Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Wellington Soares e Salgado Maranhão | Texto e edição: Samária Andrade | Fotos: Silvia Zamboni.
Quando tinha 22 anos ele fez o que muitos jovens gostariam: disposto a viver uma aventura, foi de São Luís a São Paulo com a namorada, a bordo de um Fiat Uno. O casal ia parando em várias cidades, se hospedando com amigos, conhecendo novos lugares. Teresina – Salvador – Arraial d’Ajuda – Belo Horizonte. “Foi uma saga que durou 20 dias. Chegamos em São Paulo com metade da casa dentro do carro e a outra metade indo por empresa de mudança. Era o sonho de fazer sucesso a qualquer preço”, nos conta Zeca Baleiro.
José Ribamar Coelho Santos nasceu em São Luís por acaso – passou dois dias por lá e regressou com os pais para Arari, pequena cidade do interior maranhense, a 162 km da capital, com cerca de 30 mil habitantes. Viveu em Arari até os oito anos, quando se mudou com a família para São Luís. Mas em todas as férias escolares, e até à vida adulta, estava de volta a Arari. “O pessoal diz que sou metido a besta quando conto que nasci em São Luís. Então digo que tenho duas cidades natais. Meu coração é profundamente arariense. Tudo que você imaginar de uma infância no interior do Nordeste eu vi: cigano que rouba criança, a louca das trouxas, Curupira, Mãe d’água do outro lado do rio, Saci, Caipora – todo esse imaginário eu trouxe comigo”.
E a Wikipédia avisa: Arari tem dois filhos ilustres: Zeca Baleiro e Raymundinho Furacão – humorista e digital influencer com mais de 150 mil inscritos no Youtube, que debocha das agruras do seu cotidiano. Zeca Baleiro tem pouco mais de 180 mil inscritos no Youtube. Ao contrário do conterrâneo, é discreto sobre a vida pessoal e usa o canal e as redes sociais para falar de trabalho. Nunca expõe a companheira Mara Fernandes, fotógrafa, e os dois filhos que têm juntos. “Nunca mostro meus filhos e jamais abriria minha casa para a revista Caras”.
O apelido Baleiro vem do gosto por doces. Na faculdade de agronomia, sempre andava com balas nos bolsos. Também abriu uma pequena loja de doces na capital maranhense. Não concluiu o curso universitário nem se tornou um empreendedor das balas no Brasil. Mas virou artista multifacetado: é compositor e cantor, compõe trilha para teatro e cinema, escreve livros, apresenta programa de TV, excursiona pelo Brasil e o mundo, já ganhou vários discos de ouro: Por Onde Andará Stephen Fry? (1997), Vô Imbolá (1999), Líricas (2000), Perfil (2002), Raimundo Fagner e Zeca Baleiro (2003) – este último em parceria com o cantor e compositor cearense. “Hoje disco de ouro é uma coisa impensável: vender 100 mil discos! Não vende nem mil, nem cem!”
Atento às mudanças no mercado fonográfico, tem refletido sobre o mundo e, talvez, a gestação de uma nova humanidade. Diz que as plataformas digitais são incontornáveis e conta que tem escrito novos textos, mas não sabe se irá publicar suas divagações. Não se considera escritor – “Sou compositor: escritor de canções” – e diz que só publica quando acha que aquilo tem algum valor.
Confessa que já se perguntou se seu trabalho permaneceria: “Qualquer artista, não importa o tamanho, em algum momento tem dúvidas em relação à permanência de seu trabalho. Porque às vezes rola uma solidão, uma desolação, vontade de desacelerar, ou mesmo de parar. Todo mundo já teve…” E revela as músicas que hoje considera “imaturas” ou “estranhas”. Aos risos, diz que as canções são dele e terá que assumi-las. E garante que as canta com gosto, mesmo as que não representam mais o homem que é hoje. “Tem coisas que não creio mais, foi um outro cara que escreveu e esse cara não existe mais”.
Se diz realista, aponta que vivemos tempos difíceis, mas que é preciso manter a esperança. Mora em São Paulo e conversou por mais de duas horas com Revestrés pelo Meet. Suas falas são cheias de aspas, abrindo para frases em que cita interlocutores. É simpático e conta que quer se libertar de alguns pesos e ser uma pessoa mais leve. No aplicativo, seu nome é “José Snaid” – “Isso é uma longa história, depois eu conto”, e complementou: “Cara, vocês vão ter trabalho na edição, porque gosto de falar e sou prolixo”.
Zeca Baleiro é um contador de histórias.
Samária: Você recusou rótulos que lhe atribuíram no início da carreira, como “nova MPB”. No entanto, reconhece pontos de contato entre seu trabalho e o de outros artistas de sua geração, como Chico César. Vocês não poderiam se beneficiar de uma formação coletiva?
