Antes da entrevista, em seu apartamento na região central de Paris, ele fala do cansaço nos olhos. Brinco com os meus botões que o sintoma é compreensível para alguém que enxerga longe: apontar a nudez do rei requer ampla visão. É que as duas principais teses do sociólogo e pesquisador Jessé Souza – a corrupção estruturante no Brasil não é do Estado mas do Mercado, e a gênese do Brasil moderno não é Portugal, mas a escravidão – desvelam o que nunca esteve velado. Mas essa verdade, é o que explica, velha conhecida das classes mais populares sobretudo entre negros e mestiços, nunca havia sido nomeada no espaço acadêmico, amordaçada que estava pelas teorias vigentes.  

Na origem dessa visão turva, há nomes. E de peso. Na prática, o pesquisador brasileiro, que lecionará a partir de 2020 na SciencesPo, a mais prestigiosa universidade francesa de Humanas, desconstrói o pensamento de cânones como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro. Puxando o fio que perpassa a trama do pensamento desses teóricos, o racismo, esgarça mitos sobre a identidade brasileira como “homem cordial”, “jeitinho brasileiro”, corrupção congênita do Estado.  

Com títulos publicados que explodem em vendas, como A Elite do atraso e A Classe média no espelho, o potiguar de 59 anos finaliza A Guerra contra o Brasil (título provisório), cujo lançamento está previsto para fevereiro (Sextante/Estação Brasil). Na continuidade dos anteriores – em cujas reflexões ressoam vozes de Karl Marx, Max Weber e Pierre Bourdieu, principais influenciadores –, o novo livro situa a problemática brasileira em contexto mundial e visa mostrar que não é um caso isolado. No Brasil, o professor da Universidade Federal do ABC tem conseguido um fato ainda pouco comum: difusão da ciência. Com linguagem acessível, põe ao alcance de todos um debate sociológico sobre o Brasil que não costuma ultrapassar os muros da universidade. É para isso que serve a pesquisa científica, preconiza.  

Jessé Souza | Foto: Pascal Douillard

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Revestrés: O senhor destrona o patrimonialismo como causa dos males da sociedade brasileira: a corrupção no Estado não é o principal entrave do nosso desenvolvimento. Desconstrói, com isso, os cânones da nossa Sociologia, retirando do jogo, de um só golpe, ilustres como Gilberto Freyre e Raymundo Faoro, chegando até Sergio Buarque de Holanda. O senhor tem consciência do impacto de suas teses para o pensamento brasileiro? 

Jessé Souza: Não só tenho como o fiz de caso pensado, inclusive na forma, pois, para mim, as ideias têm um enorme poder. Acho que a maior parte dos intelectuais não percebe, confunde o poder das ideias com o ramerrão universitário, que pensa que o livro vai ficar dentro de uma biblioteca. E são as ideias que guiam a sociedade para uma ou outra direção. Quando vi que tinha me apropriado desse tipo de coisa, percebi que tinha uma bomba atômica. E coloquei na USP porque foi, efetivamente, a instituição que propagou a ideia dominante. Eu tinha bastante armamento, uma reflexão acumulada em cada elo desses argumentos. Como estudei isso tentando ver o vínculo das ideias entre economia e política, visei o modo como se dá a construção da identidade nacional. As sociedades modernas desenvolvem uma autoidentidade baseada cientificamente. Com a formação do Estado-nação, na fronteira da passagem religião-ciência, do desencantamento do mundo, surge a necessidade de legitimação para a sua própria existência, sem a qual não há Estado-nação operante. É engraçado perceber como José Bonifácio (1) tinha total consciência disso em 1822. Não costumamos estudá-lo, mas ele sabia que uma nova nação precisava ter uma narrativa sobre ela. Um indivíduo tem que resolver suas questões econômicas, comer, ter um teto, mas tem que ter uma narrativa sobre sua própria vida, sobre quem é, de onde vem, para onde vai. Toda sociedade precisa também construir uma narrativa dessa ordem. No nosso caso, ela começa com Bonifácio e só vai se realizar com Gilberto Freyre. Muita gente achou que eu estava atacando Sergio Buarque de Holanda, a Geração de 30, como se tivesse havido outra nos anos subsequentes. Não houve qualquer mudança desde Sergio Buarque de Holanda. Zero! Nenhuma ideia com eficácia sobre a população foi construída no Brasil desde 1930. Como nunca houve uma crítica da esquerda, elas permanecem até hoje. Sabia que deveria fazer uma crítica sobre os pressupostos dessa crença, que é o mais importante, que vai revelar o verdadeiro paradigma. Aprendi isso comparando o racismo do século XIX europeu com o culturalismo americano, o mesmo aplicado no Brasil, iniciado a partir dos anos 20 do século XX. Um diz que é o contrário do outro: “Olha, eu tô ultrapassando, eu não sou racista! Não estou mais dizendo que as pessoas são distintas entre si porque uma é branca e a outra é preta. Estou dizendo que cada cultura, a americana, do protestante ascético, é por acaso mais inteligente, mais democrática, mais honesta!” Ou seja, tudo que se acoplava ao branco. Para fazer a crítica política do papel da ciência, não se pode ficar dentro do paradigma da ciência, tem que sair dele. Tem que ir abaixo, no não dito dele. No interdito dele. E o interdito são os pressupostos filosóficos, que nunca estão explicitados. Vi que se eu criticasse os pressupostos da única teoria sobre o Brasil, eu poderia destruir o poder de convencimento dessas ideias, comuns a todos. Gilberto Freyre foi o primeiro e todo mundo o seguiu, inclusive Sergio Buarque. Este seguiu Freyre, mas dizendo que o país inteiro era realmente de ladrões, de vira-latas e que o americano é que era a coisa linda, maravilhosa, do mundo. Gilberto Freyre, sob influência de Franz Boas, professor dele – um dos grandes artífices dessa mudança de paradigma culturalista dos anos 1920, nos EUA –, tentou ainda fazer algo, dentro dos limites de estar jogando no terreno do inimigo, acreditando que o culturalismo era uma reversão do racismo.  

