Déia Freitas é uma mulher negra, de 46 anos, formada em Psicologia, ativista da causa animal e que trabalha como babá de gatos. Na internet, é conhecida como a idealizadora do Não Inviabilize, podcast independente que se descreve como um laboratório de histórias reais. Mas para quem é ouvinte assíduo, pode chamar de prima da Janaina, chefe do Mogli, mãe do gatinho Coentro-Nenê e do cachorro Mamão Papaia.

Com tantas funções, o podcast passava longe de ser algo que imaginava fazer, até porque nem sabia exatamente o que era isso. O contato com a mídia surgiu quando foi convidada a trabalhar com roteirização no podcast Mamilos, pouco depois de ter saído da área da moda, onde atuava. Depois veio a ideia de fazer seu próprio programa, incentivada por uma amiga podcaster. Antes disso, utilizava as redes sociais para contar histórias. Com a insistência da amiga, decidiu lançar o Não Inviabilize que traz uma essência adquirida ainda na infância, quando recebeu o apelido Fofocão. A ideia deu tão certo que o Não Inviabilize emprega doze pessoas e está entre os dez podcasts mais ouvidos do país no Spotify.

O programa ultrapassa a marca de 56 milhões acessos nas plataformas de áudio e os episódios alcançam cerca de 120 mil reproduções, em média. Com dois anos no ar, traz episódios publicados quase diariamente nos quadros: Amor nas Redes, Picolé de Limão, Luz Acesa, Mico Meu, Ficção da Realidade, Patada, Alarme e Pimenta no dos outros. O podcast viraliza como uma boa fofoca: no boca a boca, onde um ouvinte indica os episódios para outros até formar uma legião de fofoqueiros online.

Além disso, expressões e jeito de falar de Déia são aproveitadas por seus fiéis seguidores para temáticas de festa, bolo de aniversário e para se referir a qualquer história que aconteça com eles. Algumas das mais conhecidas são “Não seja ONG de macho” e “Ninguém tem dó de corno”, acompanhadas da gargalhada que já é marca registrada da podcaster. Mas quem acompanha o podcast já sabe, ninguém quer viver um Picolé de Limão!

Como são histórias reais, a podcaster tem o cuidado de preservar a identidade das pessoas envolvidas. Para ir ao ar, Déia seleciona as mais interessantes e procura saber tudo que ocorreu na vida real da pessoa que enviou a história para que o roteiro saia completinho, com pitadas de humor e descaracterização dos envolvidos, para que ninguém se sinta exposto.

No entanto, estar no topo do pódio não impede a manifestação de racismo e discriminação, como quando Déia, ao postar uma selfie sua nas redes sociais, teve que lidar com comentários de pessoas que achavam que ela era branca, como se uma pessoa negra não pudesse ocupar esse lugar. Em uma situação mais recente, foi atacada por ter divulgado uma vaga de emprego destinada para pessoas não-brancas – pretas, pardas e indígenas.

Para Revestrés, Déia conta que o boom do programa não é algo que a deslumbre ou seduza. “Eu sei onde estou, sei o que eu fiz, mas sempre acho que é um lugar muito instável para quem é negro. Não consigo me sentir consolidada no lugar que estou”.

 

Revestrés Na infância, o seu apelido era Fofocão. Foi aí que nasceu sua vontade de contar histórias?

Déia Freitas Meu tio Arnaldo Pinheiro me colocou esse apelido porque, desde muito pequena, tudo que ouvia os adultos falando eu gostava de replicar e criar a minha história em cima. Uma vez esse meu tio me levou ao banco e cumprimentou a gerente e eu cheguei em casa falando para a minha tia que ele tinha me apresentado a namorada. No fim, deu para desfazer o mal entendido. Eu tinha 3, 4 anos, mas já estava ali, contando história. Então, ele me colocou o apelido de Fofocão. Quando eu estava na escola, gostava de ler e recontar as histórias que lia. E sempre gostei muito de saber a história das pessoas, dos lugares, ouvir as histórias dos outros e contar histórias.

Revestrés Você tanto se interessou por contar histórias, que o conteúdo do seu podcast é justamente isso.

Déia Freitas Sim, o podcast, na pandemia, meio que deu uma explodida e basicamente sou eu ali contando histórias das pessoas que me enviam.

Revestrés Antes do podcast, você contava histórias em outras plataformas online. Como o Não Inviabilize de fato nasceu?

