“Cantador do Nordeste
Tem repouso em Petrolina
Em Patos em Arco-Verde
Em Juazeiro em Campinas
Mas a casa mais bonita
É esta de Teresina”
(Pedro Bandeira)

 

Numa casa avarandada, cercada por grandes árvores e palmeiras imperiais, apenas algumas violas ressoam baixinho às 11 horas de uma sexta-feira. No quintal há uma mesa de fazenda que, naquele horário, sustenta panelões que anunciam uma comida apetitosa. Todos são convidados a chegar mais perto e a fila para fazer o prato vai se formando. Está servido o almoço na Casa do Cantador. 

Naquele dia o cardápio era composto de arroz, feijão, macarrão, carne trinchada e dois tipos diferentes de saladas. Aldenora da Silva, a chefe da cozinha, acordou às 3 da manhã para deixar tudo pronto. A labuta começou especialmente cedo porque, muito antes do almoço, o café da manhã tinha de estar pronto assim que raiasse o dia . Uma equipe de TV iria filmar, logo cedo, os violeiros chegando para participar, em Teresina, do 40º Festival de Violeiros do Norte e Nordeste – o maior do mundo.

Aldenora cozinha há mais de 20 anos naquele lugar. Ela é contratada no período do festival, que dura três dias, para servir café, almoço e jantar aos violeiros convidados. Antes de aparecer esse bico, ela tinha um emprego fixo no restaurante de um grande grupo empresarial, mas confessa estar mais feliz agora. “Adoro trabalhar ouvindo o som das violas”, diz. Dona Domingas, uma índia de olhos azuis, descendente da tribo maranhense “Os canelas”, ajuda na cozinha. Ao contrário da amiga, ela passa todos os dias do ano na Casa do Cantador.

 

Foram 25 kg de carne e 15 de arroz para alimentar os mais de 100 violeiros que circulavam pela Casa naquele dia, que seria o primeiro do festival. Servidos, a maioria comia em pé, embaixo de jambeiros e munidos apenas de colher. Em pequenos grupos espalhados, eles conversam e riem enquanto comem. Alguns, ainda na fila, improvisam versos cantarolando, enquanto aguardam chegar a vez de se servir.

O clima por ali é de festa e reencontro. Uma vez por ano, violeiros de todo o país vem à Teresina participar do festival que há 40 anos acontece, sem interrupção. “O festival de Teresina foi cognominado pela Sorbonne de ‘universidade do repente’. Isso porque só ele reúne os PhDs do repente e os calouros, no mesmo patamar”, diz Pedro Mendes Ribeiro, que aos 82 anos preside a Associação dos Violeiros e Poetas Populares do Piauí – AVIPOPI – desde sua criação, nos anos 70. É ele também que dirige a Casa do Cantador e é, como diz, um entusiasta da poesia e do repente, desde menino.

 

Pedro nasceu no Baixão dos Ribeiros, povoado de Monsenhor Gil, a 65 km da capital. Durante a seca de 1932, viu vários imigrantes, mortos de fome, pedirem abrigo na fazenda em que morava. “E meu pai, com o coração muito grande, mandou dar comida a todos e deixou que por lá ficassem até a chegada do próximo inverno”. A estação passou, mas os imigrantes permaneceram morando com a família Ribeiro. “Aos sábados, eu acompanhava um negro chamado Luiz Nazário para vender frutas na feira livre da cidade. Ele tinha decorado uma peleja de cerrador e carneiro da qual nunca me esqueci. De tanto cantá-la, às vezes atropelava algum verso e improvisava. E foi assim que me tornei, ainda garoto, o repentista que sou hoje”.

Das lembranças da época de fazenda, aos dias de hoje, Pedro encontrou muito trabalho pela frente. Tornou-se professor de Filosofia na UFPI, aposentou-se, e nunca se afastou do repente.“Eu tomo café, almoço, janto e durmo com o repente”, entrega-se. São quase 30 anos resolvendo problemas e cuidando, pessoalmente, de cada violeiro que o procura. É que além de abrigar os repentistas no período do festival, a Casa do Cantador fica aberta o ano inteiro para servir de apoio aos violeiros. “É a única casa do Brasil que dá assistência total ao violeiro. Aqui eles podem dormir, se instalar, comer e ter tratamento médico sempre que precisam. Quando algum violeiro fica doente em outro estado e não tem condições de se tratar, nós mandamos buscar e garantimos consultas, exames, medicamentos, o que for preciso”. Na lateral da casa, o tronco das palmeiras que arrudeiam serve de epitáfio para os violeiros que partem e deixam saudade aos amigos. Eles escrevem versos de homenagem que podemos ler ali gravados em plaquinhas de alumínio.