Um indivíduo tem que resolver suas questões econômicas, comer, ter um teto, mas tem que ter uma narrativa sobre sua própria vida, sobre quem é, de onde vem, para onde vai.

Revestrés: Quando, na prática, era a positivação deste. 

Jessé Souza: Ou, ao menos, o tornou uma coisa ambígua. Ele não podia sair disso porque a relação moral no Ocidente, como era construída, se dá a partir da noção de virtude cristã, que é um legado platônico: tudo que é virtude vai estar ligado ao espírito, e tudo que é vulgar e inferior, ao corpo. Toda a classificação vai estar montada nisso. Não importa o que vá ser dito, as máscaras que substituem esse princípio de classificação aparecem em tudo: nas formas de classificar mulheres e homens, brancos e negros, culturas etc. Quando percebi isso, o que levou 20, 25 anos, eu me disse: “vou fazer uma crítica contundente!”, pois, no Brasil, você tem aquilo de acochambrar compromissos. Se eu disser que acho isso legal, já perdeu-se a crítica. Então me diziam: “Ah, você foi muito duro com eles!”. Foi o único tipo de crítica que eu ouvi, inclusive de pessoas que admiro. O que mostra como a discussão acadêmica é mesquinha e superficial. 

Revestrés: Seria corporativista? 

Jessé Souza: É. Essa ideia humilha, desemprega, oprime os frágeis? Ou não? A única coisa que importa é isso. O que me interessa é a dimensão política. Esse golpe (2) só aconteceu porque Dilma Rousseff e José Eduardo Cardozo ajudaram a Lava-Jato. Uma coisa imbecil, ajudar o inimigo! Em parte tem interesses, é claro (risos). Dilma não tinha interesses ligados a isso, mas a candura de achar que estava fazendo certo. O que podia ter de interesse eventual nisso é: “Ainda vou ser amada pela classe média”, que é a facção moralista no Brasil. No meu novo livro, em que analiso também Bolsonaro, avanço que essa moralização no Brasil esconde o racismo. Todos os meus livros vêm de duas ideias principais. A primeira, que percebi como leitor de Max Weber e Karl Marx, refere-se à dominação. Com Weber, aprendi que a religião é uma forma de legitimação da dominação e da exploração econômica em todas as sociedades. Erroneamente, as pessoas pensam que a economia é um dado natural, que não há uma dominação, e que essas duas esferas estão divididas. Parti dessa ideia de Weber e passei a estudar as teorias modernas científicas que cumprem a mesma função que a religião cumpria antes. O racismo colonial europeu faz isso quando legitima o colonialismo. Este vai ser a base da teoria da modernização americana que vai montar um neo-colonialismo tão racista quanto o anterior, mas fazendo de conta que está rompendo com todo o racismo. É isso que as ideologias fazem e a ciência vira, nesse contexto, a ideologia central. No Brasil vai ter essa noção de que o Brasil vem de Portugal – é uma bobagem atroz você dizer isso! –, e de que daí surgiria a corrupção. Há 100 anos direita e esquerda vivem oprimidas e sem resistência articulada a nenhuma forma de dominação, porque elas são também dominadas cientificamente: universidades, escolas e imprensa utilizam isso para manter o povo oprimido. A data de nascimento do Brasil moderno é o racismo, a continuação da escravidão enquanto tal. Na República Velha, a elite paulista convida a classe média europeia para ser um bolsão racista contra o povo. Os intelectuais elitistas amados pela esquerda, como Sergio Buarque, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Damatta, todos os seguidores, continuaram isso. Ninguém rompeu, zero ruptura. 