Déia Freitas Não Inviabilize era a minha conta do Twitter, que criei por causa do  blog que tinha antes, chamado “Não Inviabilize a minha existência”. Alguém viu ali no meu perfil que eu era psicóloga e me mandou uma DM perguntando umas coisas e contando uma história da vida, e eu falei: “Olha, esse não é o papel do psicólogo, eu não tenho como te ajudar nisso, mas posso recontar sua história aqui na minha timeline e você olha ali nos comentários se tem alguma sugestão que serve para você”. Aí começou assim. No primeiro dia que fiz, minha caixa de DM já travou de tanta gente querendo que eu fizesse a mesma coisa. Aí comecei a contar histórias de maneira despretensiosa.

Revestrés Em que momento você teve a “virada de chavinha” e pensou que poderia contar as histórias em outro formato, como o podcast?

Déia Freitas Eu nunca tive essa “virada de chavinha.” Quem virou a minha chavinha foi uma podcaster chamada Priscila Armani, que insistia muito para que eu fizesse um podcast e eu nem queria, porque nem sabia o que era um podcast. Ela me convenceu a abrir um canal no Telegram e eu passei um ano contando histórias em áudios. Após isso, a Priscila falou: “Você não acha que já está pronta para ter um podcast?”. Aí decidi fazer, marquei um estúdio onde consegui gravar duas histórias antes de vir a pandemia e depois comecei a gravar em casa.

Tenho aquela síndrome que a maioria das mulheres negras tem de que, em alguma hora, alguém vai me tirar tudo.” – Déia Freitas.

Revestrés E aí viralizou…

Déia Freitas É. Nem sei como viralizou, como as pessoas foram descobrindo, mas chegou em um ponto que tava todo mundo, de boca a boca, um contando para o outro e indicando. A gente foi crescendo assim, de maneira orgânica mesmo.

Revestrés Como é para você ser uma mulher negra, aos 46 anos, idealizadora de um podcast independente que está no ranking dos mais ouvidos do país?

Déia Freitas Sendo bem sincera, tenho aquela síndrome que a maioria das mulheres negras tem de que, em alguma hora, alguém vai me tirar tudo. Não sei se você entende isso. Eu não sei dizer. Sei onde estou, sei o que eu fiz, mas sempre acho que é um lugar muito instável para quem é negro. Não consigo me sentir consolidada no lugar em que estou. É um pouco complicada a minha relação com essa coisa do pódio, de estar ali entre os mais ouvidos, é meio surreal para mim ainda.

Revestrés O Não Inviabilize possui uma relação bem consolidada com os ouvintes. Como você vê essa rede sólida de interação?

Déia Freitas Acho maravilhoso! Tem um pouco de identificação por ser só eu ali, contando história, eu e o microfone, tem um ar mais intimista. Eu gosto muito que as pessoas conversem entre si no grupo do Telegram. Você entra lá, ninguém conhece ninguém e daqui a pouco tá todo mundo amigo, porque estão ali para comentar as histórias. Um dia, no Twitter, um padre disse que estava viciado no podcast. Eu nem sei se não é pecado! E aí um monge respondeu que também é ouvinte do Não Inviabilize. Olha onde a gente está chegando! Acho isso muito engraçado, alguns lugares que estou acessando e que jamais imaginei que acessaria.

Não vou deixar de falar as coisas que acredito para ter mais ouvintes. Nunca fui uma pessoa neutra e não é agora, com 46 anos, que vou ser.

Revestrés No podcast você fala muita coisa do seu dia a dia e se posiciona politicamente também. Já sofreu algum hate por conta disso?

Déia Freitas Às vezes as pessoas escrevem aborrecidas porque descobrem que vou votar no Lula e falam que não vão ouvir mais e passa um tempo e tão ouvindo. Agora que eu disse que vou fazer uma série de histórias de pessoas que foram beneficiadas por programas como “Minha casa, minha vida”, “Prouni”, já rolou um movimentinho do tipo “Ah, vamos deixar de ouvir”. Não posso fazer nada. Vai deixar de ouvir, tudo bem, é o direito que a pessoa tem. Mas eu não vou deixar de falar as coisas que acredito para ter mais ouvintes. Nunca fui uma pessoa neutra e não é agora, com 46 anos, que vou ser. Eu não posso fazer muita coisa, só lamentar. Até entendo porque, dependendo da pessoa e do que ela acredita politicamente, também não vou ouvi-la.

Revestrés Recentemente você lançou uma vaga de  assistente de roteiro para pessoas não-brancas e isso teve muita repercussão, com gente questionando os critérios de seleção. Essa sensação do lugar instável tem alguma relação com sua preocupação em priorizar pessoas não-brancas nas contratações para a equipe do podcast?

