Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Wellington Soares e Douglas Machado. Edição: André Gonçalves. Foto Alexandre Soares/Respira Filmes.

Desde seu lançamento oficial, em 29 de agosto, Bacurau arrastou mais de 600 mil pessoas às salas de cinema, apenas no Brasil. Em um país politicamente dividido e polarizado, o filme, para muitos quase um libelo à resistência popular contra a opressão, tem levantado opiniões, despertado fortes paixões e gerado interpretações de todos os tipos, para todos os gostos. 

Em Teresina para uma sessão comentada de Bacurau nos Cinemas Teresina, os diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles viram, um tanto emocionados, cerca de 500 pessoas, divididas em duas salas lotadas, aplaudirem de pé por longos três minutos ao final da projeção. Antes, reservaram um tempo para uma conversa exclusiva com Revestrés. Para se ter uma ideia da rotina a que estão submetidos após o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e o lançamento de Bacurau, a entrevista, marcada para as 16h, foi transferida, a pedido dos diretores, para as 19h: queriam aproveitar esse tempo para dormir um pouco. Antes da entrevista, fotos e tietagem nos corredores do shopping e no saguão dos cinemas. Na sala reservada pela direção para o nosso encontro, monitores de segurança mostravam os guichês de venda de ingressos, com a câmera em posição elevada, mãos recebendo dinheiro, mãos entregando dinheiro. Juliano cutuca o parceiro e diz: “essa imagem é tão Scorcese, não?”, recebendo a concordância de Kleber para, juntos, passarem algum tempo observando as imagens. Só pararam para começar nossa conversa. 

Que, claro, só podia girar em torno do que ambos parecem respirar o tempo todo: cinema. 

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Foto | Alexandre Soares/Respira Filmes

Samária – O Karin Aïnouz, que também foi vencedor em Cannes, já disse que vencer esse festival é uma faca de dois gumes: você tem muita visibilidade e pode ser muito bom ou muito ruim. Como está sendo pra vocês? 

Kleber Mendonça Filho– Eu acho que no nosso caso foi o lado bom. O filme foi muito bem recebido desde a primeira sessão, ganhou Prêmio do Júri no final do Festival, tem sido comercializado em dezenas de países, chegou no Brasil com muita força por causa da exposição gigante que teve em Cannes, então… Sim, Cannes é assustador, porque um filme pode ser destruído subindo os créditos, ainda, já vi isso, até como jornalista, muitas vezes. Mas também pode ser o nascimento de um belo filme e o mundo perceber e traduzir isso em críticas, em zumzumzum, que em inglês se chama buzz. Com Aquarius e com Bacurau eu tive muita sorte de os filmes serem muito bem recebidos. 

Samária – Vocês chegaram a um local muito pequeno com uma equipe grande, e passaram um tempo lá. Como foi a convivência com o local e com as pessoas do local? 

Juliano Dornelles – Eu acho que aconteceu de forma muito tranquila. Normalmente acontece de equipes de cinema chegarem em lugares assim e os transformarem, de uma forma não muito positiva. É um pouco predatório, às vezes, não há uma preocupação muito grande em respeitar o cotidiano das pessoas. As pessoas, às vezes, se aproveitam da hospitalidade e da abertura que os anfitriões têm. Acho que isso vem mudando, porque é uma questão de como o cinema brasileiro vem se comportando. Existia uma aura de superioridade do artista, e hoje em dia acho que tem uma relação mais horizontal e de respeito. A própria autoestima das pessoas mudou muito, não tem muito uma sensação de subalternidade como era décadas atrás. No nosso caso foi uma preocupação, minha, de Kleber e de Emilie (produtora), de conversar sempre com a equipe, transformar isso num mandamento da produção, de muito cuidado com as pessoas e com respeito. No final das contas, quando você estabelece essa relação de respeito, outras coisas boas surgem. A gente ficou muito amigo, muito próximo, são pessoas incríveis. A gente teve sorte, também, porque as pessoas queriam a gente lá, as pessoas nos receberam de forma muito afetuosa e feliz. Aí tem essa coisa contemporânea, das redes sociais, do Whatsapp, do Facebook, e a gente não perdeu o contato. Hoje chegou uma pergunta de uma moradora de Parelhas, diretamente no meu Whatsapp: “Juliano, o que são aquelas pilulazinhas“? (risos) Eu estava saindo aqui da apresentação e chegou, foi a senhora que alugou a casa dela pra eu ficar lá hospedado, fiquei durante um mês na casa dela. E a gente conversa de vez em quando. No dia da exibição em Barra, a gente fez uma exibição na locação em que foram quase três mil pessoas, e ela esteve presente e não foi falar comigo porque ficou encabulada. Depois mandou mensagem se desculpando. Enfim, eu acho que mudou, que era diferente e hoje a gente consegue ter essa relação boa. 