Revestrés: Então compõem um grupo único no campo do pensamento científico? 

Jessé Souza: O que ocorre é uma utilização para um lado ou para outro desses mesmos pressupostos. Como esse pessoal não podia usar o racismo, pois era interdito no Brasil, desenvolveu-se a ideia de que havia um povo mestiço e de que isso era bom. Veja como não tem importância a coisa pessoal: Vargas e Freyre eram inimigos pessoais, eram de tendências políticas distintas. Mas o projeto cultural de Getúlio Vargas foi usar as ideias de Freyre, que queria incluir o povo, que estava fora. A inclusão foi feita a partir dessa noção do mestiço, do samba, do futebol, da brasilidade. 

A luta social e política nos EUA do começo do século XX para cá mudou. Era uma luta contra os pobres, de manipulação dos pobres, e agora é para montar uma guerra entre os pobres.

Revestrés: Que é o olhar do colonizador, de fora para dentro, mas introjetado pela elite, pela elite colonizadora.  

Jessé Souza: Sim. Mas de uma elite subalterna, dominada pela elite paulista, sob influência do positivismo, que precisava ter alianças com setores populares. Enquanto a elite brasileira real é anti-industrial-agrária-financeira e continua o escravismo pela noção de saque ao povo. Como os belgas, no Congo. Essa é a elite brasileira, que vingou e que precisava manter a escravidão. Ou seja, a República Velha é a escravidão com roupa moderna. Nela, vigoram dois princípios: a elite quer o Estado para roubar – e o povo não pode participar disso – e quer criminalizar a soberania popular. Esse é o arranjo de poder da elite paulista até hoje, a continuação da República Velha. Conseguiu isso com as ideias desses caras, velando o racismo: Como não podiam afirmar “olha como esses negros e mestiços são preguiçosos, imbecis, votam mal e atrapalham a gente!”, inventaram categorias morais, transformando, legitimando e justificando o racismo. Racionalizando psicanaliticamente o racismo. Patrimonialismo, personalismo, populismo. Como se diz que um povo inteiro é personalista, é movido pelos afetos, que é o homem inferior? Se você é movido pelos afetos, conclusão de Sergio Buarque – não a de Freyre –, vai sempre servir aos amigos e não à lei, como se houvesse algum povo no mundo que tivesse relação com o impessoal e não com pessoas. Como se nos EUA, Suécia, Alemanha ou França, não houvesse personalismo. Idealiza-se o outro, coisa tipicamente vira-lata. “Mas se o povo inteiro é corrupto, ladrão, como vou usar isso de forma que a elite possa utilizar?”. Dizendo que esse personalismo é aplicado só no Estado, não no mercado, pois é nele que está a elite funcional. Tem que isolá-la. Por que no Estado? Porque é aí que as classes populares, podem – poucas vezes – pôr alguém de sua predileção. É a única constelação de interesses organizada tão importante que pode fazer frente ao mercado. Já se criminaliza de antemão. É racista sem falar em racismo: “O pessoal só bota ladrão aqui”. Em seguida, tem-se a imprensa para seletivamente dizer quem é o ladrão. A questão era, para para a elite paulista que queria criminalizar Vargas – que havia conseguido apoio da classe media e do povo -: como criminalizar a “política enquanto tal”, quando assim lhe conviesse? Daí que se cria o conceito de “patrimonialismo” só do Estado e da política. Uma ideia furada e falsa, como mostrei nos meus livros.

O Glenn Greenwald tem uma influência histórica.  Ele possibilitou que todo o esquema de dominação simbólica do Brasil, nessa ocasião da Lava-jato, ficasse óbvio para todos, as entranhas do Brasil estão expostas. Tem-se que aproveitar esse instante.  

Revestrés: Esses autores reproduziam um pensamento de classe? Também não se toca no fato de que todos vêm de classes abastadas. 

Jessé Souza: Claro. Ninguém nunca falou sobre isso. Qual a diferença de formação intelectual entre Fernando Haddad e Fernando Henrique Cardoso? Nenhuma. Zero. Ainda que Haddad tenha sido um grande ministro da Educação. A diferença do PT foi Lula. A experiência pessoal dele.   

Revestrés: Então é visão de classe.