Zeca Baleiro: Os movimentos coletivos têm uma importância e, ao longo da história, há casos delimitadores: Semana de Arte Moderna de 1922, poesia concreta, poesia marginal, Tropicalismo, Manguebeat, a geração rock… No mercado fonográfico isso aconteceu num tempo em que esse mercado ainda existia de fato. Quando você dá um nome pra uma turma que se agrupa de alguma maneira, seja por uma questão meramente geracional ou pelos pontos de contato entre os trabalhos, isso ganha força midiática. Mas a gente não tem esse perfil. Eu e Chico (César) tínhamos espírito muito livre, anárquico, então dificilmente a gente participaria de algum movimento. Mesmo tendo afinidades, era todo mundo muito no seu canto. A gente é uma geração pós-Manguebeat, apontada por trazer de volta à música popular brasileira um Brasil musical que ficou um pouquinho soterrado pelo auge do rock Brasil. Nos anos 1980, se você tocasse uma coisa tipo baião era meio ridicularizado. Hoje, veja você que ironia: é chique tocar baião! Naquele momento, mesmo a gente, quis se aproximar do rock, não só musicalmente, mas na atitude. O Manguebeat foi uma coisa genuína, mas também impulsionada pelo mercado – que vive disso: criar novas cenas para alimentar o próprio consumo –, e acabou abrindo portas pra gente. Tem uma geração de nordestinos dos anos 1970: Fagner, Zé Ramalho, Belchior, Ednardo, Geraldo Azevedo, Alceu, Lenine – que começou a ter um reconhecimento mais popular a partir dos anos 90, quando foi criado um boom geracional que revelou essas figuras maravilhosas que somos nós (risos) – essas presepadas, diria meu pai.
Samária: Você dividiu apartamento com Chico César em São Paulo. Conte como foi essa fase.
ZB: Quando me perguntam qual a coisa mais radical que fiz na vida, respondo sem pestanejar: dividir apartamento com Chico César (risos). A gente morou juntos por dois anos. Logo que cheguei em São Paulo encontrei Celso Borges (poeta maranhense), grande parceiro, e ele me falou: ‘Você precisa conhecer um cara com quem vai ter afinidade: é o Chico César, compositor da Paraíba’. Chico ainda era um ilustre desconhecido, trabalhava como revisor da revista Elle. Por esforço de uns amigos, consegui agendar um show num bar na Pompéia onde se apresentavam Jorge Mautner, Tom Zé – era meio que um templo dos alternativos. Só que meu amplificador tinha pifado. Eu liguei pro Celso e ele: ‘Vou falar com aquele cara’. Eu e Chico César nos encontramos na avenida Paulista, na frente da Gazeta. Fomos até Santo Amaro, onde ele morava, numa edícula. Peguei o amplificador emprestado e já passamos aquela noite – e outras tantas – tocando violão. Já rolou ali uma admiração mútua. Cada um foi fazendo seu próprio caminho, até que, entre 1993 e 95, a gente dividiu um apartamento caótico na rua Heitor Penteado, bairro do Sumaré, quase Lapa. Foi um tempo muito bom, a gente era muito duro, tava naquela fase de buscar espaço, mas eram tempos felizes. Eu cozinhava, ele lavava os pratos. Pelo nosso apartamento passou muita gente bacana: Virginia Rosa, Mônica Salmaso, Tetê Espíndola, Itamar Assumpção, Paulo Lepetit, Tata Fernandes – era um ponto de encontro. A amizade com Chico permanece e hoje, curiosamente, a gente voltou a compor juntos, coisa que não fazíamos há muito tempo, e estamos preparando um CD em parceria.
Mostrei a música e ninguém se interessou. Depois ligaram: ‘Dá pra emplacar em novela se, em vez de por onde andará Stephen Fry, você colocar por onde andará meu amor’. Pensei cinco minutos e disse: ‘Mas nem fodendo’.
André: Seu primeiro disco gravado já alcançou grande sucesso. Por onde andará Stephen Fry? (1997) foi disco de ouro. Você fez essa letra antes de conhecer o ator, cineasta e comediante britânico. Como foi o contato de vocês depois da música gravada? E você sabe por onde anda hoje Stephen Fry?
