Eram quase 20h de uma quarta-feira e as pessoas chegavam para acompanhar um bate-papo sobre dramaturgia no Balde, bairro Dirceu, zona Sudeste de Teresina. O espaço de produção e práticas artísticas ocupa o segundo e terceiro pavimento de uma farmácia em uma das avenidas mais movimentadas da região e, nesse dia, receberia Denise Stutz.

Mineira de Belo Horizonte, ela passou a integrar o Grupo Transforma, no começo dos anos 70, onde trabalhou com nomes como Klauss Vianna, Angel Vianna e Graciela Figueroa. Em 1975, junto com outros 10 bailarinos, fundou o Grupo Corpo, onde permaneceu até 1986. Sua extensa trajetória inclui a Lia Rodrigues Companhia de Danças, onde trabalhou como bailarina, professora e assistente de direção nos anos 90. Além das inúmeras parcerias nos anos 2000, a artista passou a desenvolver seu próprio trabalho, estreando o solo DeCor – destaque no Festival Panorama de Dança, considerado pela crítica da época como um dos dez melhores espetáculos apresentados no Rio de Janeiro em 2003.

Foi o primeiro de muitos que viriam: naquela semana, no Balde, Denise Stutz apresentou 3 solos em 1 tempo, uma releitura de seus solos DeCor (2003), Absolutamente Só (2005) e Estudo para Impressões (2007). No bate-papo que antecedeu sua apresentação, fizeram-lhe inúmeras perguntas sobre seu processo criativo e produção de suas obras. Ela parecia estar interessada em algo mais íntimo: pessoalidades. “Tem muito essa discussão: ‘qual o papel do artista?’. Qual o papel da pessoa, né?!”, respondeu-nos no dia seguinte, em entrevista após seu ensaio. Denise Stutz fala que trabalha sozinha para se entender e que não tem pretensão de nada: “Eu quero poder me colocar no mundo com as minhas mudanças”.

Muitos dos seus trabalhos são solos. O artista é um solitário?

Meu trabalho foi se construindo em solos depois de muitos anos. Eu trabalhei no Grupo Corpo durante muitos anos, depois trabalhei com a companhia da Lia Rodrigues durante muito tempo também. Eu acho que veio da necessidade de ter voz, de entender quem eu era, ali dentro do meu próprio pensamento, do meu próprio universo. Eu acho que todos nós, na verdade, somos sozinhos, não só o artista. Mas meu trabalho veio a partir da relação com o coletivo e com as minhas próprias questões. E de um momento também em que eu precisava trabalhar, eu precisava criar para poder continuar. De um momento em que você começa a se repensar e também a pensar no seu tempo, no que você tem a dizer. Eu ensaio sozinha, acho, para poder me entender, entender a minha própria voz no mundo, pensar em como me colocar. Mas foi a partir de muito tempo trabalhando com muita gente, pessoas que me ensinaram muito.

Você considera sua vida marcada por rupturas? Como a história de vida de um artista influencia em suas criações?

Como eu comecei a trabalhar na dança muito cedo, a minha vida e a minha profissão não se separam. Eu não consigo ver uma separação entre vida profissional e vida particular. A minha sensação é que tudo é a mesma coisa, tudo flui junto. Meu primeiro casamento foi dentro de uma companhia, a minha separação foi dentro de uma companhia, enquanto eu estava dançando eu tive filho, enquanto eu estava dançando eu me mudei, enquanto eu estava criando meus pais morreram. Então, tudo faz parte da minha vida, é uma coisa só. As rupturas que vêm na vida, como as mortes, estão junto com a minha ruptura como pessoa, como profissional, como artista também. Já as rupturas dos meus trabalhos eu prefiro pensar menos que são rupturas e mais que são mudanças, desvios, experiências. Eu não sinto que rompi com nada. Eu passei por essas coisas e essas coisas continuam fazendo parte da minha vida, desde lá, o Grupo Corpo dos anos 80, a Lia (Rodrigues) nos anos 90, os outros diretores, companheiros, parceiros, todos fazem parte do que eu faço hoje. Se eu faço o que eu faço é porque eu passei por todas essas experiências.

Suas obras propõem acessar os lugares do sensível. Nós vivemos tempos inertes, passíveis, insensíveis?

Eu acho que a gente vive outro tempo, um tempo onde a gente está se colocando de outra forma e repensando as nossas próprias formas de vida. Eu fico pensando muito, principalmente, nesses tempos duros de transformação que a gente tem vivido… Eu fico pensando como é que a gente está se transformando com isso, que olhar que a gente tem para isso e como a gente se coloca com isso que tá aí: toda essa dureza no mundo e no Brasil, principalmente. Eu acho que a gente ficou um tempo inerte e agora estamos percebendo que a nossa inércia, ela… Isso que está aí talvez seja resultado da nossa inércia, da nossa não-participação na vida pública, na vida política. A gente foi deixando as coisas irem, mas agora é o momento da não-inércia, da participação, da nossa colocação. Talvez nós tenhamos jogado a responsabilidade no outro, mas a responsabilidade também é nossa.

Sua trajetória está repleta de diferentes influências de corpo. Se existe um corpo contemporâneo, como ele é?

Não existe. O corpo contemporâneo é um corpo em movimento e, corpo em movimento, é um corpo que se transforma a todo o momento, atravessado por todas as coisas e que vai se modificando. Eu acho que esse corpo, como um corpo fechado, estruturado, não existe. Primeiro, são muitos corpos. Não existe forma. Corpo que é formatado não é atravessado pelas coisas. O corpo contemporâneo é um corpo que está vivo, que está aberto para as transformações, todas as modificações, junto com o próprio tempo.

A arte e o artista têm um papel?

Difícil falar sobre isso, né? Acho que o que eu faço talvez reverbere depois… Então, eu não sei muito bem. Talvez seja esse, do pensamento, de se relacionar com o sensível e com as transformações que nós vivemos. Eu, pelo menos, não tenho nenhuma pretensão de chegar a lugar nenhum, em ser alguma coisa, em ter um bom papel. Eu quero poder me colocar no mundo com as minhas mudanças. Tem muito essa discussão: “qual o papel do artista?”. Qual o papel da pessoa? Acho que é uma discussão muito profunda, principalmente agora que o artista tem sido visto como um marginal. Ele é um marginal porque ele está sempre à margem, mas tem sido visto como alguma coisa que suga, como um vagabundo. Como estão enxergando o que a gente faz? Colocam a nossa questão como utilidade, mas na realidade a arte não tem utilidade. A gente não é útil. É sobre necessidade! O que são utilidade e necessidade? O que é necessário existir e o que é útil existir?

(Entrevista publicada na Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)