24 de junho de 2019. 108 dias. A liberdade negada por toda uma vida. Artista (ou artivista, como ela prefere) da música, poesia, cinema e outras expressões, Preta Ferreira expõe no livro Minha Carne: diário de uma prisão, lançado pela Boitempo em 2021, a experiência do aprisionamento a partir dos locais de onde lança seu olhar sobre o mundo. Muitos desses lugares não são alcançados por escolha, mas destinos para onde determinados corpos são levados desde muito tempo na realidade social brasileira.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou em 2019 o percentual de 67% dos encarcerados no país como pessoas negras. Quando Preta afirma que suas intuições e a força da ancestralidade já a faziam sentir que pudesse ser aprisionada, a cor da sua pele fez sentir na carne o peso das injustiças. Acusada de envolvimento em crimes supostamente relacionados à sua atuação junto ao Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) em São Paulo-SP, Janice Ferreira Silva, a Preta, esteve presa no contexto de investigações do desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida, na capital paulista. Contudo, não se apresentaram provas nem comprovaram relações entre o caso e o ativismo de Preta. Uma carta anônima gerou essa história.

No livro ela inclui retratos de vida, formação de família, engajamento político e diários dos dias encarcerada de maneira fluída, intensa e poética. Preta narra em primeira pessoa, mas longe de escrever apenas sobre si mesma, pois sua história se cruza com a de outras mulheres. Os escritos denunciam as condições desumanas da prisão, do tratamento aos corpos de mulheres negras nestes espaços e a exigência por justiça.

Preta não acredita em liberdade diante das condições sociais do Brasil, e questiona qualquer parâmetro que considere democracia plena um sistema em que pessoas semelhantes a ela são alvo de preconceitos, injustiças, racismo e morte. Em entrevista para Revestrés, realizada por videoconferência no final de junho, comenta sobre política, direitos constitucionais, afetos e existência.

Baiana, filha de Carmem Ferreira – com quem constrói por toda sua trajetória o movimento de lutas por moradia até a conformação do MSTC, mora em São Paulo desde os 15 anos e constitui suas lutas nas frentes da política e da arte, ou na atuação indissociável entre elas. Passou a coordenar, em 2021, os trabalhos de cultura na Assembleia Legislativa de São Paulo, pelo mandato da deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP).

Nomes como Angela Davis, Conceição Evaristo, Papa Francisco, Lula, entre outros, também constam no livro em passagens que relatam trocas de cartas, visitas e o apoio que a fez enfrentar os dias de solidão.

Refletindo junto com Preta, que encaminha o encerramento do livro Minha Carne: diário de uma prisão com o verso “quem não luta tá morto”, é possível afirmar que Preta é vida porque é luta.

 

Revestrés Em que sua trajetória de ativista muda após a prisão em 2019?

Preta Ferreira Eu fui presa em uma leva de criminalização dos movimentos de moradia. A gente vive em um país que tira direitos dos povos. Não tem vacina, mas tem privatização. Não tem auxílio emergencial, mas tem aumento de energia. Estou em uma luta maior, que qualquer cidadão precisa para ter direitos garantidos. A luta vem através de necessidades que não são só minhas, mas de toda uma população. É isso que ainda levo para minha luta.

Revestrés Você já afirmou que no espaço da prisão era possível fazer trabalho de base com mulheres. Como foi essa experiência?

Preta Ferreira Trabalho de base se faz em qualquer lugar e não somente no presídio. É preciso falar para as mulheres o porquê de estarem na prisão, independente do que cometeram para estar ali. O que considero trabalho de base é traduzir o que é a política, a necropolítica e como nossos corpos são diretamente atingidos até pararem lá.

Revestrés Você se sente livre aqui fora?

Preta Ferreira Não posso considerar um povo livre se eu, como mulher preta, não posso existir em um país sem racismo. Como sou livre se vejo meu povo morrendo toda hora, se meu povo está sendo assassinado por comida, enquanto tem gente morrendo sem ar? O que é liberdade? Ninguém está livre. Somente quando eu conseguir ver todo mundo com direitos constitucionais garantidos, inclusive os meus, sem feminicídio, quando o racismo realmente for tratado como crime nesse país, aí sim vamos estar livres. No Brasil não tem liberdade porque ainda se aprisiona pessoas pela cor da sua pele.

Como sou livre se vejo meu povo morrendo toda hora, se meu povo está sendo assassinado por comida, enquanto tem gente morrendo sem ar?

Revestrés Muitos ativistas negros são acusados de só falarem de dor. Você fala de dor, mas aciona afetos, arte, fé. Como equilibrar tudo isso diante do que nós, população negra no Brasil, vivemos?