ZB: Cara, até hoje tudo o que acontece com ele as pessoas me dizem: ‘Zeca, viu que Stephen saiu do Twitter?’, ‘ Zeca, cadê Stephen Fry?’ (risos). No Carnaval de 95 eu tava em casa, lendo a Folha de S. Paulo, quando vi uma notinha de pé de página: ‘O ator inglês Stephen Fry, conhecido no Brasil com o filme Para o resto de nossas vidas (1992), desapareceu depois de estrear uma peça e receber duras críticas na imprensa’. Ele abandonou a temporada, deixou colegas de produção e sumiu! Deve ter tido uma depressão. Eu achei aquela história curiosa porque é algo a que toda pessoa que se expõe está sujeita: tanto à crítica quanto ao surto. Eu tinha visto o filme e o nome dele tinha uma sonoridade que me levou pra uma coisa musical. Peguei o violão, quase como uma brincadeira, um exercício (faz gesto como se tocasse violão e cantarola): Por onde andará Stephen Fry? E comecei a gostar daquilo, uma melodia meio Elton John e, em 15 minutos, saiu a música – curtinha, despretensiosa, com um trecho em inglês, numa referência a origem dele. Quando fui gravar o disco pelo selo MZA, do Mazzola (ligado a grandes sucessos de nomes como Raul Seixas, Rita Lee, Belchior, Chico Buarque, Milton Nascimento, Ivete Sangalo), levei umas 25 canções – eu tinha muita música, naquele tempo só fazia isso. Mostrei essa música e ninguém se interessou. Tempos depois, um assistente do Mazzola me ligou: ‘Olha, ouvimos melhor e a música tem uma melodia maravilhosa. Dá pra emplacar em novela se mudar a letra: em vez de por onde andará Stephen Fry, coloca por onde andará meu amor, ou meu coração.’ Quando você tá ferrado como eu tava, precisando gravar, precisando de dinheiro, uma filha por nascer, você pensa em todas as possibilidades de como vender sua alma, né? (risos). Se aparecer um bom comprador, obviamente. Eu disse: ‘Cara, peraí, isso me pegou de surpresa’. Desliguei o telefone, pensei cinco minutos e disse: ‘Mas nem fodendo’. Retornei a ligação: ‘Olha, ou a gente põe Stephen Fry ou não grava’. Aí eles não resistiram, disseram tá bom. Porque é um pouco assim: o cara bota uma pressão e, se você enfraquece, ele tripudia. O que aconteceu depois disso foi uma loucura! A música chegou aos ouvidos do próprio Stephen, eu mandei um disco autografado com uma dedicatória em inglês: ‘Stephen, não desapareça de novo, nós lhe amamos’. Ele era um bom ator, ativista de causas ambientais e LGBTQIA+. Um jornalista da Folha de S. Paulo fez um bate-bola entre nós dois, ambos se fazendo perguntas, e isso teve uma repercussão inesperada: saiu no The Guardian, The Independent, Eurochannel. Me mandaram um vídeo em que ele dizia: ‘I’m here, I’m here!’. Eu perguntei o que ele achou da música e ele disse que era charmosa, tinha gostado, mas teve a sensação de que era prisioneiro de uma tribo canibal, ouvindo o nome em uma língua estranha, enquanto caminhava para o sacrifício. Ele é uma figura espirituosa e irônica. Tem um programa de entrevistas no Youtube e uma das proezas dele foi, em 2012, fazer uma entrevista com Jair Bolsonaro, na época um emergente político da extrema direita. Sthephen veio ao Brasil fazer matéria sobre crimes homofóbicos e entrevistou o cara que era sabidamente homofóbico. Na entrevista, Bolsonaro dá umas risadas bestiais e depois Stephen fala que foi a entrevista mais bizarra que já fez na vida. No final, Stephen aparece sentado numa cadeira de praia, lamentando o destino que o Brasil parecia estar tomando: se convertendo de um país sensual, tropical, musical, elegante, pra uma coisa obscurantista, neopentecostal. Foi há 10 anos. E foi profético!
Quando me perguntam qual a coisa mais radical que fiz na vida, respondo sem pestanejar: dividir apartamento com Chico César (risos).
Wellington: Você já disse que esse é um dos piores momentos pelos quais passa a cultura brasileira, com desmonte em várias áreas. Alguns artistas têm se posicionado em shows e redes sociais. Você acha isso suficiente? Os artistas brasileiros não poderiam estimular uma ação maior?
ZB: Algumas coisas têm sido feitas. Há pouco mais de um ano houve uma convocação encabeçada por Márcia Tiburi e outras pessoas, e reunimos uns 30 artistas, pensadores, jornalistas: Paulinho Moska, Zélia Duncan, Chico César, Mônica Salmaso, Juca Kfouri, Leonardo Boff. A ideia era fazer um movimento que saísse às ruas. Mas, com pandemia em alta e vacinação em baixa, decidiu-se que não era o momento. Nada é igual a quando o povo toma as ruas e pede a cabeça de um governante. Meu fim de ano de 2021 foi na cama, com Covid. Tinha ido ao Maranhão ver meus pais e passei Natal e ano novo isolado num hotel. Então o que pode ser feito, tá sendo feito aqui e ali. Em julho de 2021, um grupo de produtores e atores de teatro me chamou, e eu e o poeta Joãozinho Gomes fizemos a música Desgoverno – “Um homem sem juízo e sem noção, não pode governar esta nação”. Várias vozes cantaram e isso foi levado ao Congresso Nacional, num ato virtual transmitido pelo Youtube, junto com um abaixo assinado com 30 mil assinaturas de artistas e ativistas sociais, pedindo o impeachment. O que acontece é que hoje a comunicação está muito fragmentada, não tem mais um Jornal Nacional, o mundo se expandiu de tal maneira que as coisas acontecem e as pessoas nem ficam sabendo. E há também uma rendição das forças que a gente supõe democráticas, como o Congresso. Tá tudo meio submisso a esse governo. Então é difícil qualquer atitude, mas a gente faz, porque entende que isso tem um peso simbólico, e água mole em pedra dura bate até que cria uma fenda. A essa altura do campeonato, um impeachment já até embolaria a cena política. É melhor deixar que o cara sangre e venha um novo governo, embora a gente saiba que eles não vão largar o osso com facilidade, a guerra vai ser suja. Que país sobrevive sem um Ministério da Cultura? A cultura não é só patrimônio intangível, é também responsável por movimentar a economia, empregar milhares de pessoas. Quando começou essa negação à cultura eu pensava que era só ignorância, coisa de gente nó cega, burra, estúpida. Depois entendi que é um projeto de extermínio das forças culturais, porque sabem que o artista tem influência. O senso comum faz parecer que cultura é só o produto: o livro, o show, o espetáculo, o cinema – mas é toda uma cadeia produtiva e de conhecimento em constante movimentação – isso aqui que a gente tá fazendo é cultura! E a cultura é irmã da educação. Por isso o desmonte é grande nesses dois setores. Qualquer governo que suceda a este vai ter um trabalho imenso de restaurar tudo o que a gente tá perdendo. É terra arrasada! Tá difícil produzir.
