“Parece que ninguém se lembra de Joaquim Nabuco”, ouvimos no samba “Bang Bang”, faixa do mais recente álbum de Jorge Mautner, citando o abolicionista nascido em 1849 no Recife, “que pregou a necessidade absoluta da segunda abolição da escravidão / e ela é estudo, cultura… para toda a população”, continua o samba. Nas palavras de seu autor, “é um disco político no sentido profundo da política”. 

Após 13 anos sem um álbum inédito, Mautner lança “Não há abismo em que o Brasil caiba”, produzido pela gravadora Deck com a banda Tono (de Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Ana Lomelino). O grupo vem acompanhando o cantor após a morte de seu grande parceiro Nelson Jacobina (1953 – 2012), a quem o trabalho é dedicado. Com 14 faixas, o disco tem canções para Ruth Mendes, casada com ele há 50 anos; para a professora Dona Catulina, que monta em seu jumento e viaja quilômetros para ensinar as crianças a ler; para a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, assassinados pela milícia carioca. “Uma força furiosa me impele a gritar com os nervos à flor da pele” – enfatiza. 

Nascido em 1941 no Rio de Janeiro, seus pais, de Viena, chegaram fugindo da perseguição de Hitler. Quase todos os seus parentes foram executados. “Se eu não tivesse nascido aqui, seria cinza de forno crematório num campo de concentração nazista” – já disse algumas vezes. Para ele, o Brasil é a ressurreição. Um pouco de sua vida foi narrada no documentário “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” (2012), dirigido por Heitor D’Alincourt e Pedro Bial. E, como além de lógica, sua percepção é mitológica, seus livros estão reunidos na caixa “Mitologia do Kaos” (2002), editada pela Azougue, coordenada por Sergio Cohn. 

“O Brasil é tão profundo e tão misterioso e tão dadivoso e tão impressionante, que ainda não foi desvelado” – começava a me explicar em nossa conversa por telefone, sempre de bom humor, filosófico, amoroso e convidando ao deslumbramento. 

Jorge Mautner | Foto: Gustavo Peres

 

Lançado no violento ano de 2019, por que seu novo disco se chama “Não há abismo em que o Brasil caiba”? 

Esse nome foi dado pelo filósofo português Agostinho da Silva. Ele veio pro Brasil fugindo de Salazar. Colocaram-no num teatro da Bahia. Ele ficou sendo filósofo e instrutor de teatro durante um longo tempo. Uma pessoa maravilhosa. A frase diz tudo: Não há abismo em que o Brasil caiba. É um continente, tem 45% da água, tem minerais. O mundo não come e nem bebe água sem o Brasil. A frase é dele e achei bom colocar.  

Mautner, na verdade o Brasil tem menos água que isso (segundo a Agência Nacional de Águas, o Brasil tem 12% da água doce do planeta). 

É? Se juntar as chuvas com Foz do Iguaçu não dá 45%? (gargalhadas) 

O bolsonarismo nos coloca em que tipo de abismo? 

O bolsonarismo foi resultado direto da Lava Jato e do ministro Moro. É estranho porque Olavo de Carvalho, lá de longe, fica dando instruções… Ele [Bolsonaro] ganhou porque o povo se comoveu, com toda razão, quando teve aquele atentado com a faca. É uma coisa nunca vista. É interessante porque Olavo de Carvalho nega Darwin e Einstein, os dois trilhos principais de tudo. É interessantíssimo! (gargalhadas) É a lei da loucura, parece. Mas o Brasil segue impávido. E tem eleições toda hora, né? No início da década de 50, o grande filósofo [Heidegger] que foi nazista, depois o perdoaram, enfim, ele não foi condenado por ser nazista, disse: “Através da cibernética, viveremos num planeta em que todos serão controlados e controladores”. Aí o Nelson Jacobina trabalhou 40 anos comigo, morreu quase que literalmente no palco, dizia: “Que nada! Vão ser descontrolados e descontroladores”. É o que aconteceu. 

Como está o seu cotidiano? 

Todo dia eu faço meu Tai Chi. Faço as bases medicinais, que são paradas. Depois continua. Eu fiz show do disco aqui no Rio. Fiz mais dois em São Paulo. Devagarinho vou indo pra todos os lugares. Vou também inaugurar o YouTube. Vão sair todos os meus livros editados, com o selo da editora Azougue. Inclusive vem um novo livro, o último da coleção, que será inédito. São poemas em prosa. Tem mais uma coisa impressionante: 4 filmes de 50 minutos cada um sobre a história da minha vida. Vai ter presença do Caetano, do Gil, da Gal, da Bethânia. Conta minha história e, principalmente, como se deu a democratização do Brasil. Chama-se “Kaos em Ação”. Vai entrar no segundo semestre pela HBO. Também me pediram pra fazer outro livro, esse fenômeno dos descontrolados e descontroladores. A informação virou simultânea: conta uma coisa sobre um fenômeno, conta outra contraditória e todas são absorvidas. Então, você já está num mundo que eu chamo de capotagem. O acúmulo de simultaneidades e singularidades constitui esse panorama. É o mecanismo de um tempo muito novo. Oito bilhões de seres humanos! Pensa bem, oito bilhões! Nunca tivemos isso. Condições novíssimas e instantaneidades capotando. Cada notícia, a vitória do Trump, esse neonazismo que agora inclui amigavelmente os próprios judeus… As ideologias não são mais aquelas que eram. É Caos mesmo, mas com C. (risos) Você, por exemplo, vai viver, no mínimo, 200 a 300 anos. 

