O JUNTA Festival – Dança e Contemporaneidade – realizou a sua décima edição: o JUNTA X (15 a 20 de outubro de 2024). São 10 anos realizando, em Teresina, Piauí, um acontecimento difícil de definir, já que é muito mais que dança: talvez esteja melhor representado na palavra – também fugidia – contemporaneidade. Em todas as edições, Revestrés esteve acompanhando a programação. No JUNTA X, discutimos entre nós alguns dos espetáculos e, agora, partilhamos nossas impressões, sensações e sentimentos, em textos assinados por Samária Andrade e André Gonçalves. São textos movidos muito menos pela ideia de uma crítica formal, e muito mais pelo que as atividades aqui elencadas provocaram – e continuam reverberando. A cada semana, partilhamos um texto novo. Acompanhe.
Por Samária Andrade e André Gonçalves | Fotos: Victor Martins
Como superar o grande cansaço? acontece em um palco nu. Um quadrado branco, sob luz branca, que se destaca na escuridão. Um palco sem ilusões, sem metáforas, sem amparo.

A quantos desmoronamentos resiste um corpo? | Foto: Victor Martins
Fora do quadrado, em meio às sombras e ao completo silêncio, Eduardo Fukushima não começa dançando: começa cedendo. Bate a cabeça na parede à sua frente, e desmorona. Os únicos sons são os de sua cabeça batendo na parede e de seu corpo desmoronando. Fukushima se ergue e, mais uma vez, desmorona. E outra vez. Então, começa a soar um martelo eletrônico. Que martela, e martela, e martela, e martela, e martela. O corpo de Fukushima parece negar um iminente colapso e insistir em seguir existindo. Se reergue e desaba novamente, um quarto colapso. A partir daí, o que vemos é um estudo sobre a exaustão.
Um corpo que escapa não da fadiga, mas através dela, que escreve coisas no ar em língua desconhecida, feita de urgência. Quantos movimentos cabem em um minuto? Quantos corpos cabem em um só corpo? A quantos desmoronamentos resiste um corpo? No chão, Fukushima se desdobra, se retorce, se reforma, se fratura, se regenera, se reorganiza, se autossabota, se desfaz, se perde, se redescobre. De cada movimento nasce uma queda, uma curva, um olhar, um ruído, um espasmo. Um corpo que rasteja e se desmancha, derrete e escorre e se junta novamente, recolhendo seus próprios pedaços. O martelo eletrônico TEM, TEM, TEM, TEM*, o corpo rangendo até onde aguentar é possível e, depois disso, continuar. O palco é campo de batalha entre o mundo que grita “continue” e o corpo que quer desistir. A dança como arqueologia do cansaço: cada músculo, um hieróglifo de fadiga.
Após dez minutos Fukushima está estatelado, rosto no chão. Braços abertos, quase um Cristo sem cruz, quase uma trabalhadora em greve, quase um cadáver em feriado. Faz-se silêncio total. Seria aquilo a morte? Ou breve pausa de um corpo que já não distingue trabalho, arte, existir, insistir, desistir, resistir? Apenas os sons do mundo e o corpo inerte no piso branco. Toca um celular. Alguém tosse. Cadeiras rangem. O corpo inerte respira. Na quietude desse corpo, seu ato político: um manifesto contra a aceleração. Um corpo que se nega a ser produtivo. Por um minuto. Um minuto.

O corpo de Fukushima é também o nosso corpo. Dobrado pelo cansaço, antítese da eficiência. Até que recomeça. | Foto: Victor Martins
O martelo volta, TEM, TEM, TEM, TEM, e um Fukushima quase autômato, quase desobediente, volta a se levantar. Seus movimentos agora sutilmente mais lentos, na teimosia de um corpo que persiste mesmo quando a alma esvai. Som de serrote, o martelo, os celulares da plateia, o corpo se batendo no chão, aço cortado, o piano dissonante, aço arrastado, o corpo arrastado, ferro arrastado, aço arranhando. Os sons do mundo torturam aquele corpo e a plateia, que testemunha a vulnerabilidade como espetáculo.
Aos dezesseis minutos Fukushima parece desistir. Sentado, pernas abertas, braços pendentes à frente. Dessa vez o martelo segue TEM, TEM, TEM, TEM, e Fukushima sentado, apenas respirando. No rosto, o retrato da exaustão. O olhar fixo no chão, como se ali pudesse encontrar alguma resposta. O respirar como protesto silencioso contra a tirania da produtividade, mais um ato político em um mundo que não pausa. Mais um minuto de um corpo que, “apenas”, respira. Fukushima é todos nós: corpos esgotados, obrigados a insistir e tentar reexistir sob o martelo do capital, TEM, TEM, TEM, TEM, o metrônomo de um tempo que não dorme, que nos lembra que estamos quase-vivos mesmo quando tudo que desejamos é desabar. O corpo de Fukushima é também o nosso corpo. Dobrado pelo cansaço que nos acompanha, antítese da eficiência. Até que recomeça, como sempre nos exigem que recomecemos. Somos, também, corpos que arrastam existências, sob martelos que não calam. Mas já não há vigor, apenas teimosia.
Aos dezenove minutos, Fukushima ajoelha-se por um segundo. Talvez dois, ou três. Talvez tenha chorado rapidamente, quem há de dizer que não. Vai desistir? Titubeia, cai novamente, de lado, recomeça os movimentos, cada movimento uma colisão entre desejo e desespero. Se levanta, de costas anda em círculo, desaba mais uma vez, e outra vez.