André: Numa entrevista ao Brasil de Fato você falou que o dinheiro venceu. Isso me pareceu um pouco pessimista…
ZB: Mas eu sou pessimista (risos). Tem um conceito genial do Ariano Suassuna: “O otimista é um tolo, o pessimista, um chato, bom mesmo é ser um realista esperançoso”. Eu me identifico com isso.
André: Por outro lado, na música Depois do Fim, composta por você e Wado, há um verso que diz: “Sei que, depois do fim, tem uma outra estação” – isso já me pareceu otimista. Como você tem transitado entre o otimismo e o pessimismo?
ZB: Sempre fui um pouco trágico, acho que o pior vai acontecer. Ou um realista – sei que não há mágica, não vai ficar bom da noite pro dia. Mas alimento esperanças, porque a vida sem esperança é um inferno. Esses sábios ditados populares – “A esperança é a última que morre”, “Quem espera sempre alcança” – podem ser um pouco ilusórios, românticos, utópicos, mas é necessário crer que algo vai sempre melhorar ou a gente entra numa depressão profunda e numa inação. É a esperança que nos mantêm acesos. Mas eu tenho muito o pé no chão. Acho que os fazedores de canções, na pandemia, mais do que nunca, aprenderam a manter a esperança, mesmo que fosse alguma coisa metafórica, como esse verso que soa filosófico: “Depois do fim virá uma nova estação” – e nem se trata de política, mas de um estado anímico do mundo. Basta ter um pouco de lucidez pra saber que nada tá muito bom. Sua vida pode estar boa, seu casamento, sua relação com filhos, amigos, algum plano pessoal, mas o mundo não tá! E eu acho que a felicidade é um projeto coletivo. Eu não posso estar feliz, rico, maravilhoso, fazendo tratamento de pele, banho de sais, quando na minha esquina têm pessoas dormindo ao relento. Isso não é um pensamento cristão e caridoso – é uma consciência de que a felicidade deve ser de todos ou o mundo não tem paz. Então sou otimista nos meus projetos pessoais e pessimista numa perspectiva global. Eu nem vivo mais no mundo, vivo num universo particular – tenho um pouco esse privilégio, pelo trabalho que realizo. Não preciso sair de casa todo dia, pegar rush. Claro, tenho as agruras de nossa vida de artista tupiniquim.
Não posso estar feliz, rico, fazendo banho de sais, quando na minha esquina tem pessoas dormindo ao relento. Sou otimista nos meus projetos pessoais e pessimista numa perspectiva global.
Samária: Seu trabalho sempre teve crítica social, mas também ironia e bom humor. Nesse momento você tem cantado letras mais duras, irritadas. Em Sangue (letra de Arnaldo Antunes e música de Chico Salém) você canta: “Sangue não comove mais o povo brasileiro”. Esse tipo de canção é um reflexo do tempo em que vivemos?
ZB: A letra de Sangue não é minha, mas assino embaixo de tudo que ela diz. A gente vai vendo tanta desgraça que vai banalizando. Se fosse chorar por cada tragédia durante essa pandemia… Às vezes – me perdoem – a gente tem que se alienar um pouquinho. Teve momentos em que falei: preciso me ausentar do noticiário pra respirar. O sofrimento dos outros vai trazendo sensação de claustrofobia. E sou claustrofóbico de fato, daqueles que fogem de ressonância magnética, apertam o botão antes do exame acabar, ‘Moço, me tira daqui, pega na minha mãozinha’. Acho que você tem que cantar a esperança, mas que as verdades, mesmo as mais duras, têm que ser ditas. E a nossa autocrítica deve apontar que vivemos um tempo de muito narcisismo, potencializado pelas redes sociais. Têm pessoas morrendo, chacinas, o pesadelo da Covid, e outros ostentando riqueza, alegria. É uma falta de sensibilidade social.
