“Qual a coisa mais importante que as pessoas deveriam saber sobre você?”. A resposta vem sem que a ideia demore para encontrar os lábios e inundar o terraço: “Absolutamente nada. Elas não precisam saber nada, nem que eu existo. Nada!”.

Disseram-me que Marilene é jornalista e escritora. Há provas. Na sua história, publicações literárias, prêmios (inclusive o Jabuti), traduções, além de anos de jornalismo em grandes meios de comunicação no Brasil. Entretanto, agora a sua literatura é apenas sua – o que é uma pena. Marilene escreve, mas não tem publicado nem tem vontade de publicar. Além disso, diz que saiu da mídia e não voltará para a mídia jamais.

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Foto: Maurício Pokemon

A inquietação gerada pela forte personalidade da escritora e jornalista me fez, no dia seguinte ao nosso encontro, procurá-la novamente. Era preciso mais. Marilene consegue ser intensa, ser fechada, e transbordar sensibilidade. Direta, sincera, serena, misteriosa. Uma mulher dura e sem papas na língua, que preenche suas palavras com força – seja as que cala, as que dita e ou as que escreve(u).

Recifense de nascença e paulista por acaso, começa a escrever ainda menina, incentivada pelo trauma da partida e pela saudade da sua cidade natal. Quando vai embora, deixa para traz  cheiros, sabores, memórias e sotaques do Nordeste. “Durante muito tempo, Recife ficou como um lugar mítico literário”, define, e acrescenta a raiva como disparador criativo, um sentimento gerado devido a situações difíceis pelas quais passou na infância pobre e em relações familiares conflituosas. Talvez daí venham seus gestos, traços e respiração de quem lutou. De quem luta. De quem era a única negra da redação em todo o tempo em que trabalhou na Folha de São Paulo. De quem repete mais de uma vez, entusiasmada, o quanto está feliz por ver a quantidade de negros na plateia de uma palestra que ministrou na Universidade Estadual do Piauí (Uespi) sobre “Jornalismo em tempos de crise”.

Marilene Felinto tem esperança na juventude e veste branco e vermelho. Ela, que não quer mais escrever, diz que se não escrevesse, seria uma louca.

O que fez com que você decidisse sair da Folha de São Paulo? Foi falta de liberdade de expressão?

Eu até tinha liberdade, até certo ponto, porque eu era uma colunista de opinião, escrevia basicamente sobre o que eu queria, mas houve momentos, obviamente, em que fui censurada de forma clara e nítida. Eu tive mais de um texto proibido de sair por censura da direção de redação, que dizia “isso não vai sair”. “Ah, e por que não vai sair?”, e a resposta era sempre: “nós temos interesses nesse grupo e nesse nome”, “o jornal depende desses anúncios” etc. Mas especificamente, o motivo pra eu sair da Folha foi quando o Lula foi eleito pela primeira vez e eu fui acusada de fazer proselitismo político pra campanha dele. O jornal alegava que era neutro, o que não existia, nunca existiu, faziam campanha pro Serra, na época. Aí quiseram cortar minha coluna, diminuir a periodicidade– ao invés de semanal, seria quinzenal-, quiseram cortar meu salário, tudo que eu escrevesse iria passar pela direção de redação a partir dali… E aí eu falei não, então tchau.

Quais as diferenças pessoais, profissionais e políticas da Marilene daquela época e de hoje?

A Marilene politicamente foi essa que abdicou de uma posição de colunista no maior jornal do país. Pouca gente faria isso, porque a ligação da mídia com o poder é enorme, você é visto como uma pessoa de poder porque escreve em um jornal, tem uma coluna. Então, politicamente, eticamente, moralmente, eu sou a mesma. A única coisa que mudou é que hoje eu tenho asco de mídia. Tô te dando essa entrevista como uma exceção.

Como um cidadão comum, que se vê desamparado de apoio do Estado, pode ser ativo na construção de indivíduos mais conscientes, participativos, mais críticos à mídia?

Como diz Marilena Chauí, talvez a melhor leitura hoje sobre o Brasil é que somos um país autoritário e violento. Não que o povo seja autoritário e violento, mas as estruturas históricas são. O mito do brasileiro cordial caiu por terra há tempos. O que existe é um brasileiro seduzido pelo poder da autoridade. Essa sedução ocorre, em parte, porque se trata de um povo de educação de má qualidade, não é um povo formado para a cidadania, e por isso mesmo delega ao poder público o exercício do poder. Eu acho que o que falta é o brasileiro se unir para construir sua própria cidadania, tirar essas estruturas políticas podres e construir uma cidadania de “nós”, de sujeitos. Temos uma educação manipulada pela mídia corporativa, ligada aos interesses das classes dominantes, que manipula tanto quem não tem instrução, como quem tem. Isso também é um desrespeito ao direito humano. A comunicação é um direito fundamental, a gente tem direito de ser informado, de informar. A informação não é algo monolítico, de caminho único. A mídia brasileira e mundial transformaram a informação de modo a que essa interação com o cidadão não aconteça. Eu acho que deveria haver nas escolas, na educação pública de ensino médio e fundamental, uma disciplina para análise crítica da mídia, para que os jovens aprendessem desde cedo a lidar com a mídia. Claro que você tem análise de texto jornalístico, tem português etc, só que pra você mostrar os mecanismos de manipulação em um texto jornalístico, você tem que ensinar as pessoas a “lerem” a mídia.