Mautner e banda Tono: Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Ana Lomelino | Foto: Gustavo Peres

Eu? 

Pela ciência, é claro! 

Será que essa profecia vai se cumprir? 

Ah, vai! Aqui é o profeta falando! (gargalhadas) E tudo que move é a emoção, o mais importante, né? Tem números sentimentais. Você tem emoções nos números. Nada é sem emoção. Emoção parece ser o pensar do cosmos. É tudo mistério e nós observando. 

Na canção “Marielle Franco”, você defende que nós precisamos “exterminar a doença mental-física do racismo, do antifeminismo e do neonazismo”. Que Brasil podemos construir? 

Primeiro, o Brasil de Joaquim Nabuco. Quando houve a abolição dos escravos, ele disse: “Não basta. Tem que haver a segunda abolição”. Pela instrução pública, distribuição de renda… E a segunda abolição ainda não chegou. Nós temos tanta coisa! Não existe foguete, tripulação no espaço, satélite, internet, nem celular sem dois minerais: um é nióbio, o outro é grafeno. Nós temos 95% do nióbio do planeta. Não é impressionante? É simples. Nós tínhamos uma malha ferroviária maravilhosa que funcionava. Não existe país-continente que não tenha estrada de ferro. Estados Unidos, Rússia, toda a Europa, China, Índia. Se tivesse estrada de ferro, toda mercadoria desceria 70% de preço. Olha que incrível! Isso não é feito. É tudo assim. A crise e a necessidade são situações inventadas pelos interesses humanos. O que nós temos em nióbio e grafeno! Acaba o mundo sem esses dois minérios. Agora, pode tirar sem prejudicar a natureza. Nossas florestas são importantíssimas e estão sendo ameaçadas. Todas as nossas reservas florestais fazem o mundo respirar, ter água, tudo ao mesmo tempo. É pela imensidão que é possível esse tipo de política.  

Há mais de 240 povos indígenas no Brasil, falam quase 300 línguas, uma riqueza de diversidade. No entanto, os indígenas ainda são desrespeitados e assassinados. Por que, geralmente, o brasileiro não sente que a causa indígena é também a causa de cada um de nós? 

Olha, eu não sei. Os escritores que eu leio sempre levaram isso em maior conta. É uma herança fundamental de tudo: as ervas medicinais que eles conhecem, a própria disposição de vida como poesia. A nossa história é muito recente. Eu viajei pelo Brasil 40 anos. São imaginações, o Brasil. E a imaginação indígena tem em toda a nossa obra literária e poética. Todo o Guimarães Rosa é influência também do falar do brasileiro, inventando na hora com frases de alta literatura. O candomblé, a umbanda, a quimbanda, as religiões indígenas estão presentes o tempo todo no imaginário e na ação. No sentir brasileiro, tem uma imensidão. E o mundo precisa disso. Ou o mundo se brasilifica ou virará nazista.  

A morte é o mistério final. Não se sabe o que acontece. Pode acontecer nada. O importante é a atuação durante esse espaço chamado de vida.

Qual é o sentido da vida? 

O sentido da vida é o mistério. Depois é o amor. E hoje em dia você já estendeu a vida pra muitos anos além do que era. Eu próprio teria morrido do meu infarto em 2016, não fosse a tecnologia e o médico. Cada dia que passa é como se passassem 100 dias antigamente, ou um século. Uma rapidez infinita de novidades, de estudos. E a ciência virou poesia. Veja bem: tudo é calculado pelo cálculo da incerteza (gargalhadas). Não é genial isso? Parece arte, e é.  

Em 2016 você quase morreu do infarto, colocou três stents. Você está com 78 anos. A idade traz tranquilidade pra lidar com a própria morte? 

A morte é sempre uma coisa que a gente não quer. Mas o que você vai fazer? Se puder viver mais, eu quero. A morte é o mistério final. Não se sabe o que acontece. Pode acontecer nada. O importante é a atuação durante esse espaço chamado de vida. Sobre a morte eu tenho várias poesias que vão ser incluídas no último volume da obra que vai sair. (cantando) “Morre-se assim / Como se faz um atchim”. Eu queria só dizer que o mais importante é o Nelson Jacobina, trabalhou 40 anos comigo. Ele pegou metástase do câncer. Nem o Metadona acabava com as dores. Nem uma outra pílula mais forte. Era só quando ele tocava o violão. Durante seis anos de metástase, ele foi com a Orquestra Imperial pra Europa várias vezes, fez shows comigo por todo lugar e, em Jacareí, pediu no palco pra gente continuar dando o bis. Era um bis interminável! Durou uma hora e meia além do show. As dores só paravam quando ele estava tocando violão. E assim foi até o último show. No dia seguinte, nós voltamos ao Rio. Ele faleceu logo em seguida.  