Jessé Souza: É classe. Porque você tem ali um cara que já conhecia o pobre. Mas na raiz intelectual, o PT é uma sucursal dessa mesma bobagem moralista criada pela elite para subjugar e humilhar os pobres.

Revestrés: Em diversos países, o Estado é atacado atualmente. Na França, foram as altas taxas sobre os combustíveis cobradas pelo Estado que alavancaram o movimento “Coletes Amarelos”…  

Jessé Souza: O que estou exatamente querendo mostrar no meu novo livro é que o Brasil não é um planeta isolado. Essas ideias dominaram o Brasil porque têm um reprodução internacional delas. O povo francês é tão escrachado por sua elite quanto o brasileiro, e o americano mais ainda. Tento perceber, nesse meu novo livro, “A Guerra contra o Brasil”, como esse conjunto de ideias e práticas foram montadas nos EUA, não só na dimensão da ciência, como havia feito antes, mas como a ciência vai depois virar uma ideia operativa na elite funcional, na propaganda, na política e como isso resulta nesse tipo de golpe, como o de Bolsonaro. Percebi que a luta social e política nos EUA do começo do século XX para cá mudou. Era uma luta contra os pobres, de manipulação dos pobres, e agora é para montar uma guerra entre os pobres, algo utilizado por Donald Trump. A guerra durante o século XX era contra os sindicatos, o comunismo, as organizações da classe trabalhadora. Tem-se agora uma multidão de pessoas sem pertencimento, que só leva pancada sem saber porquê.  São manipuláveis e é isso que o agente dos ricos, a elite funcional dos ricos, que age para evitar que o princípio democrático tenha de fato alguma validade, descobriu. Não é só no Brasil que você tem a guerra contra a soberania popular. Diz-se que a culpa não é do capitalismo, é do politicamente correto, da luta das minorias. Obviamente, esse tipo de justificativa e legitimação implica que o sistema chegou às suas horas finais. Vai ter Chile o tempo todo, vai ter gilets jaunes, Hong Kong… Até que ponto você vai poder controlar isso? Vai chamar o exército e dizimar a população? Isso mostra que esse sistema está atingindo um grau patológico. 

Revestrés: Quanto ao Brasil, vai haver resistência? 

Jessé Souza: Isso me preocupa muito porque acho que os partidos – todos de classe média – não estão vendo claramente o que é necessário, novo. O cara de classe média, mesmo quando é inteligente e crítico, faz um erro descomunal que é pensar que todos pensam como ele. Os pobres não têm as armas, nem cognitivas, nem afetivas, nem morais desse tipo de análise. Por conta disso, continuam pobres. Entre 50 ou 60% do povo brasileiro se enquadrariam facilmente nesse contexto de pessoas manipuláveis. Numa medida em que nem o francês nem o alemão o são. Na política – e isso é desesperador – ninguém está fazendo, nem está preocupado em fazer um trabalho de uma narrativa, de uma hegemonia ou de uma contra-hegemonia. Isso é fundamental! O Glenn Greenwald tem uma influência histórica.  Ele deu a comprovação empírica de tudo o que eu tinha dito em “A elite do atraso”. Sem tirar nem pôr. Ele fez isso com as provas que as pessoas querem. Muitos que leram meu livro acharam que eu era um teórico da conspiração. As intenções não têm nenhuma importância. Mas o Greenwald possibilitou que todo o esquema de dominação simbólica do Brasil, nessa ocasião da Lava-jato, ficasse óbvio para todos, as entranhas do Brasil estão expostas. Tem-se que aproveitar esse instante. Existe aí uma contranarrativa do que foi esse golpe, dentro de uma visão mais geral da sociedade brasileira, tendo o escravismo como ponto zero: tudo isso ocorre porque estamos preservando a escravidão sobre outros modos. É uma chance de ouro.

Revestrés: A esquerda não concorda com o que senhor está propondo ou de algum modo não alcança?

Jessé Souza: Não alcança. 

Revestrés: Nem mesmo um intelectual como Fernando Haddad? 

Jessé Souza: Haddad, por exemplo, não alcança. Tive debates com ele sobre isso, e acho que, como foi gerado no mesmo ambiente pseudo-crítico criado pela elite paulista, ele não alcança. Tem caras que entendem. Lula entende.  

Revestrés: Então, novamente, é classe? 

Jessé Souza É. (breve pausa reflexiva) Flávio Dino entende. Então, não é meramente uma questão só de classe. 

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1  José Bonifácio Andrada e Silva, pelo papel fundamental que teve no processo, é considerado o Patrono da Independência. 

2 Ação que resultou em 2016 no impeachment da então presidenta Dilma Roussef, do Partido dos Trabalhadores. 

Publicado na Revestrés#44 – Nas bancas ou pelo site.

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