Ainda não batiam as seis da tarde. Mas, para aquelas pessoas, já era a hora bendita e sã: hora de começarem a puxar o fole da sanfona, acompanhadas de zabumbeiros, “triangueiros” e outros instrumentistas. Ao adentrar a Catedral de Nossa Senhora das Dores, no centro de Teresina, as orações são feitas em forma de música e dança, e os pedidos de graças se direcionam à memória do aclamado Rei do Baião, Luiz Gonzaga. São muitos os forrozeiros. E cada vez chegando mais. 

São pessoas de todas as idades. Muitos portando instrumentos profissionais, alguns herdados de parentes e também sanfonas de brinquedo, para os pequenos tocadores. Gente que chega de cidades vizinhas e de outros estados, sozinhos, em grupos ou com a família. Um deles é Francisco Ricardo, 10 anos. Ele aprendeu a tocar e diz que o interesse foi despertado após ouvir um CD com músicas de Luiz Gonzaga. “Comecei a tocar com seis anos. Já gostava de forró e vaquejada e o mais legal do Gonzaga é o jeito de tocar. Também o jeito dele se vestir e de falar”. O menino, da cidade de José de Freitas, interior do Piauí, carrega o instrumento com orgulho, devidamente vestido com gibão e chapéu de couro. 

A Procissão das Sanfonas acontece sempre em 2 de agosto, nas ruas do centro da capital piauiense, relembrando a data da morte do músico Luiz Gonzaga, em 1989. O evento manifesta o que ele foi em vida, inspirando diferentes gerações, especialmente de nordestinos, a cantar o cotidiano do povo, as lutas e a cultura popular. “Quando se fala de Gonzaga, do Rio Grande do Sul até o Pará, há uma congregação de valores em torno desse nome. Ninguém fica com a sanfona aposentada e estamos construindo um caminho longo e alegre”, conta o professor de Física do Instituto Federal do Piauí (Ifpi), Wilson Seraine. 

Com a morte de Gonzagão, o professor não se viu triste a chorar. Com mais de 20 anos dedicados à pesquisa e divulgação da história e da obra de Luiz Gonzaga, Seraine preside a Colônia Gonzaguiana, em Teresina. O grupo organiza a Procissão das Sanfonas e, também, a Missa de Santa Luzia, em 13 de dezembro, aniversário de Gonzaga. “A Colônia é um grupo de amigos que se reúnem, interagem. São músicos, pesquisadores e artistas e nada muito formal, tanto que não sei dizer quantas pessoas somos hoje”. 

Seraine é considerado o maior colecionador e pesquisador de Luiz Gonzaga no Piauí e um dos maiores do país. Ele também encara as ondas do rádio em um programa semanal: A Hora do Rei do Baião. No currículo, entre os livros que publicou estão: Cordéis Gonzaguianos – AntologiaA Festa da Asa Branca – uma história com pássaros cantados por Luiz Gonzaga e Causos Gonzaguianos Ilustrados . 

A Procissão das Sanfonas forma um grande cortejo. Ao invés de caminhar, muitos seguem dançando e a rua vira salão, com xote e baião incendiando corações. Assim aconteceu com Camila Barbosa, natural de Caxias, Maranhão, estudante de mestrado em Letras, em Teresina. Ela acredita que viver a cidade passa por observar o que acontece com a presença do povo e a partir da iniciativa popular. “A gente se acostuma com o fato de que algumas coisas são daqui e vai deixando passar, tende a não valorizar. Como adotada por Teresina, vim prestigiar essa tradição”. 

A festa fica mais democrática quando trabalhadores do centro comercial da cidade deixam a rigidez da rotina por alguns instantes. “Deveria ter sempre esse tipo de movimento cultural. Eu saí aqui fora bem rápido pra ver tudo isso!”, observa Adriano Nunes, trabalhador do comércio. Ele guardará o momento de descanso feliz nas recordações da procissão que passou. 

Três reis nordestinos 

Os organizadores decidiram que já era tempo de falar de outros reis nordestinos da música. Em sua 11ª edição, além de lembrar os 30 anos de saudade do Rei do Baião, a procissão homenageou também Raul Seixas, o Rei do Rock, e incluiu o centenário de nascimento de Jackson do Pandeiro, Rei do Ritmo. Sob o mote Viva o sertão alternativo, a diversidade de estilos apresentou união de pessoas com várias identidades. A realização da procissão em homenagem às três majestades populares, para Wilson Seraine, é uma prova da riqueza musical do Nordeste. “Vamos viver o sertão alternativo, falando que os três artistas não são antagônicos e representam o nosso povo”. 

Com experiência de quem conviveu com Raul Seixas, George de Lima declara a satisfação de estar na tripla homenagem. Ele mora em Fortaleza e por lá criou o fã-clube Raulzito Rock Clube, em 1990, um ano após a morte do Maluco Beleza. George tem um filho chamado Raul, afilhado de Plínio Seixas, irmão do ícone musical. Por ser frequentador da casa dos Seixas e pelo apreço à obra, o radialista começou a reunir informações e itens que divide com outros fãs, comumente chamados de seixistas. “O maior legado é a atualidade das composições. Ele é importante em qualquer época, está na sociologia, na história, política, na economia e em sua base, a filosofia”, diz. 

