“Ô seu Adeilto, tá na escuta?”, a pergunta precede o aperto sonoro do botão no walkie-talkie, uma engenhoca analógica que, apesar de toda tecnologia disponível, segue útil. “Tem uma jornalista aqui e ela quer conhecer a biblioteca de vocês, pode acompanhá-la?”, consulta o síndico. A voz do outro lado entrega um tom de empolgação que contrasta com a resposta quase mecânica: “Positivo, senhor”.  

No primeiro piso do bloco F está a sala de comandos do Edifício Copan, esse gigante projetado em S por Niemeyer, bem no centro de São Paulo – precisamente no número 200 da Avenida Ipiranga. É dali que Affonso Celso, síndico há mais de duas décadas, resolve os pepinos e faz rodar a engrenagem de concreto formada de gente. 

Colagem: Jéssica Roriz

 

Mais de 5 mil pessoas moram no edifício, divididas em 1.160 apartamentos, num complexo de seis torres. Erguido em 1960, o Copan (o nome vem da empresa que o encomendou, a Companhia Pan-americana de Hotéis) preservou seus detalhes originais, como os brise-soleils e a sala de máquinas – o mesmo não vale, no entanto, para seus moradores, volúveis e imprevisíveis.  

Além das gratas surpresas arquitetônicas, o Copan esconde uma cápsula do tempo no seu subsolo: é ali, numa pequena sala onde os mais de 100 funcionários fazem suas refeições, que se desenha uma improvável biblioteca. Da porta de entrada até o fundo, tocando o teto, uma prateleira tímida quebra o branco da parede com títulos que outrora preencheram as estantes que preencheram apartamentos que preenchem o Copan. 

Os títulos são tão ecléticos quanto os seus ex-donos. Na última década, recuperando-se da recessão imobiliária que desvalorizou imóveis no centro de São Paulo – inclusive de cartão-postal – o Copan passou a ser a Meca dos hipsters – aquele pessoal de camisa quadriculada e óculos diferentões, que geralmente trabalha com publicidade, tem uma samambaia e tem uma leve preferência por apartamentos velhos e com chão de taco. 

“O dono da Livraria Cultura mora aqui no prédio e ele trazia livros emprestados pra gente ler” – quem fala é Adeilto, o guia dessa excursão pela biblioteca particular do Copan. Baiano, veio para a capital paulista há 40 anos – há 24 trabalha como encarregado de portaria no edifício. “De certa forma foi ele que começou, mas depois foram juntando muitos livros descartados por moradores, antigos ou atuais”.  

O perfil diverso do edifício – que tem de kitnets a apartamentos luxuosos de 200 metros quadrados – é refletido no descarte de leitura de seus novos ou velhos habitantes. Nas prateleiras, clássicos da literatura portuguesa, como Eça de Queiroz, dividem espaço com best-sellers e autoajuda – há ainda calhamaços de Vade Mecum e almanaques de redação, denunciando o fluxo de jornalistas intransigentes que passaram por ali.  

“Eu já li esse”, diz Adeilto quando a repórter retira da prateleira um exemplar de “O ateu”, escrito por Antônio Carlos. “É um romance espírita, mas não gostei muito não”, completa. Adeilto mora a uma hora e meia de distância do Copan e, habitué da biblioteca, costuma usar o tempo gasto na condução para ler os livros tomados de empréstimo. “Não gosto de ler essas letrinhas miúdas no celular, não”. 

Ao contrário de Adeilto, a maioria dos funcionários prefere passar o tempo livre distraído entre vídeos no Youtube e mensagens instantâneas no celular. “Uma vez eu peguei um livro desses, mas não gostei muito não”, intromete-se Ronildo, sentado na ponta da comprida mesa de madeira onde funcionários do Copan fazem as refeições. “Acho que não sou muito de leitura”, conclui. Seu livro traumático foi Aristóteles. 

Edgar dos Anjos, porteiro do bloco B, nas horas vagas faz as vezes de bibliotecário arrumando os livros que ajuda a catar por gênero e ordem alfabética. “A maioria aqui não é doação, não”, revela. “Livro quando tem algum valor, a pessoa revende”, explica, acreditando que o acervo do prédio soma mais de mil títulos. “Quase todos os livros aqui foram achados no lixo pela equipe de limpeza. Eles ficam com pena de mandar para o descarte”.  

Entre livros de poesia, romances e todos os números da enciclopédia Barsa, estão seis edições de O Capital, de Karl Marx. O marco do pensamento socialista marxista está ali em suas versões completas e divididas em capítulos – um dos exemplares é de 1984 e, como o bilhete na garrafa, traz na folha de rosto um vestígio esferográfico: a assinatura de Cidinha, em caneta azul. A oferta impacta mesmo a procura – o que Marx não previu, no entanto, foi concorrer com o Whatsapp.  

Publicado na Revestrés#44.

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