Esse blog nasce assim: precoce, verde, imaturo, amorfo. Um corpo cru. Como se faltasse sangue. Um órgão malformado. Uma falta de fôlego. Um susto. Esse sou eu. Eu público. Eu que me preparo para ver uma obra de dança. Eu que troco o descanso, a cerveja, a visita aos avós e a faxina vencida para ir ao teatro. Eu que me disponho a estar em uma performance que dura seis horas. Eu que ali estou, parado, sentindo tudo, o olhar curioso vagueando o silêncio, tateando a cenografia, deixando a luz vir aos olhos, na expectativa de que algo aconteça, de que algo me aconteça e me atravesse e me arrebate e grite comigo e me sacuda o corpo todo e me derrube da cadeira e me deixe em prantos.

Atuar dói. Enquanto escuto os sapatos e a respiração de quem entra no teatro, imagino cada forma, cada desejo, cada anseio de dividir uma existência. Os dedos tremem, o rosto murcha. Não fui ensinado a ver nem a ser visto. Como soltar o primeiro som, avisar que sim, sou eu que vim aqui? Prefiro pedir licença, deitar os olhos sobre quem está indo àquele lugar pela primeira vez e enxergar os que podem estar ali pela última. Imagino um boa noite ensaiado, deixo que me chegue algum sinal, limpo os olhos e abro os ouvidos. Talvez alguém precise muito dizer umas palavras antes de começar. Correndo. A vida é um assombro. Não existe começo. É com vocês que eu construo tudo isso. Sou um homem que deixou sua cidade natal há sete anos e cuja melhor amiga é a irmã mais nova. E só.

Quando eu cruzo o olho contigo, é porque te quero junto. Vem por aqui. Não farei nada muito diferente do que você já viu. Tudo é continuidade. Pode ser que você saiba exatamente o que vai acontecer, onde vai dar, qual vai ser a melhor hora para sair discretamente. Eu só preciso de uma única chance. Quero tentar fazer uma mágica, operar um segredo, abrir novos cortes, deixar sangrar um pouquinho. Posso te pedir para morder as palavras que eu acidentalmente deixar sair? Hoje não vai dar para te agradar, o dia amanheceu meio sem graça. Eu não vou te fazer rir da gordinha, da bicha afeminada escandalosa, do homem sem perna. Hoje é dia de falar de coisa triste. Hoje é dia de parar, mirar, enxergar. Dia de radiografar a vida. Dia de se mexer na cadeira. É provável que apareça um desconforto novo. Uma dor no peito. Um arrepio.

Ser público é uma escolha. Arriscada, perigosa. Uma queda de ponta-cabeça em uma cachoeira sem água. Sinto dizer, mas eu não vou te pedir currículo, grau de instrução, carta motivacional ou qualquer outro atestado. Faço contigo um pacto. Não espere nada de mim. Muito menos que eu cumpra o script. Isso aqui vai ser o que a gente quiser que seja. Estamos em um experimento. Sem garantia. Chore uns baldes, gargalhe alto, sem bons modos mesmo – é um tesão quando você me desconcentra, observe até cansar a vista. E se eu disser que virei público? É você que atua agora, o jogo inverteu. E mais: você é o real. Seus braços cruzados, sua pressa para sair, seu tédio visível, o desejo incontrolável de olhar o celular, a ânsia de resolver os problemas. Pode ir embora. Tá tudo bem comigo. E amanhã estarei aqui, se quiser conversar. A arte é livre. A vida, nem tanto.