Não é de hoje que a nudez está na arte, nas ruas, na propaganda. O primeiro boato de gente nua de que se tem notícia é Adão e Eva ou, para quem prefere uma versão científica, os homens primitivos já registravam não só cenas de cópulas, mas de partos, entre outros acontecimentos que supõem a nudez em pinturas rupestres.
Mas enquanto enfrentamos até hoje inúmeros tabus relacionados à nudez e ao próprio corpo, desde os primórdios a arte tem mostrado que o corpo pode ser mais do que a ordem vigente quer: o corpo pode ser desobediente. Artistas esculpiram o nu, pintaram o erótico, enfrentaram censura ou fizeram do próprio corpo templo do risco, do experimento e até do escatológico. Revestrés seguiu em busca de saber: quem determina os limites do corpo na arte?
A dimensão do corpo
Uma das mais antigas figuras humanas conhecidas, datada de c. 25000-20000 a.C, é a Vênus de Willendorf que, hoje, está no Museu de História Natural de Viena. Os seios enormes e o ventre protuberante constituem várias esferas que provavelmente simbolizavam a fertilidade e a abundância. Entre outros artefatos que já indicavam a representação da nudez estão pinturas e esculturas de templos indianos, gravuras japonesas de séculos atrás e os afrescos de Pompéia, explícitos no que diz respeito à vida sexual da Roma Antiga.
Porém, foram os gregos que introduziram o nu na arte. Na Idade Média, no entanto, o corpo passou a ser enxergado como símbolo de vergonha, decadência e apetites instintivos, enquanto a alma estaria relacionada à permanência, à plenitude, ao conhecimento e ao bem. A representação do nu só voltou a ser valorizada nas escolas de arte do Renascimento com a expansão do conhecimento científico. Daí em diante, o estudo do corpo nu se tornou a base do ensino artístico até final do século XIX, com a influência do ideal grego de juventude eterna, padrão predominante nos museus e galerias mundo afora.
Do final do século XX ao início do século XXI, a arte passou a usar outros critérios. O momento reforçava padrões veiculados pela mídia e publicidade, fortalecendo a ideia de que é obrigatório permanecer jovem e esbelto. Desde então, artistas no mundo todo têm tentado superar a ambiguidade entre belo e feio, assimilando outros discursos menos dicotômicos.
O corpo nu é catalisador de sensações, acorda no outro o sentimento do próprio corpo ou sinaliza um estado de desconexão – Lina do Carmo, bailarina e coreógrafa
“O corpo é altamente controlado e estigmatizado, manipulado e premiado: ‘curti’, ‘não-curti’, clica-se todo dia”, diz Lina do Carmo, mestre em dança pela Université Paris VIII e doutoranda com pesquisa de tese em artes cênicas pela Université BFC-Bourgogne-Franche-Comté.
Em um mundo dito civilizado, a nudez não é considerada normal. “O corpo nu é catalisador de sensações diversas e intensas. A arte do corpo não complica só pelo fato de experienciar a nudez mas porque a recepção do corpo em cena é sempre um termômetro da capacidade de recepção da sociedade. Acorda no outro o sentimento do próprio corpo ou sinaliza um estado de desconexão”, explica Lina do Carmo, também bailarina e coreógrafa. “A arte é andrógina, permite mesclar, reduzir, ampliar. A arte não limita, mas delimita um ponto de vista ou abre questões, por isto talvez seja difícil, ainda em nosso tempo, uma receptividade liberta dos padrões conservadores de imagens tais como as que rompem com falsos pudores”, diz.
Corpo moeda de compra e venda
No livro a Sociedade de Consumo, Jean Baudrillard argumenta que, mesmo o corpo sendo visto na idade moderna como lugar de prazer, o investimento para ter esse corpo ideal leva as pessoas a obsessões coletivas. Ou seja, os mitos da beleza e do consumo se equiparam ao que queria a Igreja na Idade Média: alienar o sujeito do corpo.
“Penso que quando lidamos com a nudez ‘crua’, sem uma estetização ‘padrão’, estamos lidando com nossos brios, com nossos medos”, diz Vanessa Daniele de Moraes, doutoranda em Comunicação pela UnB. “Estamos imbuídos de uma ideia de que nosso corpo fede, enquanto o capitalismo vende a ideia de um corpo asseado, cheiroso, magro e torneado. Porém, a arte não está preocupada com essa mensagem. Ela usa o corpo com outros propósitos: trazer a nudez como desprovimento de si”.
Pesquisadora das obras de Francisco Toledo, artista mexicano que confronta as ideias de gêneros e tradições, Vanessa Daniele de Moraes acredita que a nudez na arte pode ser transgressora quando derruba papeis impostos, verdades absolutas ou instiga a sociedade a pensar nas dicotomias. “O universo pictórico de Toledo descreve uma inquietante dualidade entre a realidade e o fantástico. Traz à cena o sagrado e o divino quando expõe atos sexuais ou escatológicos”, diz ela sobre o trabalho intitulado Francisco Toledo para adultos (2014), quando o artista reuniu desenhos e fotos usando revistas pornográficas para fazer sua intervenção artística. “A foto pornográfica profissional, não é, na verdade, fiel à nudez – ela, em si, já é uma manipulação da realidade: um clichê, um ideal de beleza”, afirma.
