No meio do caos urbano, uma grade pequenina entre cobogós discretos quase passa despercebida. Estamos na Avenida Frei Serafim, um dos principais corredores da cidade de Teresina. Alguns poucos bangalôs de época, hoje descaracterizados, nos dão a pista de que, um dia, famílias inteiras fizeram daquela avenida o seu endereço. Tudo ali agora é comercial: lojas, serviços, estacionamentos. Exceto por essa casa. A única. A casinha da Frei Serafim.

 

Até o início do século passado a avenida não passava de uma simples trilha criada por Frei Serafim, missionário italiano, para que os devotos de São Benedito transportassem areia, pedras, água e tijolos usados na construção da igreja em um lugar conhecido como “alto da jurubeba”. Era ali o limite da cidade que crescia acompanhando o rio Parnaíba. Somente nos anos 1930, as famílias mais abastardas começam a construir suas casas no entorno da “avenida dos sonhos”. A Frei Serafim passa então a ser urbanizada.

 

Elvina Ferraz Martins e Augusto de Sousa Martins chegaram à avenida em 1922. De Valença, interior do Piauí, o casal veio morar na capital com os três filhos na singela casa, construída de reboco e palha em um terreno doado por Cícero Leôncio Pereira Ferraz, o pai de Elvina. A casa era simples, mas enorme – o terreno de 40×80 metros era a metade de uma quadra da época. A região era deserta: não havia ainda o hospital Getúlio Vargas em frente, era praticamente o fim das construções e das vilas. Era a última casa da rua.

Quase dez anos mais tarde, a residência do casal Martins passa por uma reforma e recebe telhas, madeira serrada, tijolos e piso de ladrilho. A reforma, como lembra Matias Matos, pesquisador e escritor do livro “Avenida Frei Serafim – Lembranças de um tempo que nunca acaba”, foi conduzida pelo filho do casal, Cícero Ferraz, que, para gosto dos pais, formou-se em Engenharia no Rio de Janeiro.

Foi Matias o nosso condutor nesse passeio pela casa. Entramos e, a cada passo, a sensação de estar cara a cara com um pedaço da história da cidade nos invade. Cada taco do chão, cada quadro na parede, as louças da cristaleira, os livros antigos da biblioteca e até o espelho da penteadeira (qual será o passado de um espelho?) quer nos dizer alguma coisa.

A casa segue o modelo das residências antigas: pé direito alto, muitas janelas e cômodos com muitas portas. Dormitórios, banheiros amplos e o corredor que leva à cozinha nos fundos, o último cômodo quase que renegado. De impressionar é o jardim mantido até hoje à frente da varanda. Fruteiras e flores, de todas as espécies, a maioria plantada por Elvina. “Ela era uma florista de primeira, trazia muitas espécies do Rio para cultivar e era conhecida na cidade por ornamentar festas como batizado, primeira comunhão e casamentos com antúrios, violetas, dálias, margaridas, e até hortênsias e rosas”, conta Matias.

Elvina morreu e a casa ficou para a única filha que não casou e morava ali com ela. Era Maria Mercedes Ferraz, dona Mercedinha, que até os 93 anos, com lucidez e memória invejável, ainda cuidava do jardim e recebia prontamente visitas que estivessem dispostas a ouvir suas histórias. Morreu em 2009 e foi a última a ocupar uma casa residencial na Frei Serafim.

Mercedinha herdou da mãe também a religiosidade: deixou a casa em testamento para a Igreja. Mas devido às exigências que fazia sobre o uso (não vender, não fazer reformas, etc), a instituição acabou não aproveitando o local. Como Mercedinha não teve filhos, os herdeiros mais próximos eram os sobrinhos, filhos do engenheiro Cícero Ferraz.

Dos dez filhos que Cícero teve com a esposa Angélica, um deles, talvez, foi o que mais frequentou a casa da avó Elvina, na Frei Serafim. A grande família morava num verdadeiro casarão, construído mais acima da avenida, em frente ao Colégio das Irmãs, ao melhor estilo chalé inglês. Com tantos filhos, era difícil para o casal dar conta de onde o pequeno Augusto se metia. A infância e adolescência foi correndo pelo jardim e quintal da avó, a quem Augusto chamava de “mãezinha”. A única filha de Augusto recebeu o nome Elvina, em homenagem a avó que nem conheceu.

“Eu era meio que filho dela, fui praticamente criado lá”, conta o Engenheiro Civil, hoje, aos 69 anos, morando no Rio de Janeiro. “A maior lembrança que tenho dali é do carinho, da receptividade da minha avó, os biscoitos com geleia de goiaba e licor de caju que ela fazia pra gente”, diz saudosista. “Tudo produzido com as frutas do próprio pomar, do qual cuidava com zelo. Minha avó chegou a plantar até morango ali!”, recorda.

O frondoso pomar continua nos arredores da casa, oferecendo laranja da terra, manga, acerola, pitanga, jambo, jabuticaba, goiaba a até tipos mais raros como sapoti, sapota e bacupari. Quem nos mostra a variedade é Manoel, o caseiro do local, que vive e cuida da casa há seis anos. Quase ninguém sabe, mas Manoel tem uma janela secreta para olhar o movimento da avenida. “Aqui dentro é calmo, e no fim de semana que o centro fica sossegado, parece até casa de interior. De vez em quando gosto de ficar olhando os carros e as pessoas passando”.

Augusto é hoje um dos únicos netos de Elvina que ainda tem ligação com o Piauí – a família quase toda mudou-se para o Rio de Janeiro e poucos conservam laços com pessoas ou parentes por aqui. Por telefone, nos desmente o boato de briga por herança. “Nunca houve. O que acontece é que corre na justiça um inventário, e você sabe como essas coisas andam devagar. Depois disso é que a família vai decidir o que fazer”. Local hoje super valorizado por empresários, as propostas para compra não custam a aparecer. “Sempre há uma especulação, mas a casa não está à venda”.

A última casa construída na rua, que mais tarde seria a mais famosa avenida da cidade, foi a que permaneceu por mais tempo em seu entorno ocupando realmente a função de moradia – gerações e gerações passaram por ali e quase dois séculos nos separam das histórias que a casa conta. Em suas vindas à Teresina, Augusto faz questão de hospedar-se no local que guarda tantas lembranças. É ele quem cuida para que esteja sempre limpa, conservada e livre da ação de pichadores, mesmo com todos os gastos que uma casa antiga exige. “Gosto de mantê-la cuidada”, diz o engenheiro. “Aquela casa tem um grande valor afetivo para mim. Faço isso em memória de minha avó”.

(Publicada na Revestrés#15, julho/agosto de 2014)