“Que país é esse, que tem um artista assim e que tão poucos conhecem?”: foi David Byrne que nos lançou, nos fim dos anos 1980, a crítica sobre o lugar que Tom Zé merecia. Não que ele tivesse esquecido – e quem ousaria esquecer alguém que escreve Augusta, Angélica e a Consolação? – mas é bem verdade que foi preciso o olhar de fora para redescobri-lo no Brasil. Baiano, artista, músico, inventista, já estudou o samba, o pagode, a bossa nova – e agora, aos 80 anos, quer falar sobre sexo.

Canções Eróticas de Ninar, lançado nas plataformas digitais e à venda em vinil e CD, tem certa “urgência didática”, como diz a capa. Um álbum que traz “os assuntos do sexo como eram tratados (ou não) na minha infância e juventude”, explica o próprio músico no encarte. E, embora a crítica tenha insistido em associar a temática à idade de Tom Zé, foi aos seis anos que ele teve o primeiro insight para o disco que ouvimos hoje.

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Tom Zé por André Conti

Foi com São, São Paulo, em 1968, que o jovem baiano despontou na TV, ao vencer o Festival de Música da TV Record. Vindo de Irará, foi um dos cabeças, junto a Caetano Veloso e outros tantos, a liderar o movimento Tropicalismo no final daquela década. De lá até os dias atuais, segue regendo sua própria orquestra, formada por músicos que faz questão de citar e admira, e instrumentos que ele mesmo inventa. “Desde cedo, a cada hiato do cotidiano, penso em música”, admite. “É o ‘meu diversão’”.

Mesmo com sangue de gasolina correndo, algumas vezes, o peito de sal de fruta pensou em dar para trás na carreira artística. Voltar para o Nordeste, ser frentista num posto de combustível em Irará foi um dos planos que passou por sua cabeça, pelo menos duas vezes. “O acolhimento do público é o colo da mãe pra mim como artista e me sentia um menino de rua, sem casa e sem colo”, confessa. “Pensei em desistir”. Mas acabou insistindo. Gra-ças-a-deus.

Sem timidez, sexo para ele é assunto inesgotável: “Quanto mais se fala a respeito e se quer dizer que não há barreiras, mais as barreiras mudam de lugar, quanto à sexualidade”, diz em conversa por e-mail com a Revestrés – é super antenado com mídias sociais e internet, inspirando-se até com os haters: em 2013, transformou as críticas que recebia por uma locução na propaganda da Coca-Cola no EP Tribunal do Feicebuqui, disponível à época para download. É adepto da rede, porém crítico desse espaço, às vezes raso ou apressado para algumas discussões: “Cuidarei pra que as respostas não se alonguem desnecessariamente, pois, na internet, sei, quanto mais se escreve, menos se lê”, cutuca. “E é bom que leiam nossa conversa”.

Chegar aos 80 anos ousando: qual é a fórmula?

Não penso a respeito, não tenho ideia, minha cara. Meu objetivo na vida, renovado a cada manhã, é qual trabalho: posso fazer no dia que começa. Cuidados com a saúde, na minha idade, são necessários e os tomo. Sou sertanejo e espero que Euclides da Cunha tenha razão.

Canções Eróticas de Ninar traz um alerta: urgência didática. Você acha que chegará um dia em que a sexualidade não será mais um tabu social?

Quanto mais se fala a respeito e se quer dizer que não há barreiras, mais as barreiras mudam de lugar, quanto à sexualidade. Vira matéria de publicidade, o que boicota aprofundamento, mas é positivo que o tema seja objeto de discussão, nem sempre mais ampla, porém frequente.

A crítica apontou sua preocupação sobre o machismo nas composições. Ao falar sobre sexo, você temeu a atual onda de problematização feminista?

A onda já tem muito tempo de visibilidade, décadas, ao menos. Meu cuidado foi, ao falar de sexo, não ofender a mulher, pois a discussão do tema costuma agredi-la. Isso responde como lido com o feminismo: com interesse e respeito.

Senhor cidadão, canção de 1972, voltou à tona com a novela Velho Chico. Você disse certa vez que é uma crítica ao trabalho, aos que elevam a carreira ao maior dos bens, uma percepção que lhe marcou muito na chegada a São Paulo. Você acha que apostar no trabalho como solução para a crise econômica no país, por exemplo, explica o fato dela continuar tão atual?

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Tom Zé por André Conti

Nada a ver com as tentativas atuais de solapar a situação de quem trabalha e a repercussão de Senhor cidadão. A separatividade entre quem produz e quem se beneficia, entre quem manda e quem obedece, é axial. A música foi feita antes da discussão maior do conceito de cidadania. Letra e música vão para o estrato interpessoal, machucado pela força contra a fraqueza. Por isso Luiz Fernando Carvalho, que dirigiu a trama com sua grande inteligência dramática, pinçou a música para a ação dramatúrgica.

A juventude de hoje o inspira? Quem você anda ouvindo? Com quem pensa em novas parcerias?

Aprendo muito com os jovens, com os que vão se mostrando na arte e fora dela. Em recentes discos meus as participações de jovens artistas foram importantes e inspiradoras. Hannah Arendt afirma que os estrangeiros que vêm ao mundo em cada geração constroem/reconstroem a civilização. Minhas admirações são muitas: Luiz Tatit, paulistano-universal, talento único; Zé Miguel Wisnik, parceiro, lírico como ele só; Emicida, forte e inteligente; O Terno, que esteve aí há pouco… Tomara que cheguem cada vez mais e melhores. Não costumo ser grande profeta, mas torço para que continuem nascendo talentos neste Brasil prodigiosamente criativo. O que sinto, enquanto passa o tempo, é que o veio criativo continuará se aprofundando no país.

A criação de novos instrumentos musicais vem da necessidade de criar sons que ainda não existem no mundo? Como eles surgem na sua cabeça? Fale do seu processo criativo como compositor.

À noite, no travesseiro ou não, penso em música. Desde cedo, a cada hiato do coditiano, penso em música. As ideias vêm daí: de ter o pensamento voltado para o fazer musical. É o “meu diversão”, o trabalho em música. Em viagem, trabalho com os músicos no hotel: com um, dois ou com todos. É minha atividade preferida ao viajar, esteja onde estiver. O show do novo disco, Canções Eróticas de Ninar, é com a banda madeira-de-lei: Daniel Maia – guitarrista, vocalista e produtor de meus discos recentes; Jarbas Mariz – que toca viola 12 cordas, bandolim, percussão e canta; Cristina Carneiro, tecladista e vocalista; Felipe Alves, grande músico, baixista e vocalista; Rogério Bastos, baterista; Marcelo Blanck, sangue alemão que trouxe sua capacidade para ajudar a criar e tocar o hertzé, o berimblanck, instrumentos especiais presentes nos shows.

Teresina tem uma referência cultural forte na figura do poeta Torquato Neto, pela sua participação no movimento Tropicalista. Você tem recordação dele? Alguma história que possa nos contar?

Veja só, do grupo tropicalista, Torquato era de quem me sentia mais próximo, com quem mais conversava, me encontrava mais. Era uma pessoa muito querida e a troca de opiniões era interessante. Curiosidades? Quando estávamos pra atravessar a rua e abria o sinal, ele sempre comentava: “Corre que já viram a gente. Já viram que somos do Nordeste.” Era uma blague de peculiar profundidade. Ah, Torquato, que saudade!

(Entrevista publicada na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)