Samária: A música que lhe projetou nacionalmente foi Flor da Pele, que você gravou primeiro e depois fez um dueto com Gal Costa. Como foi gravar com Gal e como você lidou com o sucesso que alcançou?
ZB: Flor da Pele é uma música que fiz quando tinha 22 anos, morando em São Luís, tomado por uma paixão cuja trilha sonora era Vapor Barato, de (Jards) Macalé e Waly Salomão. Quando compus, copiei os acordes de Vapor Barato – não é plágio, pois a melodia é bem diferente. Ao gravar, sampleei a voz da Gal cantando “Minha honey baby”, que é uma coisa emblemática da música brasileira. Ela ouviu no rádio e ficou emocionada. Eu já me senti recompensado ao saber disso. Aí, quando ela foi fazer o Acústico MTV rolou o convite e fiquei muito feliz e muito nervoso. Cantar com a Gal é cantar com a Gal, né? Nos bastidores estávamos eu, Frejat, Luiz Melodia, Herbert Vianna. O Herbert, suando em bicas, e alguém perguntou: ‘Você tá nervoso?’, e ele: ‘Pra cacete! Vou cantar com a maior cantora do Brasil!’. Eu disse: ‘Bicho, imagina eu?!’. Mas tomei uns dois whiskinhos pra ficar numa temperatura boa e rolou uma química legal. Acho aquela gravação realmente muito bonita. E, pra mim, foi muito importante, porque eu tava com um disco que começava a ganhar espaço, matéria na Veja, mas aquilo me catapultou a um outro lugar. O disco da Gal foi bem sucedido e estimulou a venda do meu. Acabei ganhando outro Disco de Ouro. Hoje isso é uma coisa impensável: vender 100 mil discos! Não vende nem mil, nem cem – as pessoas não compram mais discos. Muita gente usufruiu bastante daquela estrutura do mercado fonográfico. Mas, além do sucesso comercial, para mim cantar com Gal foi a realização de um sonho! Guardo esse momento com carinho. Hoje acho essa música até imatura, fraca, mas não posso deixar de cantar nos shows, porque as pessoas amam.
Cantar com Gal foi a realização de um sonho! Nos bastidores, o Herbert Vianna, suando em bicas, e alguém perguntou: ‘Você tá nervoso?’, e ele: ‘Pra cacete! Vou cantar com a maior cantora do Brasil!’.
Salgado Maranhão: O mercado fonográfico está muito mudado. À parte certo nicho retrô, com o vinil, a música tem perdido fisicalidade dia após dia. O CD já está quase no fim. Qual será o futuro da execução da música além das plataformas, pode ser o holograma?
ZB: Eita! Já fui um pouco resistente às plataformas digitais. Elas são um pequeno milagre: você escolhe o artista, vai lá e tem quase toda a discografia. Então, como material de trabalho, pesquisa e usufruto pessoal, é maravilhoso! Mas sou um romântico com essa coisa do formato físico, adoro vinil, tenho mais de mil, vivo comprando, não tenho mais onde guardar. Já pensei em digitalizar e doar, porque tô ficando velho e quero ser um velho leve, não quero ficar carregando uma corcunda de coisas e objetos. Prezo o encarte, saber quem tocou o baixo, guitarra, percussão, quem fez arranjo de cordas, vocais. Pras novas gerações, não faz a menor diferença. Também cultuo a qualidade do som. Ouvir música no celular é prático, mas fica um sonzinho achatado, não tem médio, agudo, grave. Meus vinis estão aqui, embora eu só ponha quando vem um amigo almoçar, e aí o tempo fica diferente. De vez em quando boto na hora do almoço pros filhos ouvirem, e é um deleite. Hoje se ouve menos CD do que vinil, porque o vinil voltou a ficar forte e o CD já não tem mais nem onde ouvir. As poucas fábricas de vinil no Brasil estão dando prazo de seis meses a um ano pra um disco ficar pronto. Sobre a fisicalidade – como Salgado fala, dando mostras da sua verve poética – é uma luta perdida. As pessoas vão ouvir mesmo esse sonzinho comprimido no celular, porque a praticidade hoje conta muito. Eu lamento e continuarei a lançar discos, porque dou valor à narrativa do vinil. Alguns artistas, inclusive, proíbem a plataforma de fragmentar o disco, de colocar em playlist, porque entendem que a sequência de canções tem uma proposta narrativa.
Tô ficando velho e quero ser um velho leve, não quero ficar carregando uma corcunda de coisas e objetos.
Samária: Recentemente Neil Young se posicionou contra o Spotify por este dar espaço a conteúdo antivacina e, quando ameaçou tirar suas músicas, o Spotify preferiu ficar com o conteúdo negacionista. O artista está refém do poder das plataformas?