André – Nós vimos imagens da projeção do filme, em Barra, e vimos também matérias com as pessoas, orgulhosas. Elas falam que a cidade entrou no mapa. Que marcas vocês acham que uma visibilidade como essa pode deixar para as pessoas da cidade? 

Kleber – O filme é sobre uma invasão, dentro de uma ideia de filme de gênero, de western. Uma invasão violenta, no caso. Quando a gente chegou lá queria fazer uma colaboração, mas que poderia ser interpretada como uma invasão. Afinal, uma comunidade com 90 pessoas de repente conviver com mais 150, 200 pessoas, não deixa de ser um tipo de invasão. 

O final das filmagens foi muito duro, muito triste, porque os dois lados estavam muito emotivos. E agora, quando a gente chegou, a primeira coisa que eu e Juliano ouvimos foi: “a gente achou que vocês iam esquecer da gente”. Kleber Mendonça Filho

Juliano – Porque você impõe uma mudança de rotina muito radical. 

Kleber – É, e são costumes diferentes, são pessoas diferentes, de outros lugares do país, de outros lugares do mundo, inclusive. Mas era de extrema importância que o trabalho fosse muito claro e muito honesto em relação às nossas intenções. O que é muito curioso: logo no início é como se eles não entendessem porque a gente teria o interesse de trabalhar lá, em Barra. “Por que aqui, esse lugar tão desinteressante”? Então eles começaram a aprender que o lugar deles não é desinteressante, é um lugar, na verdade, muito interessante. E hoje Barra está no mapa, ela está no mapa de uma maneira que, inclusive, a própria comunidade abraçou. Eles têm marcas da passagem do filme, que eles estão prontos para oferecer e explorar de uma maneira que não sei se chega a ser turística, mas as marcas do filme ainda existem lá. Acho que ficou uma relação humana muito boa, muito rica. O final das filmagens foi muito duro, muito triste, porque os dois lados estavam muito emotivos. E agora, quando a gente chegou, a primeira coisa que eu e Juliano ouvimos foi: “a gente achou que vocês iam esquecer da gente”. 

Juliano – Interessante que isso foi dito por um senhor, o seu Tadeu, que foi a primeira pessoa que a gente encontrou quando desceu da van na pesquisa de locação. Eu pessoalmente cheguei pra ele, na época, dizendo que voltaria, mesmo que com uma televisãozinha de 32 polegadas e um DVD player, pra exibir o filme pra eles lá. Quer dizer, mesmo eu tendo assumido um compromisso, ele ainda tinha esse sentimento. São pequenas coisas. A gente, por exemplo, estava filmando ao lado da igreja, num domingo, em que iria acontecer uma missa. E a missa estava atrapalhando a nossa filmagem. Normalmente o que acontece é as pessoas irem pedir pro pessoal ficar calado, ou falar mais baixo, de alguma forma interferir lá. A gente não, a gente mudou o que ia filmar, coisas que não ia precisar ter som direto, pra poder coexistir lá, numa boa. Acho que são essas pequenas coisas, a gente não usou o nosso “poderio”, porque a gente chega com aquele circo, aquela quantidade de gente, automaticamente as pessoas já se sentem subalternas de alguma maneira. Mas isso nunca foi uma questão pra gente. Acho que eles foram pegos de surpresa. O povoado se sente subalterno de Parelhas, que é um município. Ele se sente desassistido. Se você for ver Parelhas em relação à capital Natal, se você for ver o Rio Grande do Norte em relação ao Brasil… E aí vai. E Bacurau é sobre isso, também, é um tema do filme. 

