Amorosidade para dividir com o mundo. A tônica presente nas declarações, textos e na postura do educador Paulo Freire diante da existência e das práticas às quais se dedicou durante anos no Brasil e em diversos países do mundo, se sobressai em cada frase dita pela professora Ana Maria Araújo Freire. Companheira que dividiu os últimos 10 anos de vida com o “Patrono da Educação Brasileira”, ela é a responsável pela continuidade, publicação, divulgação e tutela de suas obras. 

Nascida em Recife, Nita Freire é mestra e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Com a fala carregada de emoção e entusiasmo, Nita relembra a relação construída com Paulo em uma fase da vida do educador atravessada pela maturidade e toda a experiência de ter andarilhado o mundo, compartilhando seus pensamentos e sua produção intelectual. Vale lembrar que os passos de Paulo Freire além-fronteiras foram impulsionados por sua dedicação à educação, mas também pelas perseguições políticas que o levaram ao exílio.   

No ano em que Freire faria 100 anos (2021), o legado do educador é celebrado por estudiosos, pesquisadores e inúmeros admiradores, dentro e fora do país, onde ainda persistem tentativas de apagar e invalidar a história do brasileiro que coleciona o maior número de títulos de doutoramento pelo mundo e ficou conhecido por desenvolver o chamado Método Paulo Freire, a partir da experiência desenvolvida em Angicos, Rio Grande do Norte, em 1963, junto a 300 trabalhadores. Em pouco mais de 40 dias de atividades, os participantes foram alfabetizados por meio do processo das “40 horas de Angicos”. O feito continua sendo objeto de inspiração e discussões das mais variadas matizes. 

Ao falar de Paulo Freire, Nita destaca o papel fundamental do amor na personalidade do marido. O encontro – ou reencontro – dos dois é descrito no livro Nós dois (2012, Editora Paz e Terra), que descreve como o casal compartilhou a união e a admiração vividas com intensidade e na transformação em suas vidas no engajamento público com as causas humanistas e com a educação. 

O ano do centenário de Paulo Freire mobilizou homenagens, exposições, lançamentos de livros, eventos acadêmicos, materiais jornalísticos e outras iniciativas que foram convocando Nita Freire a expressar o significado dessa celebração. 

A poucos dias de completar 88 anos e organizando viagem a Recife, depois de meses em isolamento e cuidados restritivos em decorrência da pandemia, Nita concedeu entrevista para Revestrés de maneira remota. Antes de começarmos formalmente, ela já se apresentava na sala on-line de forma sorridente, comentando ter conhecido o Piauí há muitos anos com seu primeiro marido. Lembrou do calor de Teresina e de um doce de limão que a agradou muito na capital piauiense, e destacou sua vaidade enquanto terminava de ajustar os brincos. No encosto da cadeira, uma toalha branca bordada escorregava pelo canto, deixando aparecer, sobre o ombro esquerdo de Nita, a palavra “poderosa”. 

Foto que ilustra a capa do livro “Nós dois”, de Nita Freire e Paulo Freire. | Acervo: Ana Maria Araújo Freire

Revestrés: Como se deu seu encontro com Paulo Freire, que foi de trabalho, de luta e de vida? 

Nita Freire: Eu acho que foi, sobretudo, um encontro de amor. Muito mais que de trabalho, de amizade, de cumplicidade, de fidelidade. Foram coisas maravilhosas para a vida de Paulo e para a minha. Paulo estudou no colégio do meu pai, o colégio Oswaldo Cruz, do Recife. Meu pai era proprietário e diretor do colégio, e a mãe de Paulo, viúva, saiu pelo Recife procurando uma escola que o aceitasse, mas os colégios religiosos não aceitavam alunos sem pagar. Quando ela desistiu, Paulo insiste que ela vá, pela última vez, a mais uma escola. Quando ela pede para falar com o diretor, então diz “olha, sou viúva, e tô pedindo uma gratuidade do ensino pro meu filho”. Aí meu pai disse: “olha, eu dou (gratuidade), eu sempre dou a todas as pessoas que me pedem ou pessoas que eu sei que precisam e que querem estudar. Agora tenho uma condição. Essa condição é que seja um desejo dele de estudar e não uma vontade sua de levar um filho a ser estudioso, um filho que se dedique aos estudos intelectuais”. Era tudo que ele desejava na vida. Nossa casa era em frente ao colégio e, naquele tempo, não existiam portas fechadas. Então os alunos entravam lá, saíam, e Paulo era um desses que frequentaram muito a casa de meus pais. Depois ele se casou, ainda muito jovem, com Elza. Mas anos depois, já viúvos, nos reencontramos e resolvemos partir para o amor pleno, completo, cheio de muita felicidade. E foram tempos plenos de ver o mundo mais bonito. Agora lembrei de um fato: eu comprava sempre suco de caju Maguary. Sempre. Quando chego no supermercado, logo que começou aquela coisa assim, “ô Paulo”, eu disse: “nossa, que rótulo mais bonito que a Maguary fez, que rótulo lindo!”. Quando chego em casa era igualzinho ao que já tinha na minha geladeira, o de sempre (risos). Até o rótulo a gente inventa que está mais bonito. 