ZB: A gente tá vivendo um tempo estranho e, num plano geral, tende a piorar. A própria explosão negacionista é um sintoma de um quase surto coletivo. Temos o maior número de informação possível, as pessoas têm acesso a textos científicos, literários, teses filosóficas, o escambau, e nunca o mundo foi tão coletivamente burro! As plataformas são incontornáveis – se você não está ali, você não existe. Andei conversando com programadores, pensando em criar uma plataforma minha. Mas isso exige muito dinheiro e tempo – duas coisas que não tenho. O Spotify demorou mais de uma década para se consolidar. Mas você não pode ficar totalmente refém das plataformas, tem que diversificar: lança o trabalho lá e faz outros formatos – um livro com as letras, um tratamento gráfico bonito, um link. Pendrive é anacrônico, né? Tenho um amigo que fala: ‘Alguém precisa ser anacrônico, Zeca, não tem como todo mundo estar up to date ao mesmo tempo!’. Talvez a gente tenha que fazer algumas experiências, correr o risco de pequenos fracassos, um disco que não dá em nada, um disco-livro com noite de autógrafo. Além disso, as plataformas pagam uma mixaria. Tenho uma música que virou megahit, uma das 20 mais tocadas no Brasil hoje – Telegrama. Pedrinho, filho do Celso Borges, falou: ‘Pai, o Zeca deve tá rico!’. Quem tá rico é o dono da gravadora, porque esse fonograma pertence a ele, eu recebo os royalties da composição. Tô preparando discos de releituras de minhas próprias músicas pra que eu detenha o fonograma. Naturalmente essas novas gravações não vão chegar facilmente a milhões de views. Telegrama completa 20 anos em 2022 e é muito tocada pelo acúmulo da popularidade ao longo do tempo. E é uma música que acho até um pouco estranha, mas enfim, as pessoas cantam e ela tem mais de 60 milhões de visualizações só no Spotify.
As plataformas digitais pagam uma mixaria. Telegrama é uma das 20 músicas mais tocadas no Brasil e esse fonograma não me pertence.
André: Sua origem é no teatro infantil. Você vem retomando esse público, com espetáculo dirigido a crianças e também está na trilha da animação Tarsilinha, sobre o universo modernista da pintora Tarsila do Amaral (Célia Catunda e Kiko Mistrogiro, 2022. Os mesmos são responsáveis por Peixonauta e Show da Luna). Como é a sua relação com o público infantil e como foi musicar esse filme?
ZB: Com 17 anos, sem saber muito bem que direção tomar e sem muita desenvoltura – fui um adolescente bastante tímido-, entrei num grupo de teatro e aquilo me abriu alguns portais. O diretor me deu logo uma função: ‘Você vai compor as trilhas e fazer direção musical’. E eu: ‘Rapaz, eu não sei se sei fazer isso, não’. Hoje sou muito grato porque ele realmente me colocou num bom lugar. Era um teatro amador, mas fizemos vários clássicos e tinha um capricho. E aquilo me deu certa cancha e comecei a compor minhas próprias músicas. Depois queria virar um performer, o cara que canta e toca, e deixei a faceta infantil pra trás. Quando cheguei em São Paulo, fui convidado por amigos recém conhecidos a fazer a trilha de um espetáculo infantil. Aí a criação para crianças, que eu sempre gostei, voltou à tona. Depois vieram os filhos, em 1998 e 2000, e aquilo me encheu de poesia. Eles falavam coisas super poéticas, um certo estranhamento com o mundo, próprio da visão das crianças. Viajando de avião, meu filho pequenininho disse: ‘Pai, olha uma árvore de nuvem’. Achei lindo e fiz uma música! Fiz dois discos com canções que compus pra meus filhos dormirem e tenho material para um terceiro. Há pouco tempo criei um show pra crianças e foi a live que mais fizemos na pandemia. Aí apareceu o convite de fazer Tarsilinha, uma animação maravilhosa, realizada por animadores incríveis e uma super equipe, com gente do mundo todo, um projeto arrojado, os cenários são todos telas de Tarsila do Amaral. Zezinho Mutarelli me chamou: ‘Ô, Zeca, a trilha é imensa, quero que você me ajude e componha a canção do final’. Fiz um baião com uma pequena alusão a Villa-Lobos e chamei Ná Ozzetti pra cantar comigo. Fico felizão.
Não me considero escritor. O que gosto mesmo e acho que sei fazer é escrever canções.
Wellington: Você é filho de dois professores: seu pai, professor de biologia, e a mãe, de gramática. De que modo eles influenciaram sua carreira artística e sua vida?
ZB: O ambiente familiar em que nasci e vivi a infância foi o responsável pela pessoa que sou. Meu pai é um homem dos livros e minha mãe da canção. Ela punha a gente pra dormir cantando Noel Rosa, Lamartine Babo, Herivelto Martins, Ismael Silva. Hoje tem 92 anos, está com Alzheimer e já não se comunica com o mundo. Mas até quatro anos atrás eu passava a tarde com ela cantando: puxava uma parte da música, ela lembrava a outra. Meu pai recitava Catulo da Paixão Cearense, minha mãe recitava Augusto dos Anjos, Olavo Bilac. Meus irmãos mais velhos tocavam e minhas irmãs cantavam. Tivemos um ambiente em que as festas eram divertidas, cheias de poesia e música. Meu pai sempre gostou de literatura e continua a ler, aos 99 anos. Outro dia ele tava lendo Drácula de Bram Stoker, um calhamaço (580 páginas). Meu pai era bravo, quase impunha que a gente lesse, achava que ler forma não só culturalmente, mas forma o caráter. Li todos os clássicos e li menos que meus irmãos. O autor que mais tinha na prateleira de casa era o poeta José Chagas, do clássico Maré Memória, que construiu toda uma obra falando de palafitas.
