Sônia Guajajara tem presença forte e olhar sereno. Sobe ao palco usando cocar e cumprimenta a plateia em sua língua nativa. De passagem por Portugal, em evento que tratou sobre processos de ocupação cultural e territorial históricos, é voz de lamento e revolta diante da invisibilidade dos indígenas. Ao gritar “Demarcação, já!”, de punho erguido, clama por justiça.   

Acompanhada por comitiva de dez indígenas de diversas regiões, percorreu a Europa em 2019 com a campanha “Sangue Indígena: nenhuma gota a mais”, jornada realizada para denunciar violações contra os indígenas e o meio ambiente do Brasil. Foram doze países e dezoito cidades visitadas em trinta e cinco dias, conversando com líderes políticos, religiosos, artistas, celebridades, movimentos sociais, movimento estudantil e empresários. 

Sônia Guajajara é destacada liderança feminina indígena do Brasil. Natural da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, quando criança percorria a pé um longo caminho até a escola. Aos 15 anos mudou-se de sua aldeia e foi trabalhar em casa de família para dar continuidade aos estudos. Formada em Letras e Enfermagem, com pós-graduação em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão, foi nesse período que iniciou seu percurso na militância. 

Em 2009, foi a primeira mulher eleita vice-presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e, em 2013, tornou-se líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a mais ampla esfera indígena no país. Também foi a primeira indígena na história brasileira a concorrer à vice-presidência, o que contribuiu para dar visibilidade à luta dos povos indígenas e à pauta ambiental. 

Quando a pandemia do novo coronavírus avança no Brasil e expõe a vulnerabilidade dos povos indígenas, desvelando de forma ainda mais escancarada o racismo e os discursos colonialistas do atual governo federal, Sônia fala sobre o desconhecimento em relação aos povos originários e chama atenção para a necessidade de uma nova narrativa interseccional, capaz de agregar diferentes lutas e projetos emancipatórios. Ela acredita que a esperança está na juventude indígena, que tem quebrado silêncios e recriado a própria identidade. 

Sônia Guajajara | Foto: Mídia NINJA

Revestrés: Você foi a primeira indígena a concorrer à vice-presidência do Brasil. Qual o reflexo disso na luta indígena? 

Sônia Guajajara: A gente segue colhendo os resultados do processo eleitoral, que foi bem significativo. Conseguimos trazer para o centro do debate a questão indígena e a ambiental – não é possível dissociar uma da outra-, sem falar nas relações que conseguimos construir com outros movimentos, de outros segmentos da sociedade. O que fica não é apenas o resultado eleitoral, mas também o resultado político. Está sendo bem importante fazer as pessoas nos escutarem, conseguimos dar um passo à frente na nossa luta e ocupar um espaço além da nossa resistência. 

Revestrés: Nos últimos anos, assistimos aos ataques a indígenas no Brasil, como os incêndios ocorridos em 2018 na Terra Indígena Pankararu, Pernambuco, devido a conflitos com ruralistas, e os assassinatos em 2019 a indígenas Guajajara, no Maranhão. O aumento de ataques como esses está associado ao contexto em que o próprio governo contesta a quantidade de terras indígenas no país? 

SG: O território Pankararu foi alvo do primeiro ato de violência após as eleições de 2018. É uma área que está judicialmente reconhecida como território Pankararu, mas as pessoas não-indígenas que estão morando lá se negam a sair e, agora, se sentem respaldadas pelo discurso do presidente. Esses conflitos se intensificaram por Rondônia, Pará, Rio Grande do Sul, e seguem com esse discurso de negar território. Dizer que não haverá mais área demarcada fortalece essas forças contrárias. A gente teme que isso aumente, porque os assassinatos em 2019 já ultrapassaram o número registrado em 2018 (o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, registrou 135 casos de assassinato de indígenas em 2018; os dados oficiais de 2019, normalmente publicados em abril do ano seguinte, ainda não tinham sido divulgados até o fechamento dessa entrevista). Nós temos feito o trabalho de denúncia e de cobranças para exigir que o governo faça a demarcação. Isso não é um favor, é obrigação e responsabilidade do Estado, é dever da União. Nosso papel é pressionar para que as demarcações de terra sejam cumpridas. Claro que isso mexe com as estruturas do poder econômico, do poder político, porque essa disputa pelo território é uma briga dada há tempos, mas quando se tem um presidente que nega isso, a tendência é intensificar ainda mais os conflitos. 