O primeiro Festival de Violeiros ocorreu em agosto de 1971, e quatro anos depois, durante a gestão de Wall Ferraz, foi incorporado as comemorações do aniversário de Teresina – sendo muitas vezes realizado durante o feriado do dia 16 de agosto. Mas só dali a quinze anos surgiria a Casa do Cantador. Antes disso, os violeiros instalavam-se com amigos e parentes, e Pedro Ribeiro organizava em sua casa, no bairro São João, um verdadeiro churrasco de cantoria no estilo “bandeijão”. Lá os violeiros improvisavam seus repentes e os convidados, em sua maioria pessoas influentes e de bom nível financeiro, depositavam trocados numa bandeja, e, ao final, a renda era dividida entre cada violeiro. Foi num desses churrascos, que um empresário ali presente surpreendeu a todos quando pediu para dar o mote (versos que o repentista utiliza para completar a décima a ser improvisada). Prometeu, em poesia, doar a Casa do Cantador. Seu nome era João Claudino.

Não demorou mais que um ano e a Casa do Cantador foi inaugurada, em 16 de agosto de 1985. Logo foi batizada pelos violeiros de “palácio dos poetas”. Arborizada, mobiliada com simplicidade, e sede hoje de um dos maiores encontros de violeiros do mundo, a casa cumpriu o que preconizaram Ivanildo Vilanova e Severino Ferreira ao cantar aquele mote. Sebastião da Silva e Moacir Laurentino cantaram na inauguração versos em agradecimento: “Observando a pobreza / Dos poetas que já vi / Cantador que não tem casa / vai encontrar casa aqui”.

 

Mas o envolvimento de João com o repente, não começou ali. Desde o primeiro festival, realizado no Teatro de Arena, na Praça Marechal Deodoro da Fonseca (lugar que serve de palco para os violeiros até hoje), João Claudino vem sendo, para o evento, um grande apoiador. Ainda nos anos 70, ele foi eleito Patrono dos Violeiros do Brasil e, em Teresina, recebeu dos violeiros o título de Sócio Benemérito da Associação dos Violeiros e Poetas Populares do Piauí. Ele e Pedro tornaram-se grandes amigos e para o primeiro, João é um poeta generoso, “desses que não consomem sua poesia egoistamente”. “Ele está sempre mais preocupado com os outros do que consigo próprio”, diz Pedro. Certa vez, ao ser homenageado em um dos festivais, João disse, sem muito explicar: “Não posso falar, não devo falar. Apenas externar, mais uma vez, que gosto do repente, que se confunde comigo”.

A Casa do Cantador de Teresina é hoje a única casa de violeiros do Brasil que não pertence a prefeituras ou governos. Sua administração pertence a Associação dos Violeiros e Poetas Populares do Piauí, mas seus proprietários, como costumam dizer por ali, são os próprios violeiros. Em 2006 tornou-se um Ponto de Cultura e passou a receber apoio do MinC. Dentro da Casa funcionam uma biblioteca especializada em cordel, composta de folhetos, livros, CDs e DVDs sobre o tema, e também o Museu do Repente, o único que se tem conhecimento no Brasil. Ali são arquivados tudo que é gravado e registrado sobres os festivais e cantorias do Piauí e outros estados – inclusive há arquivos em áudio e vídeo de todas as edições do Festival de Violeiros do Norte e Nordeste. São ambos abertos à pesquisas.

Sombra ao cantador do sertão

Mesmo contando com alguns cômodos, mais de 80 beliches e varanda com armadores, é debaixo das árvores que os violeiros gostam de se instalar. “Meu alojamento é esse pé de taboca”, conta Francisco Conceição do Nascimento, o “Borboleta do sertão”. Sua rede está armada próximo ao um Gol modelo antigo, equipado com alto falante e seu apelido de cantador adesivado na porta. Foi ele que Francisco dirigiu por 12 horas, de Imperatriz no Maranhão, até à Casa do Cantador.