Wellington – Esses três filmes, O som ao redor, Aquarius e Bacurau são centrados em mulheres fortes. Nós temos a Bia em O Som ao Redor, temos a Clara em Aquarius e, em Bacurau, temos a Domingas. 

Juliano – E Carmelita! 

Wellington – E Carmelita, também. Como vocês entendem o papel das mulheres no mundo atual? 

Kleber – Minha mãe é falecida, já, mas era uma mulher forte, uma fonte de inspiração muito grande pra mim. Como gente, como bússola moral. Eu não sei, é natural. Nos curtas já tinha essas mulheres. Eu não sei explicar. Como observadores vocês talvez tenham mais instrumentos pra falar sobre isso, mas o que eu posso dizer é que eu admiro, gosto das mulheres, e gosto muito de apresentar personagens que o senso comum não esperaria ver num filme, ou numa narrativa. Você vê muito na comunicação em massa, do jornalismo às novelas, aos filmes americanos, aos filmes brasileiros, um tratamento sempre muito nojento, na verdade, de mulheres. De apresentar uma personagem pela bunda, subindo pelas costas até chegar no rosto. Acontece muito. A ser só um acessório bonitinho para o personagem do homem. Isso não vai acontecer nos meus filmes. Não é nem uma coisa marcada, cartesiana, simplesmente eu escrevo e simplesmente as mulheres são do jeito que elas são, nos filmes. E nunca, jamais, eu escrevendo com o Juliano, isso foi questionado. A gente pensa igual, parecido, as mulheres saem fortes. Eu gosto muito de Isa, no filme, que é a museóloga. A companheira de Domingas, eu tenho particular carinho por aquela personagem. 

Você vê muito na comunicação em massa, do jornalismo às novelas, um tratamento sempre muito nojento, na verdade, de apresentar uma personagem pela bunda, subindo pelas costas até chegar no rosto.  Kleber Mendonça Filho

Juliano – O que aconteceu em Bacurau foi que a gente tentou construir essas pessoas, essa população, daquele lugar, algumas são arquétipos clássicos, de histórias clássicas da literatura e até do cinema, mas sempre indo num caminho de quebra de expectativa. Um exemplo bom é Lunga, que normalmente seria um homem viril, um Charles Bronson. E a gente sempre viu Lunga como uma figura que não tinha uma definição muito clara de sexualidade, era um personagem em que a força dele vinha da liberdade que ele tinha. E acho que isso é o mais importante, a gente compôs esses personagens sempre indo contra esses estereótipos. E isso se aplica a essa questão da mulher, também, da representação feminina em Bacurau. 

Kleber – Mas acho que está também em todos os outros personagens. Você tem Pacote, que está querendo sair da vida de ser um matador, sei lá o que ele faz, ele na verdade não gosta dessa história de fazer vídeo pra enaltecer a imagem de assassino, dele. Talvez em outro filme ele estaria “oh, meu vídeo, veja meu vídeo”. No final, ele pergunta pra Teresa: “Será que Lunga não exagerou não, nesse negócio aqui?”. E aí Teresa, que alguém poderia achar que ia dizer “sim, exagerou, isso é terrível”, diz: “não, não exagerou não”. Então são coisas que acho que fazem parte da vida e estão no filme, mas não estão em muitos filmes. 

Douglas Machado – É fácil a gente perceber pontos muito fortes do cinema, falando especificamente de Bacurau. A gente pode citar Os Sete Samurais, o cinema do Sergio Leone, Cronemberger, até do Alejandro Jodorovski. Mas ao mesmo tempo tem muito da trajetória de vocês, o que é inevitável. Teve algum momento de pensar nesse equilíbrio, para que quem não tem essas camadas de entendimento também possa abraçar o filme? Foi algo que vocês pensaram, que tinha de ter um filme antes de qualquer coisa? 