Déia Freitas Olha, só pela vaga que lancei de assistente de roteiro para pessoas pretas, pardas e indígenas, perdi quase mil e quinhentas assinaturas de apoio. É um número expressivo, a gente está falando de mais de 15 mil reais no mês apenas por ter criado uma vaga de emprego direcionada a uma população que, tenho certeza, não tem as mesmas oportunidades. Foi muito fácil para as pessoas deixarem de me apoiar. É muito fácil ainda. E sinto que a qualquer momento, se eu der uma deslizada, as pessoas vão parar de me ouvir. É isso que falo da instabilidade do lugar, parece que é um lugar que a gente está ocupando, mas que não pertence a nós. Eu tenho essa sensação. Tanto que não é uma coisa que me deslumbra, essa coisa dos números do podcast. Gosto de citar às vezes para dizer, “olha, a gente chegou”, mas não é uma coisa que me seduza.

Só pela vaga que lancei de assistente de roteiro para pessoas pretas, pardas e indígenas, perdi mais de 15 mil reais no mês.

Revestrés Você falou que qualquer erro pode te desestabilizar, o que é muito forte, quando você pensa na ocupação de outros lugares, sendo uma mulher negra, principalmente, produzindo conteúdo e se esforçando mais para fazer tudo perfeito…

Déia Freitas Exatamente. Tomo mil vezes mais cuidado com tudo para que não deslize. Eu até comentei no Twitter que o verdadeiro cancelamento, para mim, é quando você estrangula financeiramente ou inviabiliza os projetos de alguém. E, por uma vaga que eu criei, isso aconteceu.

Revestrés E como foi lidar com essa situação? Isso lhe abalou?

Déia Freitas Me abalou bastante. Percebi que ali, no lugar que achei que estava e que podia trazer mais gente para perto, talvez eu até prejudicasse as pessoas que trouxesse. Muita gente mandou mensagem perguntando quanto as pessoas que trabalham comigo ganhavam. Então não afetou só a mim. Todo mundo que trabalha comigo, de certa forma, foi meio que invadido nesse processo. Me deu muito medo disso. Porque aguentar a bronca sozinha é uma coisa, agora, envolver pessoas que trabalham comigo e que não optaram por fazer aquela vaga do jeito que eu quis fazer, isso me doeu mais. Tentei proteger realmente quem trabalha e tá comigo todo dia. Foi o que mais me angustiou: o medo de não conseguir proteger as pessoas que estão do meu lado.

Revestrés Como você vê o papel do produtor de conteúdo e do podcast, quando se trata de priorizar questões de diversidade e inclusão?

Déia Freitas Não posso falar pelos outros produtores de conteúdo, vou falar por mim. No lugar que estou agora, mesmo achando que não seja estável, é minha obrigação puxar para junto de mim, o máximo de gente que conseguir. Sabe aquela coisa de você estar se salvando num navio e tem um monte de gente ali na água? Vou tentar trazer para dentro do navio o que conseguir. É mais ou menos assim que vejo. Toda oportunidade que tenho, tento fazer com que aquela vaga, aquele espaço, seja mais inclusivo. Posso fazer pouquíssima coisa, porque sou uma mulher só e com trabalho independente, mas o que consigo, eu faço.

Revestrés Inclusive você apoia iniciativas de forma mais discreta, sem muito holofote…

Déia Freitas Tudo que sobra do financiamento coletivo tento repassar realmente para algumas ações. Mas nem sempre consigo, porque sou sozinha. Por exemplo, nesse mês que perdi 15 mil, muita coisa que queria fazer já não vou conseguir. É esperar recuperar de novo.

Revestrés Quais as próximas produções do podcast?

Déia Freitas Fazer uma série com a produtora Fábrica, que já está bem avançada e também um contrato com uma editora, que não posso dizer ainda qual, para desenvolver dois livros. Nos dois contratos, consegui colocar também uma cláusula afirmativa que diz que ali tem que ter pessoas pretas, pardas, indígenas, trans e PCDs em qualquer produção minha. Eles aceitaram numa boa e achei muito legal, e a gente vai colocar isso em prática na série.

Revestrés Para encerrar: Por que nomear de pônei as lojas e marcas no podcast?

Déia Freitas Eu sempre gostei de pônei. As pessoas, infelizmente, confundem pôneis com unicórnios. E no começo eu falava as marcas, mas aí uma advogada me alertou que isso poderia me causar problemas no futuro, alguma marca poderia pedir para retirar, ou poderia me processar. E aí, falou: fala alguma coisa genérica, mas não fala o nome da marca e aí eu mudei tudo para pônei.

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Publicado na Revestrés#51. 

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