O corpo não sabe que passou da hora de parar? Por que continua? Dançamos com ele, cansamos com ele. | Foto: Victor Martins
Agora o martelo calou-se. O som cessa, mas o corpo de Fukushima continua, tempos modernos, ao ritmo dos próprios gemidos, ao som de seus ossos colidindo com o chão. Como se o corpo, acostumado ao ruído do mundo, não soubesse mais existir sem ele, um corpo contra si mesmo, um organismo em guerra contra seu limite. O corpo não sabe que passou da hora de parar? Por que continua? No chão, segue o corpo de Fukushima se desdobrando, se retorcendo, se fraturando, se desfazendo e se reorganizando, e escorrendo. Por que continua? Por que continua? Até que a luz se apaga, e Fukushima deixa o palco. Acabou.
Ou talvez não. Fukushima retorna e curva-se para nós, que estamos de pé. Exaustos. Dançamos com ele, cansamos com ele. Porque sua dança não é monólogo, mas espelho que reflete nosso próprio cansaço de existir em um mundo que nos exige, nos impele, nos determina que sejamos máquinas. Mas como, como superar o grande cansaço? Fukushima não responde.
Em vez disso, nos oferece uma heresia: dançar com o cansaço. E não contra ele.
* o martelo que faz TEM TEM TEM TEM é uma lembrança-homenagem ao saudoso e enorme poeta Élio Ferreira
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Samária Andrade é Jornalista, Professora de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) e Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília).
André Gonçalves é artista, escritor, publicitário, Mestre em Comunicação e Doutorando em Filosofia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí).
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FICHA TÉCNICA DE COMO SUPERAR O GRANDE CANSAÇO?
Direção, criação e dança: Eduardo Fukushima
Composição musical: Felipe Ribeiro
Desenho da luz: Hideki Matsuka e Igor Sane
Orientação artística: Key Sawao
Figurino: Eduardo Fukushima
Produção: Eduardo Fukushima, com apoio de Corpo Rastreado
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FICHA TÉCNICA DO JUNTA X:
Direção geral: Datan Izaká, Jacob Alves e Janaína Lobo
Curadoria: Datan Izaká, Jacob Alves, Janaína Lobo e Mariana Pimentel
Direção de arte e design gráfico: Sérgio Donato
Produção: Wilena Weronez
Produção Circulação Junta Expandido: Datan Izaká e Tulipa Braga
Produção Incubadora: Hellen Mesquita
Assistente de produção: Paulim Beltrão Marathaoã
Fotógrafos: Victor Martins e Gelson Catatau
Vídeo: Kelson Fontinele
Assistente de direção técnica: Kassyo Leal
Iluminação: Ulisses Pimentel
Montagem Geral: Javé Montuchô e Philipe Marinho
Apoio: Anna Raquel, Savana Victória, Larissa Sousa
Comunicação: Joseph Oliveira, Mozart Menezes, Tertuliano Vicente e Abner Oliveira
Apoio geral: Casa Redemoinho de Dança, Corpo Rastreado, Escola Estadual de Dança Lenir Argento, SESC PI, Biblioteca Cromwell de Carvalho, Complexo Cultural Theatro 4 de Setembro, Pappardelle, Mercado do Pão, Consulado geral da França em Recife
Supervisão administrativa: Alba Roque e Tamara Andrade
Promoção: Ministério da Cultura do Governo Federal, Instituto Cultural Vale e Secretaria de Cultura do Governo do Piauí
Realização: JUNTA e PROMULTI