Kleber – As referências não podem nunca parar o filme, elas não podem ser referências bibliográficas, como notas de rodapé embaixo da tela. Você tá vendo um filme e tem uma nota de rodapé embaixo, você tem que colocar os óculos pra ler. Não pode nunca ser isso, tem de ser tudo muito fluente, muito orgânico. Por exemplo, os trabalhos acadêmicos têm uma linguagem que me irrita bastante porque têm que ter citações o tempo todo, elas fazem parar o fluxo de pensamento. E eu não sou dessa escola, acho que nunca conseguiria ser da Academia, porque às vezes fico querendo “ok, e a sua opinião, o que é que você acha? Tudo bem que Foucault acha isso, mas o que você acha?”. Mas claro que isso é cool, citar Foucault, Umberto Eco. Na verdade, elas funcionam no roteiro muito mais pra gente saber que está em um território fértil. Mas não pode, nunca, o filme parar pra ter uma citação. Tem que ser parte orgânica do filme. 

Um exemplo bom é Lunga, que normalmente seria um homem viril, um Charles Bronson. E a gente sempre viu Lunga como uma figura que não tinha uma definição muito clara de sexualidade. Juliano Dornelles

Juliano – O que aconteceu foi que, quando a gente escreveu o roteiro, usava essas imagens desses filmes que você enxergou, e outros, como uma forma de gramática, mesmo, de comunicação entre a gente. “Vamos filmar como o John McTiernan fez aquela cena lá do Duro de Matar”, o caminhão vem por aqui, a câmera fica nessa posição… É muito mais lembrando bons momentos e cenas boas e que tinham total relação com o que a gente queria dizer naquela cena. É mais uma forma de a gente se comunicar: “onde é que a câmera estaria”? Aí Kleber dizia: “lembra aquela cena, daquele filme, a câmera vem aqui, o personagem passa da esquerda para a direita, a câmera sobe, e aí mostra os outros personagens lá atrás, pronto”. Assim eu acho que funciona o uso de referências. 

Kleber – Mas não é decalcado. 

Juliano – Não é decalcado, é mais… 

Kleber – No set a gente não tá com um telefone olhando se tá direito, não é assim, é mais uma coisa da cabeça. 

Juliano – É pra ajudar no entendimento. Às vezes a gente escreve uma cena, e aconteceu em um caso específico, eu juro que é verdade. Tem um filme, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, de Sam Peckinpah, em que metade do filme ele está dentro de um carro com a cabeça de um cara, de Alfredo Garcia, no banco do passageiro. E ele tá dirigindo e conversando com essa cabeça. É um filme sensacional! E a gente escreveu um momento, de Pacote levando os dois corpos, de Flávio e Maciel, até o esconderijo de Lunga e do seu bando. A gente escreveu, a gente não falou desse filme. Mas, quando estava na montagem: “ah, Alfredo Garcia, olha aí”. 

Douglas – O que eu quero dizer é que nesse diálogo que existe no cinema, e no qual Bacurau tá muito inserido e é um grande cinema, em nenhum momento deixa de ser uma grande história. Se você não souber nada desses diretores, a história chega com a mesma potência, da mesma forma. Em nenhum momento parei pra lembrar desses diretores. Você só vê história. Depois, na segunda vez, “cara, olha só”, me lembra uma série de filmes. 

Kleber – Isso é muito bom. 

Juliano – É como quando você se interessa por uma pessoa, o papo rola naturalmente, aí você encontra uma segunda vez e vai começando a perceber características de que família, que tipo de criação ela teve, em que cidade ela morou, você começa a entender. Você percebe melhor o sotaque, você percebe melhor o estado de espírito. 

Samária – Aquela reação da comunidade, no filme, é meio catártica. E como foi pras pessoas que fazem o filme, elas acharam mesmo que precisavam fazer aquilo, que tinha de ser daquele jeito? 