Wellington: Seu último livro publicado foi em 2015. Sou um leitor de suas crônicas. Quando você vai publicar um novo livro?
ZB: Não me considero escritor. Vejo biografias de colegas que se dizem compositor, músico, instrumentista, produtor, escritor – cara, só falta ser motorneiro de trem! Sou compositor: escritor de canções (fala com ênfase). Embora meu primeiro ímpeto tenha sido escrever, tinha um bom texto e o apoio da família, o que gosto mesmo e acho que sei fazer é escrever canções. As crônicas foram uma casualidade. Acabei recebendo convite da IstoÉ depois que eles leram um blog meu, mas eu não tinha pretensão nenhuma de fazer livro. Escrever, pra mim, é um exercício de organização do pensamento – que é caótico por natureza. Então escrevo sempre. E tenho escrito algumas coisas sobre esse momento de música versus tecnologia, novos comportamentos que as redes sociais têm feito surgir, nova psiquê humana em gestação, talvez até uma nova humanidade. Mas não tenho intenção de fazer nada pretensioso, um ensaio antropológico – até porque não tenho autoridade e formação pra isso. São divagações, filosofia de botequim. Se isso vai resultar num livro, não sei. Sou muito autocrítico, então, pra publicar, tenho que tá muito ciente de que aquilo tem algum valor.
Ouvi meu pai dizer baixinho para Josué Montello: ‘Ô, sou um admirador seu’. Eu era criança e fiquei tocado. Desde ali percebi a importância que os criadores podem ter na vida do povo.
Samária: Você tem um livro que se chama “A rede idiota”. Qual a sua relação com as redes sociais?
ZB: Tenho uma relação sóbria. Recentemente, quando meu pai completou 99 anos, super forte, lúcido, fiquei resistindo a publicar isso. Não gosto de misturar vida profissional com pessoal, tenho um escrúpulo meio besta, meio interiorano, nunca expus meus filhos. Apesar de ser músico, cantor e compositor – estar numa certa prateleira –, tenho um procedimento um pouco low profile. Não abriria minha casa pra revista Caras. No dia do aniversário de meu pai, resisti, até que meu irmão falou: ‘Pô, Zeca, é um acontecimento, nosso pai!’. Aí, no final da noite, postei. Foi uma loucura, quase 20 mil visualizações imediatas, as pessoas comentando. Mas trato as redes sociais como espaço profissional, falo de lançamentos, uma música que gravo, um projeto novo -, e pessoal no plano do pensamento, de partilhar uma inquietação existencial, política, social. Tem gente que fica postando almoço na piscina, não vejo sentido nisso. As redes sociais são também uma armadilha.
Wellington: Tivemos a ditadura civil-militar-empresarial dos anos 1960-70, um período muito triste da nossa história, com torturas, censuras, assassinatos. Algumas obras recentes abordam os dramas desse período, como o filme Marighella, de Wagner Moura (baseado em livro de Mário Magalhães) e o documentário sobre Nara Leão, na Globo Play. Marighella achava que o enfrentamento deveria se dar por meio da luta armada e Nara Leão, por meio da música e posições políticas. É papel do artista engrossar o coro de luta contra fascismos?
ZB: É papel de qualquer cidadão – o cara pode ser advogado, dentista, cabeleireiro. Naturalmente, o artista tem uma voz pública, pode ser influente, ter dimensão popular e alcance imensos. É bonito quando a gente vê o cara do lado certo da história, lutando a luta justa, contra autoritarismo, repressão, censura. Mas ter atitude cidadã independente de você ser artista. Obviamente se cobra mais do artista. Eu não cobro ninguém. Já se cobrou de Roberto Carlos uma postura que ele nunca teve e posso gostar da música dele, mesmo achando ele um alienado político. Naturalmente minha admiração por Nara Leão, por Gonzaguinha, talvez seja maior, porque, além de grandes artistas, eles foram combativos. Não me considero militante nem ativista de nada. Me considero um cidadão que deseja justiça. Acho que essa postura é anterior e eu agiria contra injustiças sendo um dentista ou um jogador de futebol.
Wellington: Algumas pessoas falam de Nordeste ou nordestinidade como algo homogêneo ou uma possível forma que integra os nove estados nordestinos. Ao mesmo tempo, esses estados são muito distintos. Em termos culturais, muita coisa acontece num estado e o outro nem toma conhecimento. Como você vê essa ideia de nordestinidade?
