A imagem latente que surge pelos banhos de química sempre demonstrou o fascínio e a magia presentes nos caminhos da fotografia. Havia sempre uma imagem ali num suporte em branco prestes a se revelar. Mas quais seriam essas imagens, imaginários e invisibilidades que a fotografia revelava?  

Dentre essas imagens latentes habitava uma necessidade social de marcar a identidade dos sujeitos. Uma forma de identificação social pautada na individualidade absoluta do corpo, isto é, na fixação de uma personalidade e fisionomia única, que pudesse ser sempre reconhecível e autêntica. Sobretudo uma identificação social que também expressava os jogos sociais presentes na sociedade. As imagens reveladas pela fotografia expressam socialmente repartições do que tornar visível, ao mesmo tempo, daquilo ou daqueles que não tornam visíveis.  

O projeto Revelador H2O2, de Alex Oliveira, articula de maneira sensível tais invisibilidades e usa a fotografia para revelar camadas presentes no fotográfico: a camada do encontro, a camada do processo, a camada da construção de uma identidade e a camada do tornar-se imagem. 

Preparar a solução H2O2 

O disparador para Alex Oliveira aconteceu quando, circulando na cidade de Salvador em companhia da amiga Michelle Mattiuzzi, mulher e artista negra que havia descolorido os cabelos, ele percebeu que a imagem dela revelava um conjunto de estereótipos e preconceitos intrínsecos nesta identidade negra loira oxigenada, identificada com uma figura periférica, marginal. É desta experiência que Alex começa suas ações, o que está a se desvelar em seu processo é perceber-se agente para tornar visível este elemento estético de exclusão, ser o disparador destas transformações, revelando as camadas invisíveis presentes na sociedade. 

Aplique a mistura no local escolhido 

O Revelador H2O2 então é preparado e Alex Oliveira começa a produzir algumas experiências performáticas de propor ao outro a experiência de ser descolorido. No percurso da produção da performance, a experiência que o artista conduziu na comunidade de Alagados, região suburbana e periférica de Salvador, permitiu perceber novos lugares de exclusão. Durante 30 dias, Alex visitou frequentemente a comunidade, sempre na mesma tarefa performática de oxigenar as pessoas. Sua ação promoveu encontros e estabeleceu formas de relação e de revelações, onde cada indivíduo operou neste jogo de identidades e atuações que deixa visível um lugar sempre latente na fotografia, do dispositivo que agencia encontros, seja do fotógrafo com o sujeito retratado, do visível com o invisível, do passado com o futuro, deste ser fotografado com um outro vir a ser imagem.  

A cada encontro, as negociações eram postas. Seu processo permitiu viver o lugar, se apropriar do que ali continham para seu ofício e das oportunidades que a comunidade oferecia de tornar potente os desdobramentos desse encontro. No disparo da câmera, a cada intervalo da aplicação do H2O2, o que se fixa na imagem são as escolhas e relações estabelecidas através do encontro que o fotógrafo se dispõe a realizar. Cada sujeito que ali aparece se torna único, seja na escolha de qual parte do corpo pintar, seja na forma como se permite tornar imagem, seja na persona que a transformação passa a revelar em si ou mesmo no conjunto de enfrentamentos que o elemento novo em sua figura passa a exigir de si mesmo.  

Espere o H2O2 agir 

O processo performático torna-se o personagem principal da arte de Alex, uma fotografia da duração que se desdobra a cada encontro. Uma ação fotográfica onde sobretudo o fotógrafo sai de trás da câmera para assumir um outro papel, de acionar e revelar identidades, encontros, imaginários sociais e modos de representação.  

A ação artística proposta por Alex reacende uma evidência antes proferida por Barthes, de que a fotografia seria “o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade”. A cada gesto, expressão e pose das pessoas fotografadas, percebe-se que o H2O2 joga com as identidades de cada um, com uma atuação de vida e com pertencimentos. Cada pessoa que participa da ação, se deixa atravessar pelo tempo do revelador, assumindo para si a experiência de ser transformado em um sujeito oxigenado, socialmente marcado em sua comunidade, e fora dela também. No descolorir, portanto, cada indivíduo propõe-se a jogar no risco de se “perder”, para poder se afirmar, é nesta imanência que cada existência se revela como um advento. A fotografia torna-se a expectativa do que este tornar visível poderá vir a se figurar. 

Enxague bem, mire e veja o que foi revelado 

“Todo dispositivo é, em alguma instância, um jogo”. Seguindo todas as etapas de revelação, Alex Oliveira passa a articular essas identidades dentro da comunidade virtual, ao exibir as fotografias em seu perfil da rede social Facebook. Dentro da constelação de pessoas que sua rede agrupa, que já o reconhecem dentro da identidade de fotógrafo e artista, Alex cria metáforas e transcende sua performance. Ele devolve para o Facebook as articulações de distinção e estéticas que estas pessoas de cabelos descoloridos potencializam na dinâmica social, assim sua foto perturba uma certa pedagogia visual presente em identidades, formas e estéticas que reforçam um nivelamento social evidente nos diversos perfis da internet. 

Sua performance coletiva se completa ao devolver à comunidade e aos seus cúmplices imagens em lambes que circularam na rede. Ao acionar este dispositivo com o retorno das imagens, Alex restitui todos os tempos pertencentes à fotografia: o tempo da memória, pela lembrança da experiência vivida no encontro de cada pessoa com o fotógrafo e com o H2O2; como também o tempo do porvir, das interações e mobilizações sociais que esta fotografia provocou, ao deixar impresso nos lambes as quantidades de curtidas, comentários e compartilhamentos que a foto obteve em sua rede. 

A fotografia em sua arte é o pretexto para criar relações e desvendamentos do outro, este outro que também é o próprio artista, agora oxigenado, num advento de sua identidade enquanto fotógrafo. A experiência de Alagados reverbera no artista de tal forma que, ao se encontrar como estrangeiro na Suécia, seus enfrentamentos de identidades se assinam em seu corpo, já todo descolorido e revelado pelo H2O2. Assim, o artista passa a construir mundos possíveis e performáticos para lidar com pertencimentos e exclusões específicas deste “novo” lugar. Seu corpo transfigura-se na própria fotografia, um suporte sensível que ora individualiza ora nivela, um corpo/experiência que reparte os visíveis e invisíveis de sua identidade e estética, torna-se “Todo-imagem”.  

Alex Oliveira é fotógrafo, artista visual e arte-educador, graduado em Comunicação pela UFBA e residente em Uberlândia. Ele desenvolve pesquisas artísticas relacionando fotografia, performance, mídias digitais e intervenção urbana. É um dos fundadores da NÓIS – produtora audiovisual de filmes autorais de curta, média e longa duração. 

Ensaio publicado na Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018.