Eu vi e revi, com satisfação, o filme Mestre Pascoal, de Valderi Duarte. Mestre Pascoal é um dos expoentes da arte santeira do Piauí. Trata-se de um encontro afetivo do cineasta com o artesão. O filme nos convida a conhecer o mestre e o ser humano – José Pascoal de Araújo Pereira, suas obras e seus modos de transformar madeira, pedra, barro, cimento, em obras de arte santeira: escultura, movelaria, pintura, arquitetura (o mestre “esculpiu” a própria casa e partes de igrejas também). O filme revela ao espectador a intimidade do mestre com as matérias primas, especialmente a madeira, bem como com seus instrumentos de trabalho. Emociona ver Mestre Pascoal encarar um tronco de madeira de cerca de 01 metro de altura, com diâmetro de uns 30 centímetros, sem esmorecer. Com enxó e outras ferramentas, ele trabalha pacientemente sobre a madeira, até tirar do tronco um santo. Reza a lenda que Deus fez o homem do barro e Mestre Pascoal faz seus santos e santas de madeira. É um encantamento.

Segundo Valderi Duarte, o filme foi feito ao longo dos últimos 10 anos. Inicialmente com recursos próprios e posteriormente finalizado com recursos da Lei Aldir Blanc. Nota-se aqui que o modo produção do documentário de Valderi se aproxima do modo de produção do mestre artesão Pascoal. Arrisco a dizer que parte da beleza do documentário vem daí. Ao acompanhar o personagem por um tempo longo, foi possível desvendar para o espectador seus modos de esculpir e sua intimidade com as ferramentas e com a madeira. A arte é paciente e exigente. Tanto o cinema quanto a escultura exigem coragem para começar e persistência para concluir a obra.

Em uma seqüência bonita, mais ao final do filme, claramente idealizada pelo diretor Valderi Duarte, vemos o Mestre Pascoal interagindo com crianças uniformizadas de uma escola. Reparei em um verso escrito no muro: “Paciência é o intervalo entre a semente e a flor”. Este verso da poetisa Ana Jácomo, resume bem a questão do tempo no cinema, na escultura, na pintura e em outras artes. O escritor parte da folha de papel ou da tela do computador em branco. Mestre Pascoal parte de um tronco ou de um pedaço de madeira e Valderi parte da tela vazia de imagens e do silêncio dos alto-falantes. Para o cineasta russo Andrei Tarkovski, fazer cinema é esculpir o tempo. E este é o título de um de seus livros (Tarkovski, Esculpir o tempo, Martins Fontes, 2010). Segundo esse autor: “A imagem cinematográfica então consiste basicamente da observação dos eventos da vida dentro do tempo, organizados em conformidade com o padrão da própria vida e sem descurar das suas leis temporais”. É possível pensar a montagem do filme de Valderi como uma montagem tarkovskiana, nesse sentido de organizar os eventos da vida do personagem sem descuidar do ritmo do filme.

Tanto o cinema quanto a escultura exigem coragem para começar e persistência para concluir a obra.

O Mestre Pascoal também fala da importância do tempo em suas obras. Diz ele: “Felizmente chegou esta época do documentário. E eu lembrei de procurar a arca [“Arca da Aliança”, uma peça feita sob encomenda pelo pároco da Igreja de – São Paulo em Teresina], para fazer o filme. E encontrei a arca quebrada… E então, agora está aqui, nas minhas mãos, para executar a recuperação”. Temos aqui o tempo atuando sobre a obra do Mestre e este atuando sobre sua própria obra, motivado pela realização do filme. As esculturas santeiras de Mestre Pascoal têm rosto e corpo piauienses. Em seu depoimento para o filme, a curadora Santana, da Central de Artesanato Mestre Dezinho, fala que o Mestre Pascoal: “(…) coloca sempre as nossas culturas em cima do trabalho dele… A gente identifica, pelos traços, que é do Seu Pascoal”. Com um lindo chapéu de couro, Mestre Pascoal cobriu o Santuário de Madre Savina, ornamentado com suas criações, na zona rural de Guaraciaba do Norte, no Ceará. O mapa turístico do Piauí, esculpido e pintado em madeira, é uma de suas peças mais populares. Ele faz essa peça de diferentes tamanhos, inclusive em formato de chaveiro. Confesso que desejo ter uma peça dessas.

