais. 

Até o século XVIII era comum na Europa que as pessoas tomassem banho em rios e lagos sem roupa. O tabu em torno da nudez ganhou mais força no fim daquele século, levando vários países a proibir que se nadasse sem roupa. No fim do século XIX, mais especificamente em 1898, foi fundado o primeiro clube de cultura do corpo livre na cidade de Essen, na Alemanha. Em 1949, os alemães fundaram a Associação Germânica da Cultura do Corpo Livre, que se constitui como o maior membro da Federação Naturista Internacional. De lá até hoje o movimento naturista ganhou adeptos em diversas partes da Europa e do mundo, mas a cultura do corpo livre é especialmente integrada à vida das sociedades germânicas. 

Mais que uma mera prática de nudismo, o movimento FKK representa uma filosofia de vida baseada na aceitação do corpo humano e sua integração à natureza. O componente saúde também desempenha um importante papel, uma vez que na cultura germânica o banho de sol é visto como um importante aliado da saúde ajudando no tratamento de diversas doenças. 

 

 

Como fui parar numa praia FKK 

Ah, o verão europeu! Não, não estou falando de curtição ou azaração, mas das altíssimas temperaturas que chegaram ao continente neste verão e do meu completo despreparo em relação a elas. Eu e meu marido viajamos para Viena a trabalho, mas decidimos aproveitar um pouco o fim de semana antes dos deveres. Saímos para um passeio no parque e não havia sorvete, água ou cerveja gelada que aplacasse o calor. Mas eis que o rio Danúbio nos surge à frente, cheio de praias para amenizar as altas temperaturas.  

Sem roupas, não há classes sociais. Somos apenas pessoas com diferentes idades, diferentes formatos de corpos… com as marcas que nossas vivências nos deixaram e nada mais.

Ótima ideia, mas cadê a roupa de banho? Não havíamos levado nada. Sem problemas, basta comprar algo, certo? Claro, desde que não seja domingo. As lojas em Viena costumam fechar aos domingos. Você deve estar se perguntando se não haviam quiosques nas praias vendendo esse tipo de coisa, né? Sim, havia apenas um na praia pública de Gänsehäufel. Até achamos roupas de banho nada atraentes e com precinho bem de turista. Mas o lugar não aceitava cartão (na Áustria alguns lugares só trabalham com dinheiro em espécie).  

Resumo da ópera: havia uma área reservada para os adeptos da FKK. Opa! Nosso problema está resolvido, pensei. A nudez para mim nunca foi um problema, mas o calor, este sim, estava me perturbando bastante. Apesar de não praticarmos o naturismo diariamente (ainda?!), somos simpatizantes da causa e já andamos nadando em algumas praias com o modelito Adão e Eva. Resolvemos entrar na área reservada. 

A divisão entre as áreas é bem clara. Existe uma parede de uma ponta à outra da área reservada sem brechas para os curiosos. Ao atravessar a fronteira não são permitidos o uso de biquínis, shorts de banho, maiôs ou qualquer peça de vestuário. Exceto toalhas, caso você esteja indo tomar uma ducha ou comer algo no restaurante. Também não são permitidas fotografias, afinal o objetivo é o contato com a natureza e não a exibição dos corpos. E mesmo que o fossem, nenhuma imagem seria capaz de captar a atmosfera de uma praia FKK. 

Sem roupas, não há classes sociais. Somos apenas pessoas com diferentes idades, diferentes formatos de corpos… com as marcas que nossas vivências nos deixaram e nada mais. Sem rótulos, sem cobranças, sem perfeições e sem vergonha do que somos.  

 

A experiência 

Haviam algumas centenas de pessoas na área reservada. Casais de idosos, casais jovens, famílias com crianças, grupos de amigos, pessoas sozinhas. A variedade de pessoas que dividiam o espaço em nada diferia dos espaços em que a vestimenta é obrigatória. Tão pouco diferiam, no geral, as atividades: uns nadavam, outros liam, outros conversavam. 

Duas coisas, no entanto, captaram a minha atenção: a atmosfera de alegria e descontração e a ausência de aparelhos eletrônicos. A interação entre amigos e famílias era real, direta e face a face. Um grupo de jovens fazia competição de saltos em uma plataforma. Pais brincavam com seus filhos na água. Mães amamentavam deitadas no gramado. Uma mulher falava ao telefone com alguém, numa conversa aparentemente descontraída. Esse foi o único momento que vi um celular sendo usado, estranhamente na função para o qual foi desenhado inicialmente, mas já quase em desuso ultimamente. Nada de mensagens, whatsapp ou e-mail. Total conexão com o presente e o ambiente ao redor. 

Patos e cisnes também nadavam conosco. Eles sem medo. Nós sem nojo. O consumo de bebidas alcoólicas na área era quase inexistente, não porque fosse proibido, mas a filosofia naturista é associada à moderação no consumo tanto de bebidas como de carnes.  

Havia uma lanchonete no local onde era possível tomar sorvete e comer petiscos. Neste lugar, o padrão era cobrir as partes íntimas com uma toalha ou uma canga, afinal as cadeiras eram compartilhadas e a preocupação com a saúde e a higiene vem em primeiro lugar na lista de prioridades dos adeptos da cultura do corpo livre. 

A cultura do corpo livre prega o respeito e quando há respeito não há espaço para abusos, violências e violações de direitos. A aceitação do nosso corpo e a visão de diferentes corpos nos tira medos, desfaz angústias e nos torna felizes com nossas imperfeições. Despidos de roupas nos vestimos de autoconhecimento.  

(Publicado na Revestrés#38- novembro-dezembro de 2018).