Não é de hoje que a nudez assumiu um tom erótico na arte. No século XVII, o pintor realista Gustave Courbet, à pedido de um diplomata, pintou o corpo nu feminino em sua forma mais literal, denoninando sua obra de “A Origem do Mundo” (1866). Em seguida e, cada vez de modo mais sofisticado, o erótico foi tema de uma infinidade de propósitos que passaram pela propaganda, arte e indústria pornográfica. Esta última já chegou a ganhar o rótulo de “chique” para descrever produtos mais comercializáveis como a revista masculina Playboy que, após 40 anos sendo publicada mensalmente pela Editora Abril, hoje circula bimestralmente após novo acordo com a editora PBB Entertainment no final de 2015.
“A exploração da sexualidade tem sido uma forma de expressar certa libertação de tabus. Neste sentido está o abuso do nu pornográfico que tem sido utilizado em tantas formas discursivas de impacto visual”, afirma Lina do Carmo.
Paralelamente, a partir dos anos 60 e 70, uma arte crítica e política praticada por mulheres, homossexuais e negros, buscava desmascarar comportamentos aceitos como naturais e universais nas relações sociais. Mulheres artistas que usam seu próprio corpo nu em performances como Carolee Schneemann e Marina Abramovic ou como a fotógrafa Cindy Sherman desestabilizaram conceitos hegemônicos.
Eu notei como as pessoas têm asco do corpo. O nu é algo tão natural, mas ao mesmo tempo estigmatizado – Lysmark Lial, artista visual
“A nudez começou a ser usada como artifício de contestação política, contra o establishment, principalmente no que tange à dominação masculina. O nu feminino, como algo que sempre foi proibido, ao contrário do masculino, é escancarado pra chocar as bases éticas e afetivas da sociedade consumidora de arte, que é a mesma fundamentada nesses valores masculinos”, diz Vanessa Daniele de Moraes.
Joga pedra na Geni
No dia 19 de setembro, os músicos curitibanos Ana Larousse e Leo Fressato participaram de show promovido pelo coletivo Salve Rainha no Parque da Cidadania, centro de Teresina. Na apresentação, os artistas ficaram nus em protesto a mudanças de governo e violência cometida contra gays, mulheres e negros. O ato gerou repercussão nas redes sociais, entre reações negativas e outras de apoio ao acontecimento, desencadeando uma reunião com o coletivo, convocada pela Prefeitura de Teresina.
“Eu só me pergunto o seguinte: por que a nudez chocou tanto num show onde falamos sobre violências e sobre como devemos nos unir para respeitarmos à todos? Por que não são essas violências contras as quais lutamos que revoltam as pessoas? Por que um ato bonito e cheio de amor contra a violência é motivo de tanta raiva?”, disse a cantora em publicação do Facebook na ocasião.
A pesquisadora Vanessa Daniele de Moraes pontua que vivemos uma censura disfarçada. “Hoje, a imaginação do artista pode ser expressa livremente. Mas a censura é implícita – sempre ligada aos bons costumes e à moral cristã. Essa censura velada está relacionada ao sentimento de culpa direcionada àqueles que se expressam livremente”, diz.
Lysmark Lial também se arriscou. Em cartaz durante o mês de julho no Sobrado, espaço cultural de Teresina, sua instalação Transgressão buscou transcender conceitos e questionar ideias. Resultado de uma convocatória para que os artistas interessados em participar mandassem nudes, a obra mesclou pintura, performance e interação nas redes sociais. “Eu passei a estar dentro do trabalho e notei como as pessoas têm asco do corpo e, ao mesmo tempo, sentem vergonha e desconforto por estar vestidas. O corpo nu é algo tão natural, mas ao mesmo tempo muito estigmatizado”, diz Lysmark.
O artista recebeu mais de 200 fotografias via Whats App após uma chamada no Instagram em que ele mesmo ficava nu. Depois de cerca de um mês de encontros, o trabalho consistia em oito pessoas encapuzadas e nuas tendo pendurados, sobre suas cabeças, discos que continham colagens das fotografias obtidas de maneira virtual. “Recebi imagens de pessoas que fotografavam para enfrentar a depressão, de quem encarava um câncer ou que já tinha sido abusada”, conta sobre a performance que recebia seis pessoas de cada vez para visitação e que poderiam permanecer por até seis minutos.
“O corpo como sujeito incomoda, pois o corpo é quase um desconhecido no dia a dia das pessoas. A nudez é trabalhada a bom preço nos comerciais servindo ao apetite da máquina de fazer, do ser humano, bagaço. Quando o artista se compromete em ser testemunha de algo que revele este sistema pervertido logo se arrisca a ser entendido por uma pequena minoria”, diz Lina do Carmo.
Diretora do Festival Interartes, realizado nos anos de 2003 e 2004 no Parque Nacional Serra da Capivara (PI), Lina enfrentou a repercussão da performance O Samba do Crioulo Doido, do artista paulista Luiz de Abreu, que fez da bandeira brasileira uma continuação do seu corpo nu. Em 2003, transmitido na íntegra pela Rede Meio Norte, a obra recebeu inúmeras críticas. No mesmo ano, o festival recebeu o Prêmio Multicultural Estadão.
Lina do Carmo completa: “Teresina é uma cidade trágica, visto o número de suicídio jovem. Nisto, repercute a insistência por uma rigidez e conservadorismo fora de época”, diz ela. “Aqui em Teresina, vivi o mais alto grau de censura, conheci a turbulência causada pela nudez do Luiz de Abreu, artista negro que desejou expressar no corpo o sentimento cultural. E, entendi como a mediocridade pode impedir o florescimento inteligente de um senso crítico proveitoso para o mundo”.
(Matéria publicada na Revestrés#27 – outubro/novembro de 2016)