Não se espante se um dia você encontrar o Quaresma, vocalista da banda Validauté, dando duro atrás das câmeras. O Thiago E também pode ser constantemente flagrado com um crachá do Ministério Público. Júnior Caixão deveras já foi visto passando troco em um bar ou vendendo urna funerária. Validuaté, a banda piauiense que aparece em terceiro lugar na Pesquisa Revestrés/Amostragem de Cultura, tem um lado oculto curioso que pretendemos revelar agora.

Dois discos, um DVD à vista e shows semanais lotados – quase ninguém em Teresina desconhece hoje o som da banda cujo nascimento divide-se em espaços (e histórias) diferentes. Quaresma, Thiago e Vazin (editor de vídeo/ilustrador, funcionário público e professor, respectivamente) são contemporâneos de universidade – “Eu e Quaresma chegamos a assistir algumas aulas juntos, eu fazia Letras Português, e ele Português-Inglês”, conta Thiago E, do cavaquinho e pandeiro. Hoje, Vazin é o único que segue na licenciatura. A desenvoltura com as guitarras é a mesma com os livros de geografia.

O embrião da Validuaté pode ter vindo ainda de União. Embora nenhum dos integrantes da Vali seja natural do município a 56 quilômetros de Teresina, foi lá que Júnior conheceu Quaresma. Na cidade, a família do guitarrista comanda há mais de 30 anos uma funerária – daí seu apelido-sobrenome, “Caixão”. Há 13 anos ele montou por lá um bar e restaurante chamado “Recanto do caranguejo”. Foi ali que a dupla deu os primeiros acordes.

Em Teresina, tocamos muito na praça de alimentação do shopping, no final dos anos 90. Era música com cheiro de churrasco.

Quaresma.

“Em Teresina, tocamos muito na praça de alimentação do shopping, no final dos anos 90, começo de dois mil”, diz Júnior. “Era música com cheiro de churrasco”, completa Quaresma. Mais ou menos à essa época, a dupla inscreveu-se no Festival de Música Chapadão e venceu com “Bicho do Mato” – a primeira música oficial da Validuaté.

Thiago, Quaresma e Wagner – o primeiro baixista da banda – dividiam o mesmo CEP: ambos moraram na zona Norte de Teresina. “Fui muito de bike à casa dos meninos e foram nessas visitas que surgiram as primeiras músicas e os primeiros ensaios”, relembra Thiago E. São da época: “Ela é”, “Céu” e “Pelos pátios partidos em festa”.

Onze anos depois desse começo, os amigos se encontram mais para compromissos da banda. Ensaiam em estúdio aos fins de semana. “No Vazin eu vou comer feijão em dias comemorativos, no Júnior quando estou lá por União e passo pra tomar uma cervejinha”, conta o vocalista, Quaresma. Um lugar, uma banda, e as semelhanças param por aí.

O gosto musical de seus integrantes provam que a Validuaté é movimento e mistura. Thiago gosta de uma música “oculta” brasileira: Jorge Mautner, Premeditando Breck, Itamar Assunção. Não abre mão do samba e pagode – de onde vem inspiração para o cavaquinho. Ele vai de letra, Quaresma, melodia. “Acaba somando, equilibrando”, diz o vocalista.

Quaresma, aliás, é o rei do disco novo. “Lançou, quero ouvir”, diz, reforçando o interesse por bons arranjos. O baixista Davi Scooby, integrante mais recente da banda, vem de uma formação bossanovista, com pitadas de samba e baião. “Um negócio bem brasileirão mesmo”. Além disso, há o instrumental, estilo de forte predileção que gerou seu disco solo recentemente lançado.

Júnior Caixão vai de Nirvana e Linkin Park a forró das antigas – passando pelo som do barzinho. Já John Well, o baterista, se amarra em reggae e torce o nariz para pagode e sertanejo. O Vazin você pode encontrar, por acaso, na fila das Americanas com “50 sucessos dos anos 80” na mão. “Minha relação com a música sempre foi promíscua mesmo”, afirma, listando nomes do metal a música erudita. “Na hora da louça boto até Roberta Sá”.

Junto

Uma década de estrada depois, vão-se os shows e ficam as histórias que marcaram. “E algumas deixaram marcas mesmo, como aquele show de lançamento do nosso primeiro CD, no teatro, que um refletor quase caiu na cabeça do Thiago”, diz Vazin levantando riso geral.

As apresentações no extinto Piauí Pop, no Artes de Março, e no Salão do Livro do Piauí são algumas que compõem a memória coletiva dos músicos. “Foi lindo um show no Festival de Inverno de Pedro II, em 2011. Choveu muito, mas todo mundo ficou lá até o fim e foi maravilhoso, um calor apesar do frio”, recorda Júnior Caixão.

Para Thiago E, inesquecível foi pisar pela primeira vez em um palco grande, no Centro de Artesanato de Teresina (anos mais tarde a banda gravaria ali seu primeiro DVD ao vivo), em 2005. “A gente já tinha estreado como Validuaté no Boca da Noite, mas foi o primeiro show grande, dentro de um evento como o Teresina Rock”, diz. Em extase com a apresentação, o poeta decorou o palco com um rolo de papel higiênico. “Eu pensei: cara, algo muito diferente tem que acontecer na porra desse palco!”, conta entre sua característica gargalhada.

