Foto: Maurício Pokemon

Na Santa Maria da Codipi

Final da tarde de domingo no extremo norte de Teresina. Um grupo de jovens se reúne em uma das praças públicas do bairro Francisca Trindade para realizar uma ação de grafitagem promovida pelo Coletivo Ruaz. Em uma das mãos um spray e na outra o papel rabiscado com o desenho que estava tomando forma na parede. O chão repleto de pontos coloridos que escorriam de garrafas de plástico cheias de tinta. Homens e mulheres juntos levando tarde a dentro o fazer artístico com diversão e se preparando para a apresentação de artistas do bairro durante a noite. Alguns moradores observam curiosos o que se passa naquele lugar que dias antes foi palco de desavenças entre dois rapazes, levando um deles à morte.

O bairro faz parte da grande Santa Maria da Codipi. O local é recorrente nos noticiários pela prisão de traficantes e apreensão de drogas. Mas o que muita gente não sabe é que, por entre aquelas ruas pouco ordenadas, a arte e a vontade de mudança por meio da cultura é o que faz a cabeça de jovens que cresceram ouvindo histórias sobre violência e falta de oportunidade.

“O bairro sempre se destacou de forma negativa, seja por problemas com a falta de saneamento ou pela violência. Muitas vezes quem mora lá não se enxerga nessa realidade que é mostrada na mídia. A gente mora em um bairro que tem um valor cultural muito rico”, enfatiza Fleibert Rodrigues, educador social, fazendo referência as atividades de grafite, hip hop, dança, capoeira e outras que acontecem na região, promovidas por Coletivos Culturais como o Ruaz.

Os Coletivos nasceram da necessidade de mostrar que na Santa Maria da Codipi moravam vários jovens com potencial artístico e cultural. Realizando atividades sem uma frequência exata, eles pretendem utilizar a arte para debater o que acontece na comunidade e trazer para os moradores uma visão de mundo ampla e crítica.

O primeiro a surgir foi o grupo Raças que há doze anos é responsável por um festival afro cultural que acontece dentro da semana da Consciência Negra, no mês de novembro, e reúne pessoas de todas as idades e bairros. Realizado em um único dia com apresentações culturais de grupos de hip hop, reggae, dança e a realização de oficinas e debates, o evento é uma manifestação da própria comunidade que ocupa a principal praça do bairro e convida as pessoas a questionarem temas que dizem respeito ao seu cotidiano. Além dele, o Coletivo também organiza há dois anos o Luau na Praça, no mês de agosto.

Mas eles não se limitam a data desses eventos. Atividades culturais são realizadas durante todo o ano, construídas de forma democrática, em conjunto com a comunidade, de acordo com temas escolhidos. Em 2015 o grupo Raças debateu o extermínio de jovens na periferia. Este ano o tema principal é evasão escolar. “A nossa preocupação é trazer o jovem para a comunidade, fazendo ele enxergar que o que a gente tem aqui é válido para ele. E a forma mais eficaz dele se defender é se auto educando e se envolvendo com as atividades culturais”, comenta Cássia Gomes, 23 anos, uma das quinze integrantes do Coletivo.

A medida que os eventos organizados pelo Raças foram crescendo, eles ganharam a confiança dos moradores. “A própria comunidade cobra a realização do festival afro cultural e alguns comerciantes locais passaram a ajudar   financeiramente”, conta Janiele França da Silva, no grupo desde a sua fundação.

O engajamento e atividades do Raças acabaram influenciando o surgimento de outros coletivos como o Reação do Gueto, grupo de hip hop que desde 2009 utiliza a voz para retratar vivências da periferia, que passam por drogas, crime, política e desigualdades. “A gente busca, por meio do nosso som, cobrar melhorias do poder público”, diz Nêgo Doka, um dos integrantes.

