Se o mundo está uma malha indefinida e imprevisível, a poesia de Manoel Ricardo de Lima joga com a incerteza. Nenhuma ideia é hermética ou completa, mas todo gesto ou atitude significa. “O que pode transformar, ou melhor, o que deixa este aberto de possibilidades está mais perto do que tento ler e ver, do que consigo ler e ver, do esforço para ser um leitor que se desorienta numa metamorfose de vida, da vida, com a vida”, diz ele.  

Professor da Escola de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, nasceu em Parnaíba, no Piauí e, hoje, vive no Rio de Janeiro. É autor dos livros de poemas “Embrulho”, “Quando todos os acidentes acontecem”, “Geografia aérea”, “Um tiro lento atingiu meu coração” e “Onde você está”, além de ter organizado e publicado livros de ensaios e textos críticos de Ruy Belo, Paulo Leminski e Rogério Sganzerla.  

Dança entre poesia e prosa, texto e imagem, afetar o outro e se deixar afetar, co-dirigindo o documentário “Só tenho um norte” (2007), roteirizando o longa-ficção dirigido por Alexandre Veras “Linz – Quando todos os acidentes acontecem” (2013) e  coordenando a coleção Móbile de miniensaios para a Lumme Editora, de São Paulo, desde 2006. 

Manoel Ricardo de Lima nos faz lembrar que a tolerância é, por si só, condenatória e nos põe em causa: afinal, que guerra é essa? “De que lado estamos? de que / lado estamos?”, diz ele, citando poema de Horácio Dídimo. Nos fala de novo fascismo, de literatude abocanhada pela engrenagem capitalista e do direito de exercer a poesia errante. “A poesia, diante disso tudo, pode ser ainda o que vem, num enfrentamento do real”. 

Foto: Amanda Queiroz

Em um mundo cada vez mais tomado de individualismo e intolerância, que lugar tem a poesia hoje? 

MRL – Há duas coisas aí que são muito importantes e que vêm antes e depois do que pode ser um “lugar da poesia”. E têm a ver com uma espécie de novo fascismo. Tanto que insisto na questão da tolerância seguindo o que disse o Pasolini num artigo de 10 de maio de 1969 quando chamava a atenção para o fato de que continuamos numa civilização similar a de Himmler, porque o diferente é sempre visto como criminoso, homossexual ou pobre. E é isto, dizia ele, o que se configura como monstro. O impasse aí é que na perspectiva desse novo fascismo, que agora se expande pelo país e muito pelo contrassenso das redes sociais (que, me parece, nem é rede, nem muito menos social), este mesmo “monstro” reproduz o homem médio total e violento que não o tolera porque o poder decidiu que devemos ser todos iguais, isto é, uma humanidade unânime. Ele afirma, categórico: “A tolerância é só e sempre puramente nominal. Não conheço um único exemplo ou caso de tolerância real. E isto porque uma tolerância real seria uma contradição nos seus termos. O fato de se ‘tolerar’ alguém é o mesmo que o ‘condenar’. Aliás, a tolerância é uma forma de condenação mais refinada.” O que vivemos agora não é diferente do que denunciava Pasolini. E assim, fico pensando que cada indivíduo poderia tomar força e sentido contra um “eu” demasiado concentrado, para um esfacelamento dessa ideia de “eu” e em direção a algum mínimo e esforçado projeto coletivo, algo mais comum. A poesia, diante disso tudo, pode ser ainda o que vem, num enfrentamento do real. Mas quando há apenas um modelo de poesia, de poema, que persegue uma expressão de estruturas particulares, íntimas, que giram em torno de um mundo próprio, o que se tem é apenas uma dimensão precária e frágil do poema. Penso que a poesia, como a democracia, é apenas e somente onde ela falta. Gosto de pensar numa ideia que é: quando a poesia não vem do poeta, mas de uns figurantes; e que se estes têm algo a dizer avançam calados diante desse mundo mapeado.  

Penso que a poesia, como a democracia, é apenas e somente onde ela falta.

Professor há mais de 29 anos, como você vê o rumo que o ensino, principalmente de arte, está tomando no país? 