Há vida depois de morrer? 

Olha, tudo pode ser. O que nós sabemos é que todas as gerações vivem por causa dos seus antepassados. É uma onda contínua a cultura humana, a vida humana. Pode até ser. Eu acho que isso é em forma de música, de obras, de palavras que você falou, de contribuição pra todo mundo. E o pensamento é pura emoção. O que mais importa é isso, os poetas e os músicos que fabricam tudo: as religiões, os hinos, a esperança e representam o viver misterioso nosso que a gente não sabe. Quanto mais se sabe, mais se sabe que tem mais coisa ainda pra saber (risos). 

Você já escreveu sobre Freud. E me contou que, quando você estava internado no hospital, após se recuperar do infarto, todo dia sonhava não conseguir voltar pra casa. Ainda concluiu gargalhando: “Os pesadelos não são piadas fantásticas?” Qual sua relação com a psicanálise? 

Foram dez sonhos inacreditáveis. Eu estava com o Nelson Jacobina fazendo show em qualquer canto do Brasil: Piauí, Bahia, Belém, no Pará, na Amazônia, aquela festa toda. Depois do show, todo mundo se levantando, indo namorar. De repente, eu me vejo totalmente sozinho. O pessoal foi prum lado, pro outro, e não tenho mais ninguém: “Meu Deus, eu tenho que voltar! (fala com ênfase) Meu produtor sumiu? Nelson também? Onde ele foi?” E passa um táxi: “Ô, doutor, eu sou o único táxi daqui, mas não tem mais gasolina, não vou poder levar o senhor.” Isso se repetiu em dez sonhos! E não havia volta! Eu estava no aeroporto e pifava todo o sistema… É impressionante esse recado, né? Freud foi um Mesmer. Na França, pouco antes da Revolução Francesa. Mesmerismo é uma espécie de empatia que faz com que você acredite no ilusionismo do mago à sua frente. São mistérios do sonho, do inconsciente, de lapsos do amor e da morte. Eu falo com você, tem uma empatia prévia porque nós gostamos dos mesmos assuntos, dos livros. Qualquer pessoa tem isso, mas nós somos especialistas no ramo: poetas, músicos, artistas, religiosos, nós estamos com o mistério. Agora, o mistério é o cálculo da incerteza. Olha, eu fui educado sete anos da minha infância totalmente no candomblé. Quando, aos 14, meu pai começou a me mostrar toda essa teoria do relativismo, eu aprendi na hora tudo porque já tinha isso como um sentimento na minha alma. Não existe cálculo da certeza. É só da imaginação iludida no nosso mundo de engenharia (risos). 

Seu psicanalista era o MD Magno. Você ainda faz análise? 

Eu faço, mas é um fato consumado isso porque é tão óbvio: não tem mais volta. Não tem mais táxi: “Doutor, não tem mais nada… Não tem trem, não tem carro, não tem avião, não tem cavalo. Não dá pra voltar mais.” (risos) É incrível, né? Faço [análise] sim, inclusive com a doutora Fernanda e o doutor Daniel, mas é mais dirigido porque eles detectaram o iniciozinho do Alzheimer em mim. Estou brecando nesse iniciozinho porque faço muito exercício. Parece que isso contribui muito contra o Alzheimer. São descobertas recentíssimas. Mas eu tomo uma pílula também pra isso. O importante são meus exercícios nessa minimização do meu Alzheimer. Descobriu-se que o Tai Chi é supremo.  

Que utopia você gostaria que fosse verdade? 

A utopia do amor, da poesia, do constante risos e lágrimas. A linha de Gogol, Dostoiévski, o ser humano com sua ciência. Nós já fotografamos o buraco negro. Fizemos tudo. A vida vai ser estendida cada vez mais. Você vai viver 200 anos. E tudo vai dar certo porque eu acho que a maioria das pessoas quer isso mesmo. Há sempre descarrilamentos pra cá, pra lá. Pelo que eu vi na vida, eu nasci em 41 no meio da Guerra Mundial, e o mundo é outro. Eu acho que o otimismo é mais forte que tudo. Mesmo nos erros, as pessoas querem é viver. Agora, não se esqueça. Não houve ainda a segunda abolição da escravidão. Joaquim Nabuco. Eu prego isso dia e noite. Não chegou ainda a segunda abolição. Ela é estudo pra todo mundo, atendimento médico, todas essas coisas que basta uma decisão pra que isso aconteça. Nós ainda estamos nos empecilhos. Está tudo aí gritando isso. As pessoas mais importantes pra todos nós, primeiro, são os entes queridos, nosso pai, nossa mãe, e depois são os professores e as professoras. (cantando) “Dona Catulina, faça-me o favor… Quero aprender a ler e escrever…”   

Publicado na Revestrés#41 – maio-junho de 2019.

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