Para Kacau, um dos articuladores dos movimentos do bairro, utilizar a música para denunciar a situação da região é a principal ferramenta de luta e resistência de alguns Coletivos. “O rap traz a oportunidade do jovem ser escutado. Se ele fosse reivindicar algo para o vereador ou o presidente da associação do bairro, dificilmente seria ouvido. Mas quando ele transforma isso em poesia e expõe em um rap inflamado, consegue ser ouvido e passar a mensagem para mais pessoas”.

O grupo de hip hop também acredita que o senso crítico da comunidade pode ser apurado por meio da exibição de filmes e em atividades que integrem família e jovens. Anualmente o Reação do Gueto promove o Hip Hop Acontece, que está na sua sétima edição, e o Festival de Pipas.

Na Santa Maria da Codipi a união de todos os coletivos da região é conhecida como “Comunidade e Resistência”, que também inclui o grupo de capoeira Raízes e o grupo de dança Desumanos. “Organizar como um coletivo é uma válvula de escape, é essa minha motivação. Eu vejo como uma saída para sobreviver no meio de tudo isso que está acontecendo”, desabafa Kacau.

Depois de três anos os Coletivos do bairro conseguiram um espaço fixo. O Centro de Produção da Santa Maria da Codipi, localizado em frente a praça principal, mesmo sem a estrutura ideal, tornou-se ponto de encontro, exibição de filmes e oficinas artísticas e esportivas.

Autonomia, precariedade e busca de visibilidade

A ideia de grupos não tão definidos e que estão sempre se articulando para promover atividades artísticas não é um fenômeno novo. Mas, segundo Guga Carvalho, produtor cultural e mestre em Estética e História da Arte, é algo que vem ganhando visibilidade, sem perder a autonomia e o desejo de mudanças característicos. “Os coletivos são grupos organizados de maneira mais horizontal, menos hierárquica, muitas vezes com um objetivo específico, como produzir um evento periódico, como sarau, e fazer jornadas de grafite, por exemplo”, explica.

Afronto.

Afronto

Para Guga a união de várias pessoas em um só grupo acaba por dá maior visibilidade às mudanças desejadas. “Um coletivo dá ao jovem uma voz que solitariamente ele não teria, isso sem precisar de uma estrutura “careta” de uma associação de bairro ou algo do tipo”, enfatiza.

Desvinculados de qualquer tipo de empresa e instituição, os Coletivos agem de forma independente e assim estão livres para decidir como se articular e o que denunciar e reivindicar por meio de suas produções. Autônomos, são os jovens que escolhem que ferramentas serão utilizadas em busca de visibilidade. Por serem eles os protagonistas da história da periferia o diálogo com a comunidade acontece de forma mais simples e direta.

Entretanto, essa forma de agir limita os possíveis investimentos financeiros, e os gastos com a realização dos eventos acabam saindo do bolso dos próprios organizadores. Isso inviabiliza a efetivação de outras atividades culturais diferentes das que já realizam.

Pensando nisso, Coletivos mais articulados buscam parcerias com o poder público e tentam obter recursos por meio do financiamento de projetos em editais culturais oferecidos por entidades públicas e privadas.

“Há muito que os coletivos mantêm vínculos com o poder público em algum momento. É quando eles começam a entender melhor como se dão os caminhos da política cultural. E entender como a banda toca ou poderia tocar é essencial para quem quer ter voz na cultura”, comenta Guga Carvalho.

Essa foi a forma encontrada pelos jovens que ajudam a manter a Casa do Hip Hop, localizada no Parque Piauí, zona sul de Teresina. Segundo WG, integrante do grupo de rap Afronto e um dos responsáveis pelo local, a necessidade de compartilhar as ideias do Coletivo que se reunia na década de 90 na praça Pedro II, centro da cidade, e ter um local fixo para desenvolver atividades voltadas à cultura do hip hop fez com que eles buscassem um endereço fixo para então tentar recursos por meio de editais culturais.

