Em uma rápida pesquisa de internet, ao digitar “zona leste de São Paulo” e “zona sul de São Paulo”, a palavra “morte” e notícias derivadas apareceram 10 vezes relacionadas à primeira região, enquanto na segunda, apenas duas. Nos dados do Mapa da Desigualdade 2019, divulgado pela Rede Nossa São Paulo, no leste paulistano é possível encontrar bairros como o Cidade Tiradentes, onde se vive, em média, 23,3 anos a menos que na parte nobre sul. Na “quebrada” a vida desafia o corpo humano a se manter de pé.  

Paris, 28 mai 2019. Portrait de Linn Da Quebrada.

Estar viva para dançar, performar, cantar, escrever, atuar e trançar o seu destino com os de outros corpos. Como o cabelo com tranças que ostentava quando fez show em Teresina. Linn, paulistana, 29 anos, representa a si mesma, mas seu nome tem sido ovacionado no cenário artístico brasileiro como ícone, despontando em representatividade. Lina Pereira é Linn da Quebrada, ou a terrorista de gênero, nascida na zona leste de São Paulo e com vontade de conquistar o mundo. Ela esteve em Teresina durante a 5ª edição do JUNTA – Festival Internacional de Dança, que discutiu o “Político-Real-Virtual” por meio das ações e espetáculos.  

“Meu trabalho é de encontros e minha definição surge do que vem me transformando nesses dois anos de disco e três de shows. Curiosa, inquieta e em busca de possibilidades para materializar minhas ideias, sabendo que não consigo fazer nada sozinha”. Segura nas ideias e palavras, Linn da Quebrada explica que as redes de apoio são importantes na construção do trabalho, bem como nas relações estabelecidas com parceiros e público.  

 Deus é essa palavra formada por “eus” e só posso acreditar em um Deus que também acredite na minha existência

Figurando na música eletrônica e experimental a partir de misturas do pop com o funk, entre outros estilos, sua música já chegou a países como México, França, Inglaterra, Alemanha, Portugal e Noruega, incluindo uma apresentação no festival espanhol Primavera Sound, em 2019. O disco de estreia, Pajubá (2017 – independente), apresenta letras fortes, sem rodeios ao falar de desejos, medos, sobre essência feminina, de enfrentamentos ao machismo e, como ela declara, contra o “sistema cis-hetero normativo patriarcal”. Na faixa Bixa Travesty, canta: “Eu já cansei de falar/ Já perdi a paciência/ Você finge não escutar/ Abusa da minha inteligência/ Mas eu tô ligada/ Seu processo é muito lento/ Vou tentar te explicar mais uma vez o fundamento/ E se você não aceitar/ Pode doer/ Pode machucar/ Que eu nem lamento”.  

Seu corpo, considerado proibido, perdeu a paciência aos 17 anos. Criada por uma tia até os 12, Linn cresceu sob forte influência religiosa e frequentava o Salão do Reino das Testemunhas de Jeová. Nas lembranças se misturam as compreensões sobre o aprisionamento da identidade de gênero e da sexualidade, mas também dos laços familiares e comunitários que vivenciou.  

Quanto mais pessoas distantes do universo LGBTQIA+ se aproximarem do que estamos fazendo, mais isso contribuirá para a construção de outros parâmetros de sociedade.  

“A religião foi importante em diversos sentidos, mas estava privando meu corpo, proibido a mim mesma. Continuo tendo um processo religioso que diz mais respeito ao fato de me reconectar comigo mesma. É de onde percebo que devo estar reconectada com minhas parcerias, com minha ancestralidade e minhas raízes”, afirma.  

A experiência espiritual é sentida, segundo Linn, nos seus shows, ao compreendê-los como grandes espaços de culto e com um conceito pessoal de Deus. “Deus é essa palavra formada por “eus” e só posso acreditar em um Deus que também acredite na minha existência. Meu trabalho cria minha possibilidade de vida, e de vidas como a minha”.  

Após ter enfrentado um câncer de testículo, aos 23 anos, a “Bixa Travesty” virou protagonista de filme. Este é também o título do documentário que conta a história de Linn da Quebrada, dirigido po Kiko Goifman e Claudia Priscilla. Em Berlim, dentro do Berlinale de 2018, Linn conquistou o Teddy Awards de Melhor Documentário Estrangeiro, entre mais de uma dezena de premiações nacionais e internacionais do projeto em que Linn protagonizou e roteirizou.  

“Venho fazendo cinema desde Corpo Elétrico. Venho me encantando com a ideia de produzir cinema, porque entendo a importância de criar e reinventar um novo imaginário social e dar novas imagens aos nossos corpos em uma disputa narrativa de histórias”, explica sobre o papel do cinema na sua trajetória. Linn fala que seu interesse vai além da conquista do espaço, sobre como utilizar a visibilidade dada pelo audiovisual, assim como na música. 

Do cinema, Linn da Quebrada partiu para a televisão. Ao lado de Jup do Bairro (backing vocal na banda), ela está no talk show TransMissão, que estreou em 2019 no Canal Brasil (Globosat) e também integra o elenco da série inédita Segunda Chamada (Rede Globo). Sempre pronta para as batalhas, ela reforça o discurso interessado em “expandir o universo e meu corpo, para que cada vez mais pensemos nos nossos corpos marginalizados, desobedientes, transvestigeneros (unindo as palavras travesti e transgênero), pretos, e possamos ligar esses corpos com outros territórios e outras imagens”.  

Questionada sobre localizar-se em um segmento de mercado e representar a cultura LGBTQIA+, Linn da Quebrada fala que atua como agente cultural e que trabalha em nome do todo. Falar do corpo e de suas possibilidades, para ela, não é colocá-lo como objetivo final de suas realizações artísticas: revela ter intenção de falar sobre vida para além do gênero e da sexualidade. “Temos de expandir e entender que, quanto mais pessoas distantes do universo LGBTQIA+ se aproximarem do que estamos fazendo, mais isso contribuirá para a construção de outros parâmetros de sociedade”.  

Publicado na Revestrés#44 – novembro-dezembro de 2019.

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