O corte está aberto.
Já se vão quase vinte dias sem deitar no chão, esticar as costas, inverter a coluna e abrir as costelas. O corpo que sou protege-se por medo de que a ferida se abra e banhe de sangue o curativo branco. Estou flácido. Não posso dançar minha dança de todo dia, sozinho, no quarto ensolarado, o peito aberto, aspirando o perfume do suor como quem cheira folhas de hortelã. Furtaram minha potência. Uma intervenção médica.
E aí acabei cruzando com a origem. O início de ser artista. O ato criador, a fonte do gesto, o não querer fazer, a necessidade de estancar a angústia, o efeito da saturação, a submissão aos esquemas seletivos violentos para permanecer existindo artisticamente. Para quem? A vontade de parar tudo, de desaparecer, de ter uma vida comum, de bater ponto, de vestir uniforme, de pensar pouco, de nada questionar. É quando as pernas já não podem mais tanto. As ganas arrefecem. Prefiro não abrir a porta. Vai que os olhos me traem e a mãe fala em voz alta “menino, cuidado com a cirurgia”. Entoar um ou dois mantras sem saber o significado, falsear uma fé, crer que as coisas vão melhorar, o corte vai fechar, em breve voltarei a mexer os ossos todos.
Reconheci a força da ausência. Pensei na fraqueza do corpo, no quanto minha mãe é forte.
Pensei que talvez eu nem tenha começado e esteja ainda em preparação. Para a coragem, para a espera, para as pequenas mortes. Pensei na superexposição contemporânea, nas pessoas ao vivo, na falta de desejo, na carência geral, no tempo em que todo mundo diz que é performer e qualquer coisa merece aplauso. Pensei que a performance talvez seja a ativação de um tipo de vida. Não é exposição, não é exibição. Não precisa de likes.
Performance é como se está.
Esses dias, conversando com um amigo que estava a plenos pulmões em uma criação de dança, ouvi dele que os ensaios tinham sido cancelados. Não era a hora. Nem mesmo o medo da morte conseguia movê-lo. E parou. Abriu a própria porta. Preferiu um corte mais subjetivo, desses que doem mais fundo, sem limite de duração. “A vida é agora, mas pode ser depois”, disse em pensamento. E sorri com gosto. Semana próxima eu entro em performance por quatro dias. Cortado, lento, medroso, sem vigor, quase ausente. Esse texto custou a sair porque ele também sangra. Há um abismo entre consciência e aceitação. O corpo não pode tudo.