Quem hoje defende a terra, o meio ambiente, está na mira. É hora de dar visibilidade à violência que está em curso – Sônia Guajajara

Revestrés: Como foi receber a notícia da morte do líder indígena Paulo Paulino Guajajara e, posteriormente, de outros Guajajaras, exatamente no período em que você estava na jornada “Sangue Indígena: Nenhuma Gota a mais”, na Europa, denunciando a violência contra os povos indígenas? 

SG: Quem hoje defende a terra, o meio ambiente, está na mira. É realmente desolador ver um jovem que estava fazendo o trabalho de guardião da floresta ter a vida interrompida dessa forma, é muito triste. Entendemos que é hora de dar visibilidade à violência que está em curso. Nós só podemos exigir justiça, para que outras vidas não sejam interrompidas dessa forma. É difícil aceitar essas perdas, mas elas são munições para termos mais força e coragem de seguir denunciando. 

Revestrés: O início da jornada pela Europa começou no Sínodo para a Amazônia, evento que reúne líderes católicos, para discutir a situação da Igreja na região amazônica e questões ligadas ao meio ambiente e aos povos indígenas. Qual a importância dessa ligação entre Igreja e povos indígenas? 

SG: Durante toda a história a Igreja cometeu muitos erros. Ela foi bem conivente, senão a protagonista de muitos processos de violência com o apelido de catequização. Então a aproximação da Igreja é uma forma de reparar esses erros históricos. Atualmente enxergamos a Igreja Católica como uma aliada das lutas dos povos indígenas, e o Papa ter assumido isso publicamente, trazer o Sínodo com tema da Amazônia e dos povos indígenas foi bem significativo. E por defender os povos indígenas, o meio ambiente e os territórios, ele tem sido muito atacado pelo governo brasileiro, pelas forças ultraconservadoras. A gente retribui esse posicionamento que ele vem assumindo, pois é uma voz muito importante, tem uma força imensa, tem milhões de fiéis, e é importante que a mensagem chegue a essas pessoas. 

Revestrés: Como foi feita a cobertura da campanha? Foi possível fazer com que a mensagem chegasse aos indígenas? 

SG: Tivemos dois coordenadores da Mídia Índia que se voluntariaram para fazer a cobertura em tempo real. Eles conseguiram, com certeza, fazer com que a mensagem chegasse onde antes não chegava. Esse é um canal próprio, em que os indígenas reconhecem que é um veículo que tem uma voz legítima dos povos, por isso consegue vir com adesão mais forte, mais próxima e de mais confiança. Eles já compartilham, comentam, replicam e fazem chegar a informação a várias aldeias, que é o lugar mais difícil de chegar. 

Revestrés: E como surgiu a Mídia Índia? Ela nasceu junto com sua candidatura para a vice-presidência? 

SG: Veio um pouco antes, através de um coletivo de jovens indígenas que começaram a gravar fatos, casos, denúncias, e a criar essa rede de conexão em vários estados. Enquanto representante da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a gente apoiou essa ideia, promoveu encontros para pensar em planos de comunicação, e esse trabalho se ampliou. É um grupo coordenado por dez indígenas e já conta com uma rede de indígenas conectados. 

A Igreja Católica foi  protagonista de violências com o apelido de catequização. Atualmente é como uma aliada. E o Papa tem sido atacado pelo governo brasileiro e forças ultraconservadoras. – Sônia Guajajara

Revestrés: Tem inspiração no Mídia Ninja? 

SG: Sim! A gente fez muitos trabalhos juntos desde de 2013. No ATL (Acampamento Terra Livre) a Mídia Ninja fez curso de formação preparatória com esses jovens para eles realizarem cobertura colaborativa e fazerem a articulação em rede. O grupo de indígenas, então, pegou esses ensinamentos e seguiu produzindo. Foi uma parceria que deu muito certo, inspirando tanto o nome quanto o trabalho que eles fazem. 

Revestrés: Há um crescimento da cultura da comunicação na região Pan Amazônica, com a valorização de mídias alternativas e a formação de comunicadores indígenas. De que maneira isso ajuda a fortalecer as narrativas e contranarrativas? 