Aos 74 anos, é apenas a terceira vez que participa do festival em Teresina. “Comecei a tocar e improvisar repente ainda menino, com uma viola que fiz de tala de coco e lata de sardinha”, recorda. Bem diferente da que ostenta hoje: uma viola ornamentada, elétrica e de 10 cordas, também feita por ele. Ao lado da sua rede estão vários desse instrumento, que trouxe para tentar vender aos companheiros de viola. Cada uma custa mil reais e até hoje ele só conseguiu um comprador em Teresina: Pedro Ribeiro.

O “Borboleta” passou alguns anos afastados do improviso por conta da religião. “Tornei-me evangélico e a igreja não via com bons olhos o cantador. Até que entenderam que fazia parte do que eu sou e que não havia nada de pecado nisso”. Mesmo um tempo longe, não perdeu o dom. “O poeta nunca desaprende, é só abrir a boca que a poesia vem, ao natural”. Hoje a igreja está entre os tantos lugares que Francisco faz cantorias.

 

José de Moura e Silva tem viola até no nome. Conhecido como Zé Viola, ele teve o primeiro contato com o repente em São Paulo, apesar de ser nordestino. “Eu já tinha tido uma viola, quando garoto, pedi a meu pai uma sanfona e ele me presenteou com esse instrumento de corda”, conta. Zé nasceu em Bocaina, na região de Picos, no Piauí, mas viveu no sudeste por anos, onde trabalhou na Construção Civil e na linha de montagem de uma empresa automobilística. Voltou a Teresina há 17 anos e hoje vive numa casa, no bairro Dirceu. Isto é, quando não está viajando. Zé Viola vive de ponte aérea para cumprir os compromissos de um cantador profissional. “Desde 88 eu vivo exclusivamente de cantar repente”, diz ele que tem a agenda lotada até março do próximo ano, com convites para cantorias e eventos em todo o Brasil . Dirige uma 4×4 com seu rosto estampado e os telefones para contato na porta. A renda mensal não decepciona. “Nunca faço um somatório de quanto ganho por mês, os contratos de cantorias variam. Mas é de uma natureza que dá pra tanger o barco, segurar filhos na faculdade, pagar prestação de carro, e ir vivendo”.

Quem também tem a cantoria como profissão é o pernambucano Valdir Teles. Com residência fixa em Tuparetama, Pernambuco, ele divide o tempo entre as cantorias pelo Nordeste e duas viagens por mês a São Paulo, onde grava um programa de cultura nordestina na Rádio Imprensa, divulgando poesia e repente. Mesmo com os compromissos, ele participa de quase todos os festivais de violeiros que ocorrem em todo o Brasil, de todos os tipos. “Gosto muito de competir. Tenho mais de 600 troféus em casa, sendo pelo menos uns 300 de primeiro lugar”, destaca ele que já fez cantorias em vários países da Europa – o último foi no festival “Brasil na França”.

Em Teresina, o festival não tem caráter competitivo, mas nem por isso deixa de ser um dos preferidos de Valdir. “Para mim é o maior do Brasil, porque aqui é um congresso. Se debate assuntos da categoria e problemas da classe. Não é só competir, pegar o cachê e ir embora. É um simpósio de reuniões e palestras que deixa um legado muito positivo para os violeiros”.

A pátria do verso

Aos 18 anos, Mariana Teles é a mais nova a circular pela Casa do Cantador. Filha do violeiro Valdir Teles, é a primeira vez da jovem poetiza em Teresina. Ela foi convidada a ser declamadora no 40º Festival de Violeiros do Norte e Nordeste. Com desenvoltura, fala sobre cantorias e violeiros que talvez nem tenha chegado a conhecer em vida, mas admira. “Gosto muito de MPB e forró pé-de-serra, mas quando parte pro que é ídolo, para quilo que arrepia, sem dúvida é a cantoria de viola”.