Porém, não só de anjos e santos vive a arte do Mestre Pascoal, ele próprio e sua família. Encomendas de clientes são bem vindas. Além do mapa turístico do Piauí, ele tem outras peças populares, tais como: “O anjo Guia”, O “Divino Espírito Santo”, “Dom Quixote de La Mancha”, “São Francisco de Assis”, dentre outras. Ele também esculpe ex-votos que as pessoas encomendam para levar para Canindé/CE e outros santuários. Ex-votos geralmente são peças simples e rústicas esculpidas em madeira de pouco valor. Os que são esculpidos pelo Mestre Pascoal são feitos com esmero. O filme traz um ex-voto que são os seios de uma mulher que, provavelmente, foi curada de um câncer de mama.

É interessante a relação do artesão do filme com uma escultura de Dom Quixote de la Mancha. Um psiquiatra famoso no Piauí – Dr. Clidenor de Freitas Santos – colocou uma escultura em bronze de Dom Quixote, do renomado artista plástico brasileiro Honório Peçanha, na entrada do Sanatório Meduna, em Teresina. Ele convidou o Mestre Pascoal para conhecer essa escultura e o desafiou a fazer um Dom Quixote em madeira. Ele topou o desafio e seu Dom Quixote em madeira se tornou uma das obras mais importantes de sua carreira como escultor. Foi exibida em vários salões de arte no Piauí, em outros estados brasileiros e também fora do Brasil. Participou, por exemplo, de uma exposição em Milão/Itália. É uma peça premiada e ao mesmo tempo popular.

O filme de Valderi Duarte traz uma seqüência onde ele filma uma procissão em homenagem a São Francisco de Assis. Inicialmente pensei que o santo sobre o andor fosse um São Francisco de Assis esculpido pelo Mestre Pascoal, mas Valderi me informou que não. Fiquei frustrada, pois considero a escultura de São Francisco de Assis, do Mestre Pascoal, uma preciosidade. A procissão está filmada lindamente. Lembra um filme do Grupo Mel de Abelha – “Dia de Passos” – onde filmamos a Procissão de Bom Jesus dos Passos em Oeiras. Um detalhe: notei no filme que o Mestre Pascoal também esculpiu um Bom Jesus dos Passos. Valderi, como eu, Luís Carlos Sales e Socorro Mello fomos criadores do Grupo Mel de Abelha, pelo qual chegamos a realizar, no Piauí, 07 filmes na hoje clássica bitola de Super-8. Posteriormente, em 1987, eu e Valderi Duarte fomos selecionados para a primeira turma da Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, EICTV – Cuba.

Mestre Pascoal segue uma longa tradição da arte santeira do Piauí, uma das mais importantes do Brasil. Mestre Dezinho, que fez a arte santeira da Igreja do bairro da Vermelha em Teresina, e Mestre Expedito, são os principais expoentes dessa arte e são da primeira geração. O pai de Mestre Pascoal, Francisco Alves, era carpinteiro e marceneiro. Além disso, Mestre Pascoal estudou artesanato na Escola do Memorare. Posteriormente, estudou na Escola Técnica Federal do Piauí, onde assumiu a oficina de escultura. Ele teve também a oportunidade de ensinar escultura na escola de artesanato do Memorare, mantida pelo Colégio das Irmãs. É quando o discípulo retorna como mestre.

O lançamento do filme “Mestre Pascoal”, de Valderi Duarte, representa, na minha opinião, uma excelente oportunidade para que as associações de artistas e as lideranças piauienses intensifiquem a campanha para transformar a arte santeira do Piauí em Patrimônio Cultural Imaterial, não só do Estado do Piauí, mas também do Brasil.

 

MESTRE PASCOAL (Doc. Digital, 75min, Teresina/PI 2022)

Direção Valderi Duarte – DUARTE filmes

Estreia: 22 de março, Theatro 4 de Setembro, às 19:30 h.
Ingressos: 20 reais

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Dácia Ibiapina é cineasta e professora aposentada de cinema e audiovisual da Universidade de Brasília (UnB). Integrou o Grupo Mel de Abelha, coletivo de cinema piauiense com atuação no Piauí na década de 1980.