SG: Hoje as aldeias, os povos, estão conectados e a juventude tem esse papel fundamental de utilizar as redes sociais em nosso favor, a exemplo da Mídia Índia. Eles estão conseguindo trazer a realidade indígena, contada pelos próprios indígenas. Isso motiva esses jovens. Muitos povos foram dizimados e deixaram de se assumir indígenas pela própria pressão do processo colonial e da ditadura. Muitos tiveram que negar sua própria cultura, negar seu povo, sua identidade, e isso fez com que, por muito tempo, ficássemos em um número muito pequeno. Na década de 1970-80 não chegávamos a 300 mil indígenas pelas contas oficiais. Eles estavam escondidos, com medo de se assumir, porque, na ditadura, não podiam falar muito, usar seus costumes. Isso aniquilou os indígenas simbolicamente. Mas isso veio a mudar na Constituição de 1988, quando voltam a se assumir. Hoje tem muitos povos ressurgindo, reivindicando esse registro, esse reconhecimento, porque sabem de sua origem, de sua raiz e querem espaço para se identificar. É claro que por meio do governo atual é mais difícil, porque esse governo não respeita diversidade nem modos de vida e é declarado inimigo dos povos indígenas. Mas é importante declarar e querer assumir suas origens. 

Revestrés: Sobre o papel das mulheres indígenas, elas têm conseguido desconstruir estigmas nesse processo que busca o protagonismo dos povos indígenas? 

SG: As mulheres estão assumindo o protagonismo em várias frentes de luta em que, por muito tempo, ficaram escondidas. Não alheias, pois sempre estivemos presentes, mas durante muito tempo fomos impedidas de assumir cargos, posições de liderança, às vezes dentro da própria aldeia, e fora dela. Colocar mulher em papel inferior é herança colonial e precisávamos romper com isso. E vamos rompendo. Hoje temos várias mulheres assumindo posições importantes dentro do movimento indígena, nos espaços de diálogo e, principalmente, na luta política. Em 2018 foram 130 candidaturas indígenas articuladas pelo movimento e como resultado disso tivemos a eleição da Joênia Wapichana como deputada federal pelo estado de Roraima, primeira mulher indígena a assumir esse lugar; e ainda a Shirlei Pankará como deputada estadual pela bancada ativista em São Paulo. Foi bem significativo a eleição dessas mulheres e mostra como estamos rompendo as barreiras que historicamente foram impostas sobre nós. A Nara Baré assume a coordenação geral da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). A COIAB tem 30 anos e é a primeira vez que uma mulher assume a coordenação geral. Agora podemos falar tranquilamente que, hoje, a Amazônia está sob cuidado de uma mulher indígena, e a gente vem motivando e fortalecendo essa luta. Em 2018 nós realizamos a primeira marcha das mulheres indígenas, que foi bem potente. As mulheres vieram com muita força! 

Revestrés: Existem várias correntes feministas que dialogam com as indígenas. Você considera que os movimentos feministas ganham uma nova força com a participação das mulheres indígenas? É possível falar de feminismo indígena? 

SG: Essas palavras chegam para a gente como se fosse uma coisa nova. Para nós, assumirmos esse protagonismo, liderar as lutas em defesa de nossos territórios e direitos é um tipo de feminismo, que não precisa conceituar o que a gente faz. O conceito até se distancia da prática porque, às vezes, a gente entende o feminismo como outra coisa que não conhecemos. O que menos importa é a palavra, importam mais a ação e o pensamento. Acho que servimos de inspiração para muita gente, muitos movimentos, mas sem precisar ficar rotulando, sem criar conceitos e respostas para o que fazemos. 

Revestrés: Existem alianças com mulheres de outras frentes, outras militâncias? 

SG: Está em construção. Há espaço para o diálogo, para fortalecer a luta mais plural e estamos no momento de construir essas lutas mais orgânicas. 

Revestrés: Qual o seu maior sonho? 

SG: Respeito. Aos modos de vida, a uma sociedade mais justa, igual para todo mundo. Estamos fazendo a nossa parte. Meu sonho é alcançar o bem viver para todo mundo. 

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Publicado em Revestrés#46 que, devido a pandemia, circulou online e gratuita.

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