Kleber – Na parte final tem dois planos que eu gosto muito, da comunidade. São as pessoas paradas, olhando. Têm dois planos bem fortes disso, é uma “coleção” muito boa de gente. Branco, preto, meio indígena, roupas coloridas, roupas brancas, e eles estão perfeitos, eles estão completamente dentro. Eles poderiam estar todos perfeitos e um meio que pensando “tá faltando manteiga em casa”. Não, estão todos perfeitos. Todos! Isso foi trabalhado durante um tempo, estava todo mundo muito dentro da situação. O meu palpite é que as situações humanas do filme são muito claras. Você não tem que pedir muito, não tem que fazer pedidos absurdos pras pessoas. As situações são claras. Por exemplo: o violeiro vai receber os sudestinos, e ele está meio sarcástico com aqueles dois visitantes, e os dois visitantes estão sarcásticos… 

Juliano – Ele tá tirando a maior onda! (risos) 

Kleber – Ele tá tirando onda e o filme vira um musical, na linguagem, inclusive: tem um travelling de trilho, que mostra os pés dele, acompanha de lado, entram uns figurantes atrás, rindo, parece uma cena meio, sei lá, Pequena Loja dos Horrores. É uma coisa muito estranha que, de repente, cai de paraquedas no filme. 

Juliano – E o detalhe é que a figuração estava realmente achando engraçada a situação. Esqueceram câmera e viveram aquela situação. 

Kleber – É, eles realmente estavam gostando do que estavam vendo. Mas também teve um outro momento, quando a gente precisava de mais planos de reação, a gente colocava a câmera e dizia “vamos rir um pouco, agora”, e aí eles riam perfeitamente. Uma coisa bem de cinema, né? Quase Cinecittà. “Ação”: ha ha ha ha ha ha ha ha (imita riso do personagem, e todos na sala riem muito). Eram perfeitos! Eram atores perfeitos, sabe como é? Poderia ficar ruim, poderia ficar um riso meio estranho, meio… Mas tá tudo no filme. A gente foi muito feliz fazendo esse filme. 

Juliano – A gente teve uma equipe muito competente que ficou com essas pessoas no período de preparação, antes das filmagens, fazendo diversos exercícios, tendo diversas conversas, mostrando filmes, falando a história, e isso foi fundamental. Porque as pessoas já chegaram com outra compreensão. Não é como acontece normalmente, que você vai fazer um filme, liga para algumas pessoas, pede pro produtor de figuração arranjar cinquenta pessoas mais ou menos com esse perfil, e aí eles descobrem o que vão fazer na hora. Não foi assim, teve uma preparação. Assim como a gente preparou o elenco principal com ensaios, todos eles fizeram isso também. Isso faz muita diferença. 

Kleber – Tem muitos membros da equipe que falam que foi a primeira vez que eles viram preparação e ensaio de figurantes, que isso não existe. 

Juliano – Mas era fundamental porque Bacurau é um filme sobre uma comunidade, então essas pessoas tinham de estar no mesmo nível das nossas estrelas. 

André – Em O Som ao Redor, Recife Frio, Aquarius, sempre tem a presença da violência, mas uma violência mais “institucional”: do poder público, da… 

Kleber – Moral. 

André – Moral, também algo assim. E em Bacurau existe uma violência mais explícita, gráfica: a cabeça explode, muito sangue… Isso foi motivo de algumas críticas. A pergunta que faço a vocês me lembra do Pacote: em algum momento a pergunta do Pacote foi uma pergunta de vocês, “não exageramos um pouco, não”? Ou saiu tudo como vocês queriam que tivesse saído? 

Kleber – De jeito nenhum. Acho que o que acontece é que há uma falta de prática do observador brasileiro, do cinema brasileiro, de gênero. Porque o cinema brasileiro não pratica o gênero, com muita frequência. Até tem praticado com mais frequência nos últimos anos, por causa da nossa geração, por exemplo. Nossa geração cresceu vendo filmes de gênero. A geração do Cacá Diegues, do Nelson Pereira dos Santos, do Glauber Rocha, eles foram formados humanamente, artisticamente, em outro momento do mundo e do cinema. O realismo social era muito mais a escola frequente, a escola constante do cinema brasileiro. E, claro, a comédia, as chanchadas nos anos 1950, a pornochanchada nos anos 1970 e, na contemporaneidade, a comédia, que alguns chamam de “comédias da Globo”, os filmes de comédia…. (pausa, tenta lembrar algo) É incrível, me dá um branco de todos eles quando eu penso. Eu respeito, acho que o cinema brasileiro tem que ter comédia… Então é muito estranho, para alguns. A nossa sorte é que é para muito poucos, na verdade, em relação à grande reação que a gente tem tido a Bacurau. O filme tem pegado uma quantidade gigante de gente. Mas têm alguns que ainda insistem em afirmar que não pode fazer isso. E a gente diz: pode fazer isso. Eu posso usar a violência gráfica. 