Paulo (Freire) dizia: “um educador tem que ter coragem de amar. Eu tenho coragem de amar”. E isso não era bem visto quando ele começou a falar.  

Revestrés: O coração apaixonado viu diferente. 

Nita: Viu diferente, menina! Era eu apaixonada. Mas vivemos pouco tempo. Porque dez anos foi muito pouco para viver com Paulo. Paulo era um ser privilegiado. Um homem de uma lisura, de uma honradez pouco vista. Tinha conduta ética intocável. E era homem de uma delicadeza, essa que era praticamente nunca vista. Delicadeza no Brasil, até pouco tempo, era coisa de mulher. Homem não podia ser delicado. E Paulo, eu acho, nunca teve medo dessa face da delicadeza. Eu digo que foi um dom que Deus mandou de ter podido conviver com um homem como Paulo. Ele dizia: “um educador tem que construir as suas virtudes, ter coragem de amar. Eu tenho coragem de amar”. E isso não era bem visto quando ele começou a falar. O pessoal achava isso muito estranho. 

Revestrés: Nesse contexto de centenário, vemos, por um lado, ataques e perseguições à memória e obra de Paulo Freire. Por outro lado, vemos pessoas revisitando sua obra ou mesmo o conhecendo melhor. Para você, qual o perfil das pessoas que seguem e se inspiram em Paulo Freire, e qual é o perfil das pessoas que ainda insistem em atacá-lo e persegui-lo? 

Nita: Sabe, outro dia eu escrevi um texto que partia de uma pergunta semelhante. Então pensei: Paulo é admirado. Muito admirado, valorizado, uma referência constante para aquelas pessoas que sabem amar. Quem sabe amar, sabe valorizar Paulo. Porque ele baseava todos os seus atos em atos amorosos. Agora, quem fica chamando Paulo de energúmeno, de satanás, de víbora, não sei o quê… A começar por um homem que nunca deveria dizer, o presidente da república, e os seus idiotas, me desculpe chamar assim, mas idiotas seguidores que repetem esse discurso do mal, da contravenção, da tortura, da morte, da desvalorização de quem sabe amar, da desvalorização de quem sabe entender as outras pessoas. Essa gente não foi feita para entender ninguém. Eles foram feitos para castigar, para matar. O ofício principal deles é isso. É a companhia do ódio, é o escritório do ódio, e vamos adiante. E em todos os lugares do mundo. Que coisa bárbara! E não resulta em nada porque esse homem está revestido de uma carapuça tão diabólica que todo mundo tem medo de colocá-lo no lugar que ele merece, que é a prisão. Tirá-lo da presidência da república, porque ele não pode ser nosso representante. 

Você tem que ter a justa raiva. A raiva pela raiva não leva a nada. Mas, sim, a raiva como forma de denúncia, como anúncio de que aquele fato errado pode ter outra interpretação.

Revestrés: Em fala recente durante evento da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) você falou que Paulo Freire trazia uma teoria que pensa não só as ideias, mas pensa a existência e pensa a vida. O que é pensar a existência e pensar a vida a partir de Paulo Freire? 

Nita: Ele não pensa as ideias como quase todos os filósofos, que começam com os pensadores gregos e chegam até os dias de hoje, com avanços e recuos, com repúdios a algumas ideias, com endossos a outras, e assim a história dos filósofos ou a história da filosofia vem se constituindo. Paulo não pensou as ideias. Paulo pensou, por exemplo, o seguinte: o caso Miguel, menino morto em Recife por desprezo intencional, por uma intenção maldosa – até porque ninguém deixa uma criança de cinco anos em um elevador sozinho e ele toca no andar onde quer e desce, e cai do 9º andar. Eram coisas que Paulo não suportava. Ele estaria publicamente em defesa sempre desse menino. Desse menino e da mãe dele. Restou a ela somente o quê? Chorar pelo filho. Quero dizer com isso que Paulo jamais deixaria passar coisas como essa. Paulo não trabalhava com fantasias, não sentava em uma mesa para escrever e ficava pensando “ah, isso não presta”, e jogava fora. Paulo se sentava e escrevia sobre o que ele tinha visto, constatado, avaliado, apreendido, discernido. Então construiu toda a sua epistemologia a partir dos dados da vida, em defesa da existência humana. 

Revestrés: Em algumas ocasiões, você costuma lembrar que ele falava a respeito de ter uma justa raiva. Essa justa raiva tem relação com o esperançar? 