“A gente já estava há dez anos na rua e sentia a necessidade de ter um estúdio e um ponto fixo. Foi quando, em 2004, descobrimos esse lugar (refere-se a uma escola pública que estava em situação de abandono). A gente ocupou o espaço, começamos a reformar com nossas mãos, sem projeto. Em 2006 conseguimos aprovar o primeiro edital, e depois outros e outros, sempre focados na cultura hip hop e buscando agregar grafite, dança, oficina de audiovisual, tecnologia”, conta WG.

Com 12 anos de existência, a Casa do Hip Hop já aprovou projetos em quase 10 editais e foi palco do maior encontro de Pontos e Entidades de Cultura do Norte e Nordeste, com participações também do Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Mesmo ofertando cursos diversos e buscando se legitimar por meio dos editais conquistados, o grupo reclama que sofre com a desconfiança de parte da população do Parque Piauí, que ainda dúvida do trabalho realizado ali.

Após uma recente reforma inacabada, o local oferece oficinas gratuitas de dança e grafite. Na programação constam ainda cursos de DJ e computação gráfica. Com um estúdio de multimídia, a Casa recebe grupos de rap de toda a cidade para gravação de músicas, com preço a combinar com o técnico.

As atividades do coletivo Casa do Hip Hop são pensadas por um grupo de 12 pessoas. Eles acreditam que por meio da música e atividades afins podem transformar a rotina dos jovens da periferia. “O hip hop é uma cultura que nasceu na comunidade. Ele levanta a estima das pessoas e proporciona momentos de convivência através da sua própria cultura”, defende WG.

Do Carnaval à resistência

As produções independentes dos Coletivos Culturais contribuem com a preservação e valorização da identidade das comunidades. Eles têm um papel importante, sobretudo na periferia e em lugares onde muitas vezes o poder público não chega. Encarnam a missão de valorizar traços culturais particulares, tentando influir na mudança da realidade e no combate a repressões e preconceitos. Foi partindo desse princípio que o grupo Coisa de Nêgo surgiu há mais de 25 anos, inicialmente como um bloco carnavalesco. À medida que foi crescendo e se reafirmando dentro da sociedade, transformou-se em um Coletivo cultural e político que luta por causas do movimento negro.

Coisa de Nego

Coisa de Nego

“Nós somos um grupo cultural que por meio da dança, música, vestuário, busca retratar o empoderamento dos negros enquanto identidade, história e religiosidade. Somos também um grupo político, que tem participação em Conselhos e Fóruns, e nesses espaços a gente consegue propor ações para essas comunidades que ainda não são prioridade”, explica Gilvano Quadros, integrante do Coisa de Nêgo desde a sua criação.

A maioria dos atuais 50 integrantes do Coisa de Nêgo reside na Zona Norte de Teresina, mas eles promovem ações em vários bairros e também em cidades do interior do Piauí.

Conhecidos pela beleza das danças afro que promovem, eles também trabalham politicamente a questão racial por meio de oficinas e cursos de estética negra, fotografia, filmagem, percussão, canto. O Coisa de Nêgo ainda foi o responsável por mapear os quilombos existentes no Piauí. “Em todo o Estado nós já mapeamos 187 comunidades quilombolas”, destaca Gilvano.

Entre os mais antigos coletivos culturais em atividade na capital do Piauí, o Coisa de Nêgo já teve a experiência de manter um local fixo, mas atualmente suas atividades são realizadas em espaços públicos. Apesar dos avanços e conquistas, com diversas parcerias firmadas com a gestão pública, os integrantes do grupo reconhecem as dificuldades que os movimentos que vêm da periferia enfrentam na busca de patrocínio ou apoio às atividades que realizam

“A partir do Coisa de Nêgo a cultura negra teve acesso a espaços até então não penetrados por nenhum outro grupo voltado à questão racial. Nós falamos disso o tempo todo, por meio da música, dos trajes, adereços, religiosidade”, afirma Jorge Luiz, atual coordenador do Coletivo. “Ainda faltam tantas coisas. Mas hoje podemos colocar em palavras o que somos, de onde viemos, o que queremos”.

(Reportagem publicada na Revestrés#26 – Agosto/Setembro 2016)