Juliano – Isso também é cinema. 

Kleber – Isso também é cinema, isso é um filme de gênero, é um western, mas ele também vira um filme de horror. Ele vira um filme de ficção científica, um filme de ação. 

Eu tô muito orgulhoso da forma como a gente tratou a utilização do elemento violência e da brutalidade, e do efeito que isso tem sobre as pessoas.  Kleber Mendonça Filho

Juliano – E termina como um filme de guerra! 

Kleber – Termina como um filme de guerra. E nesse tipo de cinema pessoas são atingidas, existe uma violência, mas era muito importante nesse filme que a violência fosse feia, não fosse engraçada, não acho que ela é engraçada de jeito nenhum. Quando você vê a cena do casebre de Damiano você vê o impacto da violência no corpo humano, aquilo não é bonito. É catártico por causa da narrativa, mas não é bonito. E o que acontece depois em cena não é engraçado, eles estão querendo entender, “porque é que vocês estão fazendo isso”. Eu tô muito orgulhoso da forma como a gente tratou a utilização do elemento violência e da brutalidade, e do efeito que isso tem sobre as pessoas. Acho que o filme consegue ter um final muito inusitado, um final muito estranho. Porque ele é emocionalmente satisfatório, você fica tocado, fica até excitado, mas ao mesmo tempo não há uma celebração. Não é o final de O Retorno de Jedi, onde têm os ursinhos ao redor de uma fogueira, todo mundo brincando e bebendo e dançando. O final de Bacurau é triste. É muito triste. 

Juliano – Não há um rosto sequer que esteja sorrindo, naquele momento. 

Kleber – É, tem um peso. 

Juliano – E sobre Pacote, aquilo ali é um resumo do que o filme construiu para Pacote. Pacote está cansado dessa vida de violência, desde o início é muito claro. Naquele momento ele viu uma exacerbação de uma atitude violenta vinda de Lunga, que é uma pessoa que a gente já sabia que ele se afastou, então isso já tá dito pelo filme. Então é normal aquela pergunta sair da boca daquele personagem. Não é uma questão de a gente fazer um mea culpa, foi uma personagem que disse aquilo. 

Wellington – Em Aquarius há uma denúncia sobre a especulação imobiliária, sendo o conflito, de certo modo, principal. Mas de todos os conflitos presentes no filme, o que mais me tocou foi o da solidão, que é vivido pela Clara, uma mulher bonita e burguesa. Qual a intenção disso? Isso ocorre nos outros filmes?  

Kleber – A coisa da história é uma questão de qualidade da escrita. Qualquer grande livro funciona em vários níveis, em várias camadas. Eu acho que fazer um documentário sobre essas sete salas aqui, no shopping, não é só um documentário sobre essas salas no shopping. É um documentário sobre, não sei, um casal que se apaixonou e tá com um filho de oito meses. É sobre produtos eletrônicos, ou sobre cultura americana, tem muita coisa. É uma questão de você escrever e, no seu estilo, ou seja lá que talento você tem pra escrever, ele transborda de outras maneiras. Então, Aquarius não é só sobre especulação imobiliária, é sobre histórias, seres humanos, sobre arquivo. E sobre a praia de Boa Viagem, sobre o Recife. Eu não consigo escrever simples, eu acho. Acho que até parece simples, mas tudo é cheio de lados, de pontos de vista, por isso que leva tanto tempo pra fazer um filme. Não sei se eu respondi a pergunta. 

Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.

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