Nita: As coisas de Paulo sempre têm relação uma com a outra. Você tem que ter a justa raiva. A raiva, pela raiva, não leva a nada. Mas você ter a raiva como uma forma de denúncia. Eu denuncio um fato que não pode existir, então eu estou com raiva. Você não pode ter o ódio, porque o ódio vira vingança, mas você pode ter a raiva. Ela é a indignação,  um anúncio de novas coisas e novo tempo. O anúncio de que aquele fato errado pode ter outra interpretação. Pode ter outro encaminhamento concreto na vida. E ele fala na esperança de que o anúncio traga realmente a esperança de dias melhores, de momentos melhores. A esperança, que ele sempre falou já nos últimos anos da vida, seria o esperançar. A esperança é um substantivo, não tem mobilidade, pois o substantivo é estático. Você ter esperança é um estágio estático. Você não se mobiliza por ele e o esperançar, que é verbo, dá mobilidade, dá ação. Quando a gente desesperançar, é hora de colocar aquela esperança em ação para conseguir as coisas. 

O encontro (com o Papa Francisco) foi incrível. Parecíamos amigos de infância. Agora, as coisas que eu precisava saber do Vaticano, são documentos que só seria possível ver depois de 70 anos. Aí o Papa disse: “Olha, daqui a uns 30 anos, a senhora pode voltar”.  

Revestrés: No seu encontro com o Papa Francisco, além de toda a influência de Paulo Freire na educação e nas ciências em geral, havia a curiosidade de saber mais sobre a influência dele na igreja, nos marcos da teologia da libertação. Você também foi atrás de respostas sobre isso. Como foi esse encontro, quais foram as respostas e o que reverberou desde então? 

Nita: Foi uma coisa impressionante. Chegando lá você não entra assim de qualquer maneira. Eu tinha mandado fazer uma caixa enorme, com todos os livros de Paulo e os meus para dar a ele de presente, uma coisa linda. Minha filha comprou um papel desses maravilhosos, cor azul, com fita, e fizemos um laço. Só que, ao chegar lá, disseram “o que é isso?”. Falei que eram os livros do meu marido. Mas tivemos que entregar a caixa antes para verificar se não tinha algum perigo para o Papa. O encontro durou 40 minutos e foi uma coisa incrível. Parecíamos bons amigos de infância, como se eu o tivesse conhecido durante toda a minha vida. Agora, as coisas que eu precisava saber do Vaticano, o Papa mandou perguntar, mas o tipo de documento só seria possível ver depois de 70 anos. Aí o Papa disse: “Olha, daqui a uns 30 anos já vai fazer 70, a senhora pode voltar”.  

Após contar sobre a descontração que deu tom ao encontro que rendeu um convite para pizza ou uma feijoada na visita de Francisco ao Brasil (ambos ainda não concretizados), Nita dá uma pausa na conversa e mostra alguns livros organizados por ela, dentre eles a biografia “Paulo Freire: uma história de vida”, premiada com o Jabuti em 2007, e “A palavra boniteza na leitura de mundo de Paulo Freire”, lançado em 2021 pela editora Paz e Terra. 

Revestrés: A palavra “boniteza” representa muito na dimensão criativa das palavras de Paulo Freire, não é? 

Nita: Quando nós começamos a namorar, ele começou a me chamar de boniteza. Então ele ligava para minha casa e dizia “como vai a minha boniteza?” Eu era muito mais moça, tinha um espírito muito mais jovial. Então ele ficou encantado com essa coisa da minha jovialidade. Me chamava de boniteza. Até que um dia, em uma entrevista com uma professora, Paulo falou em boniteza da disciplina. A partir desse dia, Paulo usa boniteza como sinônimo de ética, de estética e de política. A política é uma boniteza desde que a gente tenha ética ao fazê-la. Esse é um livro muito bonito para ler e recomendar. Neste ano, praticamente tudo que faço é em função de comemorar os 100 anos do nascimento desse homem, Paulo Freire, que, por um dom divino, Deus me entregou a ele e ele a mim. Uma coisa absolutamente especial. 

Revestrés: E quais são, ainda, seus sonhos possíveis? Os sonhos que lhe movimentam?

Nita: Eu sou uma mulher que tem muita ousadia, muita coragem, muita energia. Sempre fui assim. Quando Paulo morreu achei que eu precisava morrer, porque já não tinha o que fazer. Foi um tempo de perda, muito sofrido. Fiquei uns três ou quatro anos entregue somente a isso. Depois as pessoas começaram a falar dos textos, de publicar o que ainda não tinha sido lido. Então fui, pouco a pouco, entrando na vida dedicada a isso. Para que ele permanecesse como o homem que ele era, como o homem que ele tinha sido em toda a sua vida. Um homem de uma honradez inatacável, de ética, generoso, tolerante, um homem que tinha uma coragem de amar, acima de tudo. Então, sobre os meus sonhos possíveis, estão na alegria de receber as homenagens, os títulos, rever os amigos. É primordialmente para ele, mas o meu eu está ali, pois nós vivemos assim. Amar Paulo era muito fácil. O Paulo ficou viúvo com 65 anos. Aos 66 nós nos casamos. Os filhos dele o chamavam de velho e ele ficou um pouco complexado com isso (risos). Mas ele dizia “eu tive coragem de amar quando já era velho”. Mas ele era maduro e entendia os gestos, as emoções, os sentimentos. Quando a igreja diz “dois em um só corpo”, eu acho que existe isso. 

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Publicado na Revestrés#50. 

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