MRL – Puxa, isso é assustador: não há rumo algum. Começo aos 18 anos num processo formativo encantado: com crianças. Estes pequenos animaizinhos são, em todos os sentidos, os apanhadores da projeção do que ainda é aula. Isto se apostamos no jogo de que aula é aventura. Basta pensar nas ideias de Walter Benjamin com e a partir das crianças; porque o artista, para ele, apenas mantém o jogo burguês com as ideias mais violentas da civilização moderna, capitalista. As crianças é que pervertem tudo, imaginam uns mundos e, portanto, suportam o peso desse mundo para alterá-lo de várias maneiras. Elas são os autênticos anartistas, os figurantes, os que desativam a “obra”, que inoperam a língua, os objetos, o corpo. E uma questão pontual talvez seja a de que a escola é muito mais vezes pensada apenas como espaço de ensino. A primeira escola em que trabalhei, dos 18 aos 25, persegue um gesto de que escola não é um espaço, mas um lugar; de que escola não é uma seriação de ensino, mas uma afecção de aprendizagem. Tento sempre reincorporar isso, como política. E isto tem a ver com o corpo, com lançar-se à vida com mais risco, com muito mais imaginação. Por isso, se estudo é uma aventura, é também aquilo que rejeita guias, mapas, manuais, modelos, cartografias etc. Por isso que na universidade, noutro exemplo, burocrática a todos os lados e, hoje, muito centrada numa ideia industrial de ensino e pesquisa, um último resquício de aventura ainda pode ser a aula. 

Você nasceu em Parnaíba, morou em Fortaleza, Florianópolis e, hoje, reside no Rio de Janeiro. De que maneira essa trajetória é determinante no seu fazer poético? 

MRL – Imagino que esse pequeno deslocamento, com outras várias idas e vindas no meio disso, desfaz essas noções de fronteira, também sempre burocráticas, e impõe um lance mais imprevisto: o do limiar, mesmo que ainda muito tênue. E aí, isso é engraçado, porque desfaz a pertença, desfaz as permanências, e tudo o que fica, se fica, é numa delicadeza irreparável e descontrolada existindo apenas num saber vulnerável e atordoado: com o coração. Se imagino que engendro algum pensamento, a cada livro ou a cada aula, curso, fala, gesto, percurso etc., este fazer é uma expansão do corpo, com o corpo, uma forma de vida e uma vida. É um gesto que vem a partir da convocação de uma comunidade viva e tensa para que algum pensamento se engendre. E tudo o  que vem desse e nesse “fazer” tem a ver com essa comunidade meio invisível, porque também muitas vezes reinventada a cada leitura que tento cumprir.  

Na universidade, muito centrada numa ideia industrial de ensino e pesquisa, um último resquício de aventura ainda pode ser a aula. 

O mercado literário tem ditado quem é visto, lido e comprado. Essa lógica capitalista é capaz de afetar a essência da poesia e da literatura praticadas no Brasil? 

MRL – Sim. E nem é afeta: é determina. O capitalismo é um parasita indômito, não tem lógica, e se adapta fácil a qualquer coisa, qualquer circunstância. Nada lhe é estranho, tudo lhe serve. E aí, tenho impressão que uma tarefa seria alterar completamente todo vocabulário de uso. A literatura de agora é praticamente uma composição conformada de frases feitas para se adaptar ao adaptável do dinheiro. O capitalismo só projeta isso o tempo inteiro, e a literatura de agora com o seu desejo de “feira” e “prêmios” determina todo o resto. Que diferimento pode advir disso? Um ponto seria pensar em modos de enfrentamento dessas “frases feitas”. Uma literatura contemporânea que de alguma maneira raspasse o que disse Aretino quando anotou: “não tenho mais paciência para censuras mesquinhas”.  

Seu posicionamento político-artístico está presente em seus livros. De que maneira a poesia e os afetos são armas de resistência hoje em dia? 

MRL – Se há algo nesses livros que se sugere sem ponto fixo, porque são sempre móveis e movediços, é “ainda e sempre a guerra”. E aqui lembro sempre de um poema radical, porque mínimo e nulo, de Horácio Dídimo, o lado: “quando a guerra rebentou todos / foram para a rua gritando: – de que lado estamos? de que / lado estamos? / – esta guerra não tem lado – / anunciou o porta-voz –  é uma guerra redonda e total”. E quanto a toda essa conversa dos afetos tenho muito cuidado, até porque não percebo a poesia como arma, mas muito mais como armadilha e forma de coragem. Penso num direito ao erro pleno, às palavras e imagens fora da lei, sem essas condenações continuadas e fascistas quase sempre traçadas por um moralismo perverso. E numa errância, ou nessa errância, é que a poesia ainda pode vir. Uma questão ambivalente, pois, e que merece toda atenção: como não cair no mesmo fosso moral quando um contra-moralismo não passa de moralismo mais perverso ainda.   

(Publicada na Revestrés#35- março-abril de 2018).