Quem também resolveu acompanhar os sanfoneiros foi Bruno Lustosa, fundador do fã-clube Raul Rock Piauí. Quando o ídolo partiu, Bruno tinha apenas dois anos. Mesmo sem acompanhar a trajetória de Raul quando ainda vivo, aos 15 anos Bruno iniciou as pesquisas e a montagem de uma coleção. O acervo já foi exposto no Museu do Piauí, em parceria com a Colônia Gonzaguiana, em 2019. São discos, livros, revistas, pôsteres e outros achados do fã-clube, que conta com cerca de 50 membros. Mas Bruno sempre mostra o acervo para apreciadores e faz publicações diárias nas redes sociais – acompanhadas por mais de 11 mil perfis só no Facebook. “Ele era um contestador, poeta, um místico que continua a espalhar sua obra. A homenagem é justa, porque os três misturavam ritmos. Além disso, estamos aqui para lembrar a mensagem da geração da luz: Raul disse ‘vocês ainda têm a velocidade da luz pra alcançar, então vai lá!”, diz Bruno. 

Xodó que alegra o viver 

Ao caminhar (ou dançar) entre os participantes, vemos sorrisos estampando os rostos das sanfoneiras, que exibem também o cuidado nas vestimentas e acessórios. O clima na Procissão das Sanfonas é favorável para despertar a paixão pelo instrumento. “Acredito que muitas mulheres em Teresina têm despertado para essa cultura. Desde que eu morava no Maranhão já gostava, e aqui em Teresina conheci a Colônia Gonzaguiana. Foi então que passei a viver essa diversidade e mistura”, afirma Adnayane Marins. Ela compõe o grupo musical As Fulô do Sertão, um trio feminino de música nordestina. 

As gerações se encontram para compartilhar semelhanças e celebrar as diferenças. Quem usa a internet para falar de música ou frequenta as escolas de instrumentos, troca ideias com quem aprendeu a tocar sozinho. José Francisco da Silva tocava pandeiro e sustentava a família com o dinheiro arrecadado nos shows que fez acompanhando Maria da Inglaterra, artista piauiense, por oito anos. Com quase 60 anos, começou na música aos 13. “Aprendi a tocar sozinho. Toco pandeiro e nunca teve ninguém da família fazendo música. Já estou velhinho, mas passo aos outros o que sei. Aqui na procissão a gente faz festa e passa a cultura pro povo mais novo”. 

O amor de Elaine Osório pelo forró, xote e baião é inspirado no romance dos pais. A mãe piauiense e o pai cearense se conheceram em São Paulo, em uma casa de cultura nordestina. A filha do casal conta que isso a fez escolher a dança de salão há 12 anos, sempre optando pelos ritmos xodós (em um dizer carinhoso dos nordestinos) da família. “Conheci e convivo com vários sanfoneiros. Minha amizade com eles fez com que tivesse vontade de aprender a tocar”. Ela resolveu arriscar e, com apenas um mês de prática na sanfona, pegou o acordeon com vontade de destacar a presença das mulheres na procissão. “Muita gente me diz ‘nossa, mulher tocando sanfona? Que coisa linda!’ E realmente é. Lugar de mulher é onde ela quiser, e também tocando sanfona, como qualquer outro instrumento”. 

 

As crianças dão um show à parte, anunciando talentos. Sara Fernanda Cabral conta que o exemplo de dois meninos sanfoneiros e o incentivo de um familiar a fizeram procurar as aulas de sanfona. A menina de 10 anos fala com brilho nos olhos sobre Luiz Gonzaga. “Uma vez ouvi a orquestra de sanfonas tocando e assisti à história dele, e me apaixonei. Nós sanfoneiros somos como uma família. É emocionante e difícil de descrever”. 

Para Wilson Seraine, as emoções traduzem o sentimento de ser gonzaguiano. “Sinto realização por tudo que a procissão se tornou. No meio da multidão, sou um folião como todos. Não fazemos isso para ter êxito pessoal, mas para fazer algo pela cultura do Piauí e do Nordeste. E, se falamos em Nordeste, isso passa por Luiz Gonzaga”. 

Bonecos gigantes e repertório cantado em coro compõem o desfile de pouco mais de uma centena de sanfoneiros que seguram a festa por cerca de três horas seguidas. A força e coragem evocadas ao lembrar os homenageados fazem crescer a procissão, que termina em um grande show coletivo de sanfonas em um palco montado em frente ao Museu do Piauí. Quando acaba, fica o gosto de quero mais. 

E, assim, os sanfoneiros e os admiradores aguardam a chegada do próximo 2 de agosto já com saudade, a mesma de quem quer encontrar, no sertão, os amigos que deixou. Para essa saudade, o remédio é cantar. 

Publicado em Revestrés#42 – Para comprar a edição impressa, utilize o site.

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