Politicamente, eticamente, moralmente, eu sou a mesma. A única coisa que mudou é que hoje eu tenho asco de mídia

Como gerir a linha tênue entre liberdade comunicativa e a forma como espaços tão amplos e importantes como a internet são utilizados?

Eu prefiro a liberdade. Eu acho que, em primeiro lugar, você tem que ter uma regulação da mídia no Brasil. Como se fez na Argentina, Equador: quebrar os monopólios midiáticos. Então quem tem a concessão de televisão a cabo, não pode ter televisão aberta e não pode ter rádios. Você tem que democratizar a mídia. Eu acho a internet um instrumento de democratização da comunicação. A gente tá vivendo esse momento em que as gerações mais jovens escrevem e isso é positivo, nem que seja errado, nem que seja uma linguagem internetês. A revolução tecnológica permite que os caras escrevam como antes não se via, a não ser redação de escola, que é amarrada a regras, e onde muitas vezes se escreve com raiva. É importante regulamentar a internet, mas fazer isso neste momento no Brasil, pode ser apenas mais uma atitude da onda policialesca e autoritária que estamos vivendo. É preciso ficar muito atento a esse momento do Brasil. Por mais que a internet, muitas vezes, seja uma selva sem limites, ela permite uma liberdade fantástica. E a desinformação na plataforma digital não é maior do que a desinformação da notícia manipulada que você lê no jornal ou assiste na TV.

Você já definiu escrever como uma ferramenta de compreensão do mundo. Como você tem compreendido a situação em que vivemos hoje no Brasil?

Acho que é um dos momentos mais tristes da história do Brasil. Eu sempre fui militante do PT, não tenho nenhuma vergonha de dizer isso. A gente ia pra rua apoiar o Sindicato dos Metalúrgicos, saia da Universidade de São Paulo, atravessava a cidade, ia pra São Bernardo do Campo, pra construir o PT, pra ajudar a dar voz aos operários. Teve toda uma batalha que as gerações mais jovens não conhecem. Então, talvez o que eu estou vivendo é bem mais triste do que pra vocês, jovens. Vejo ações na justiça que não são para moralizar ou acabar com a corrupção no Brasil, mas para acabar com um partido. O PT errou vergonhosamente, porque não poderia ter entrado na mesma onda que outros partidos. O PT é amador em termos de corrupção, não digo que seja ingênuo, mas foi tão burro que chegou nesse lugar onde hoje está. Isso é muito triste pra minha geração, que acreditava numa política mais ética, menos corrupta. Mas eu não culpo o PT da forma como a mídia faz. Você tem que atribuir nomes a todos. E vivemos uma época de desmonte de uma série de conquistas sociais que, nos últimos 12 anos, o Brasil experimentava pela primeira vez. Quem é do Piauí, pobre, certamente sabe que melhorou de vida com as políticas sociais. Vivemos agora a destruição de um projeto político focado nas questões sociais e uma discussão gravíssima que tira dos trabalhadores e os pune. A Rede Globo não só apoia o golpe de uma presidenta eleita democraticamente, como promove outro golpe: quem é que tá derrubando o Temer? É você? Sou eu? Você pode dizer, “a gente foi pra rua”, mas se a Globo não tivesse enfocando esse escândalo, se ele não tivesse no Jornal Nacional, a verdade é que teria muito menos impacto do que está tendo. Somos governados por uma corporação midiática gigantesca, poderosíssima, cuja concessão já acabou diversas vezes, e é renovada outras ‘n’ vezes em um conchavo na Câmara e Senado. Essa concessão está para ser renovada de novo, você sabia disso? A geração de vocês sabe disso? Os pais de vocês já se perguntaram se querem que essa concessão seja renovada? Por que a gente não é consultado? É isso que estamos vivendo: um golpe promovido por conglomerados midiáticos fortíssimos, gigantescos, e sendo iludidos de que somos nós, ou algum grupo político, que estejam a fazer alguma coisa…

(Entrevista publicada na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)