O álbum “Alegria girar” veio dois anos após o primeiro (“Pelos pátios partidos em festa”) e traz parcerias com o pernambucano Lirinha e o cantor Zéu Britto – além das narrações de Ferreira Gullar e Isaac Bardavid. A Validuaté começa a se comunicar para além da janela, quebra a barreira do regional. Vieram gravações de clipes (“Eu te considerava tanto”, “Plaina Maravalha” e “A onda”, disponíveis no Youtube – este último esteve na faixa da MTV em 2011), o lançamento de um EP (“Este lado para cima”, 2013) e uma lista no site nacional Buzzfeed divulgando-a como uma das “15 bandas brasileiras que não deixam o rock morrer”.

No facebook são quase 10 mil likes na página da banda – em 2014, quando a Validuaté inscreveu no Catarse um projeto de captação de recursos para a gravacão do DVD, a banda recebeu doações de vários cantos do país. O fã clube, além de organizar eventos, investe em campanhas para que a os meninos arrisquem voos mais altos – #validuaténojô ou #valinosuperstar foram algumas das hashtags levandas.

O convite para participar da disputa de bandas na TV Globo chegou, de surpresa, no e-mail da banda. “Chegamos a ir para uma seletiva em Fortaleza, no ano passado, e esse ano nos chamaram novamente, mas decidimos não participar”, revela Quaresma. “Por uma série de questões nossas: nos dedicarmos ao DVD, finalizar, lançar e também pelo formato do programa”. “Somos uma banda bem resolvida em tocar as nossas músicas, em fazer as nossas versões, e me parece que eles querem uma banda meio ‘total flex’, que possa tocar qualquer coisa”, defende Thiago. “A gente realmente não é esse tipo de banda”.

Um hino para a pós-modernidade

“Se a gente não tocar ‘Eu só quero acabar com você’…”, “As pessoas acabam com a gente!”. Thiago completa a frase do Quaresma, com a mesma sintonia presente nos shows do sexteto pop-rock-brega-samba. Na lista de músicas mais pedidas, ocupa o primeiro lugar, disparada, a canção de desamor composta por Thiago E.

“Cortesia”, uma ode à cidade de União composta por Quaresma, também é uma constante entre o público – seguida por “Eu preciso é de você”, canção de Márcio Greyck lançada em 1971 e uma das poucas versões que a banda faz nos shows. “A gente sempre cita o nome dos compositores, porque são poucos os que a gente toca. André Abujamra, Tom Zé, Márcio Greyck, Luiz Tatit”, diz Quaresma. “Mas ainda tem muita gente que acha que a música é nossa”.

Não por acaso, a curiosidade dos teresinenses sobre Jorge Mautner certamente aumentou depois que Thiago começou a invocá-lo nos shows – “Ei mãe, ei mãe! Quando eu crescer eu quero ser o Jorge Mautner!” – grita o poeta ao final de “Superbonder”. “São pequenas sementes do bem que a gente vai plantando”, ri.

Superbonder, aliás, uma das primeiras músicas a chamar atenção para a banda que surgia há pouco mais de uma década, é uma letra constantemente (e secretamente) revisada na cabeça de Thiago, seu autor. “Eu adoro a música, é uma das minhas preferidas”, comenta. “Mas tem coisas na letra que eu acho que falei demais. Hoje eu teria um pouco mais de calma”, reflete, sorrindo. “Quando você começa a fazer algo empolgado, quer botar tudo de uma vez só, e aí você vai aprendendo que a arte não funciona dessa forma”.

 

Na autocrítica do compositor, o mesmo vale para “Alegria girar”. “Eu acho que forcei uma barra em algumas junções de palavras, mas, ao mesmo tempo, entendo que musicalmente ela é importante para a banda”, diz Thiago. “Eu tive que brigar pra ela entrar no disco!”, entrega o guitarrista Vazin.

John tem preferência pela pegada reggae de “Podes crer na dúvida”, mas, se lhe fosse dada a opção, descartaria “Junto” do repertório. “O que enjoa, na verdade, não é a música, mas a repetição”, explica Scooby. “Às vezes a mesma música que a gente tá enjoando, quando escuta ela na rádio acha super legal”, revela Júnior.

Quaresma não desdenha de nenhuma, embora confesse ter suas preferidas. “Variam de disco pra disco, mas ultimamente tenho gostado muito de duas do nosso último EP: ‘Eu te considerava tanto’ e ‘Vamos ver o sol, barão’”. Com o otimismo de quem ainda tem muito a trilhar, ele não se entrega. “Eu acho muito cedo pra desgostar das minhas músicas. A gente vai abusar delas tocando só no Piauí? Ainda tem o Brasil todo pra gente tocar!”, pondera num mix de pretensão e timidez. “Não posso me dar ao luxo de cansar agora”.

(Publicada na Revestrés #20, jul-ago de 2015)