 

Não é difícil encontrar o motivo. Mariana nasceu e cresceu numa região do Pernambuco conhecida por ser o reduto dos poetas. É o Alto Sertão do Pajeú, um complexo de 17 cidades de onde vieram além de seu pai, outros violeiros como Sebastião Dias, Diomedes Mariano, Dimas e Otacílio Batista e Rogaciano Leite, cujo poema “Os trabalhadores” está gravado na Praça Vermelha em Moscou, na Rússia. Nas escolas de São José do Egito, onde Mariana estudou, há na grade escolar uma disciplina de poesia popular. “Um professor-poeta nos ensina o que é poesia e começamos a praticar. Então a gente cresce sabendo que esse é um valor que temos que perpetuar”.

Hoje, estudante de Direito na Universidade Católica do Pernambuco, Mariana diz que a poesia é sua liberdade espiritual. “Quando estou recitando está Mariana na maior plenitude que um ser humano pode ter”. Sem ritmo para cantar, admite, não decidiu seguir a carreira do pai. “Não faço profissão de poetisa, minha atividade é a universidade”. Mas quem disse que não há espaço para poesia no mundo acadêmico? Em um dos trabalhos da faculdade cujo tema era a maioridade penal, Mariana apresentou o seminário todinho em poesia. “Acredito no repente para aproximar os jovens dos temas, seja ele o mais polêmico ou delicado”. No facebook, ela administra uma página com mais de 100 pessoas dedicando-se a fazer e postar poesias na rede. “Você precisa vê: publico algo hoje e quando vou olhar, em minutos tem mais de 100 compartilhamentos”, empolga-se.

Pedro Ribeiro não admira-se do poder que a poesia popular tem entre os jovens, pois é fã e conhece de perto a abrangência da literatura de cordel e do repente. Por 25 anos pesquisou estilo por estilo dos versos feitos pelos violeiros e editou então o livro “Nos caminhos do repente”, uma verdadeira gramática para quem pretende entender a linguagem do repente. “Os pesquisadores franceses da universidade de Sorbonne, que estudavam o repente, ficaram impressionados porque os violeiros daqui faziam tantos estilos de cantorias e não sabiam porque levavam certas denominações”, conta Ribeiro que, mesmo com todo conhecimento e estudo sobre o assunto, diz que corre o risco de fazer feio numa peleja com um violeiro que nunca leu. “Se eu não tiver cuidado, apanho muito numa disputa. É impressionante a riqueza de vocabulário, a memória, a criatividade e o raciocínio de alguns violeiros que nunca estudaram. Como se explica cantar a noite inteira improvisando estrofes sem repeti-las? Que mente maravilhosa eles tem!”

Para o homem que levou muitos anos de vida acadêmica, não há teoria nem pensador que se iguale a abrangência da comunicação, característica da literatura de cordel e do repente. “O assunto mais profundo e delicado pode ser exposto de maneira acessível ao homem mais simples do mundo e ele entenderá. É popular, é a cultura”.

 

E foi essa simplicidade profunda e atraente do repente que tomou de conta da Praça da Bandeira, nos últimos dias de agosto deste ano. Pelo menos por três dias, Teresina foi pátria do verso, em clima de festejo – havia barriquinhas de comidas típicas, jogos de azar, venda de cordel e DVDs de cantorias – cerca de 20 duplas de violeiros se apresentaram por noite no palco do teatro de arena para um público cativo, familiar e humilde. Este ano, o Festival de Violeiros levou o nome de Domingos Martins da Fonseca, considerado um dos maiores repentistas do Brasil. Ele nasceu em Miguel Alves e tem hoje seus escritos estudados por pesquisadores de poesia popular em todo o mundo. É dele a estátua na Praça da Bandeira: em pé, com porte do violão, Domingos aparece de postura firme. Era negro e por quase toda a vida viu de perto a pobreza – se vivo fosse, teria completado 100 anos no último 12 de junho. Faleceu de doença, na miséria, mas nunca se importou com a pobreza. Certa vez, durante uma cantoria, foi provocado pelo repentista Dimas Batista que disse: “Domingos além de pobre pertence a triste cor”. Fazendo jus a alcunha que levava, de “armazém do improviso”, prontamente respondeu: “Falar de pobreza e cor / É um grande orgulho seu / Morra eu e morra o nobre / Enterre-se o rico e eu / Que amanhã ninguém separa / O pó do branco do meu”.

(Matéria publicada na Revestrés#10 – setembro/outubro de 2013)