Preta Ferreira Existe um costume no Brasil de achar que mulher preta não pode tomar injeção porque tem o corpo forte e aguenta tudo sem anestesia. Mulher preta então só pode ser forte, não mostrar afeto, se apaixonar, quebrar a cara e tem que viver somente de luta? Eu luto para ter direitos e acesso também a carinho e conforto. Tudo que qualquer pessoa deseja. Temos que mostrar isso e incentivar as pessoas a se cuidarem. Explorar esse lado da arte, de luta, de liberdade, de fé, mas falar de tudo, pois não somos heróis e heroínas. Estar vivo é poder celebrar e viver com boas coisas e como mulher preta preciso, eu quero. E o que quero para mim, eu jogo no mundo.

Revestrés Como é sua relação com sua mãe, Carmem Ferreira?

Preta Ferreira Bem relação de duas mulheres baianas (risos e olhos brilhantes). Sabe o filme Minha Mãe é Uma Peça? É igualzinho. Lutamos juntas e ela é exemplo de superar dificuldades, dar a volta por cima, e eu me espelho nela. Um dos momentos mais marcantes foi quando recebi um bilhete dela pela primeira vez na prisão. Aquilo virou uma chave não só pelo que eu já sabia sobre os motivos de estar ali, mas para entender o sentido da luta.

Revestrés Como tem sido a recepção do livro e das histórias que você narra nele?

Preta Ferreira Esse meu filho tem gerado bons frutos (mais uma vez os olhos brilham). Não é um livro para transmitir dor. É pelo sentido de liberdade e justiça. Muitas pessoas me escrevem para falar sobre ele e já vamos para a segunda edição. Eu acho que muitas coisas são predestinadas e, quando falo de senso de justiça, quem faz a justiça não sou eu. O que narro sobre o encontro com a Angela Davis, carta do Papa, entre outros episódios, é o destino de quem luta pelas mesmas coisas, pois essas dores existem em todo lugar do mundo. São encontros de lideranças que se reconhecem e que estão juntas.

Revestrés Falando um pouco sobre representatividade do povo preto na mídia, gostaria que você comentasse o caso de Lucas Penteado na edição do Big Brother Brasil de 2021. Você foi das primeiras pessoas públicas que o defenderam, e discutiu temas que atravessaram o programa e foram para as redes sociais…

Preta Ferreira Quando entrei no caso do Lucas foi porque aquilo não acontece só com ele. Quantas vezes já vi meninos pretos sendo massacrados na rua e fui questionar. Vamos ver pretos sendo massacrados e deixar? Não pode. E mais, temos que parar de ver pessoas pretas e achar que são perfeitas. Preto é ser humano. O racismo é tão constante que qualquer coisa que preto faz ele já é cancelado. Mas preto já é cancelado desde que nasceu, então vai cancelar mais o quê? Quem chega na mídia é para mostrar arte, porque tem seu valor, não para ser visto como santo.

Preto já é cancelado desde que nasceu, então vai cancelar mais o quê? Quem chega na mídia é para mostrar arte, porque tem seu valor, não para ser visto como santo.” – Preta Ferreira.

Revestrés 2021, ainda em pandemia, muitas pessoas resolvem se organizar e voltar aos protestos de rua contra, principalmente, o governo Bolsonaro. Você acha que já era hora de voltar para a rua, não dava mais para esperar? Que avaliação você faz dessa decisão? Você, por exemplo, voltou.

Preta Ferreira Tudo tem um tempo certo. A gente tem que avaliar que nesse país não dá para ficar parado esperando acontecer, porque em casa você pega e se sair de casa você pega (contaminação por Covid-19). Vai morrer sentado, esperando e aguentar até quando? O povo volta para as ruas por direitos democráticos, pois um governo deveria garantir vida e saúde. Bolsonaro não governa o Brasil. Não para a população, não quando mais de 500 mil vidas se perdem, e-mails sem resposta, negando compra de vacina. Isso é genocídio, é barbárie. Eu me sinto sendo assassinada, eu estou em risco. Quem puder ficar em casa fique, mas tem momentos que é preciso se posicionar. Não é questão partidária, mas de pessoas morrendo. Não dá para ficar em silêncio, sem questionar o presidente responsável pelo que acontece nesse país. Além de questionar tem que colocar a mão na massa.

Revestrés E no que você tem trabalhado? Quais projetos estão te movendo?

Preta Ferreira O primeiro projeto é tirar Bolsonaro do poder. Mas como artista, escritora, diretora de cinema, continuo trabalhando pela libertação de outras pessoas presas injustamente, levando o livro para as prisões para que entendam o sentido daquele lugar. Estou falando de liberdade pelos quatro cantos do Brasil. O navio negreiro é a prisão, e escrevo para traduzir o que vivi e vivo ainda. O futuro é uma longa construção. Sonho e quero estar viva, com todos vacinados, salvando a população brasileira para que tenhamos vida para lutar. Quero que a política se renove, pois estamos cansados do mesmo. Por uma política feita por nós, com a gente lá.

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Publicado em Revestrés#49.

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