ZB: Isso é uma questão imensa que daria uma nova entrevista (risos). Tem um disco recente de Juliana Linhares, cantora de Natal, muito talentosa, do qual eu participo. O disco se chama Nordeste Ficção, que é uma coisa que tá na letra de Belchior: “Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca houve” (Conheço o meu lugar). Tem também a tese do professor Durval Muniz, A Invenção do Nordeste, sobre essa nação cultural inventada por Luiz Gonzaga, os romancistas dos anos 1930: Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, até chegar nesse caldo que temos hoje e que faz crer nesse Nordeste integrado. Mas, se você for ver, Piauí e Sergipe têm pouquíssimas coisas em comum. Maranhão e Bahia, além da população negra, valorização da música e dança, têm pouco em comum. Isso é uma fantasia! Bonita de se crer e que culturalmente nos legou coisas maravilhosas, mas eu não sei se isso existe de fato e se é genuíno falar em nordestinidade. O Maranhão, sozinho, já é muito diverso: em vegetação, comidas, sotaques… Então você pensar que nove estados têm uma identidade comum?! É verdade que têm pontos de contato e deveria haver maior interface. Maranhão e Piauí são muito próximos geograficamente e têm algumas trocas. Acho que a música do Piauí foi influenciada pela do Maranhão mais do que o contrário. Vejo compositores do Piauí fazendo coisas que se assemelham a bumba-meu-boi, que não é originalmente da cultura popular do Piauí…
Wellington: Olha, aqui se diz que o bumba-meu-boi é do Piauí e os maranhenses levaram.
ZB: Pois então o Maranhão roubou e aprimorou (risos). Pode ser verdade, nem sempre o criador é o cara que melhor desenvolve a coisa. Mas há muitas trocas culturais possíveis entre Piauí e Maranhão e seria bom, pra todo mundo, que elas aumentassem. Fortaleceria a cena.
André: Você ainda não contou o porquê do nome José “Snaid”…
ZB: Essa é uma boa história. Meu pai é filho de imigrantes sírios. Ele e minha mãe são de Arari, eu nasci em São Luís por acaso. Passei toda a infância, até os oito anos, em Arari. Só saímos de lá em 1974, fugidos da enchente. E isso é curioso porque o imaginário da seca está na canção e na literatura nordestina e, pra mim, ele não existe. Nunca vi seca, só enchente. Minha cidade enchia a ponto das canoas entrarem pelas janelas das casas, a gente ficava nos jiraus, pescando piabas. Nossa casa ficava a 30 metros do rio Mearim, que tem proporções amazônicas. As cidades da baixada maranhense foram povoadas por sírios e libaneses no começo do século 20, que vinham numa aventura de melhorar de vida. Meus avós chegaram em Recife, acharam a cidade grande demais e continuaram no navio Nordeste acima. Chegaram a São Luís, uma metrópole! Foram bater em Arari. Lá se estabeleceram, abriram uma lojinha. O sobrenome deles era Snaid. Ao se registrarem no cartório de Arari, o tabelião, semianalfabeto, não sabia escrever. Eles, analfabetos no português, não sabiam dizer. Aí alguém deu a solução: ‘Vamos botar Santos e está resolvido!’ Aí ficou Santos. E a família tem certa mágoa de ter abandonado a ascendência síria – que hoje nem é mais digna de nota, a Síria é um país devastado, infelizmente. Ficamos Santos, e eu salvei o sobrenome Snaid, pelo menos no e-mail, pra brincar um pouco.
Qualquer artista, não importa o tamanho, em algum momento tem dúvida com relação à permanência de seu trabalho. Às vezes rola uma solidão, uma desolação, vontade de desacelerar ou mesmo parar.
André: Tenho uma questão pessoal, mas deve representar muita gente. Eu e Samária vamos fazer 15 anos juntos e, na nossa primeira viagem, um réveillon em São Luís, fomos assistir um show seu na praia. O show foi maravilhoso, mas tinha muita gente, não tinha táxi pra voltar ao hotel e fizemos o percurso quase todo a pé. Isso virou uma história nossa. O que quero dizer é: como artista da música, você certamente faz parte das histórias de muita gente. Como é saber que algumas canções suas podem ter significados importantes na vida das pessoas?
ZB: Meu pai era fã de Josué Montello, baita escritor maranhense subestimado, e lembro de meu pai tietando Josué Montello na sorveteria do Bar Central, local histórico no centro de São Luís. Foi a única vez que vi meu pai paparicando alguém. Porque ele era um cara interiorano, reservado. Eu ouvi ele dizer baixinho: ‘Ô, sou um admirador seu’. Eu era criança e fiquei tocado. Desde ali percebi a importância que os criadores podem ter na vida do povo. À medida que envelheço, vejo caras e mulheres de 30 anos dizendo: ‘Eu vi o senhor a minha infância inteira’. Quando me chamam de tio, digo ‘tio é o cacete!’ (risos). A gente ri, mas é um sinal de sobrevivência nossa e de permanência na vida das pessoas. Gravei um programa pra HBO e na equipe havia dois rapazes que me contaram: músicas minhas eram temas dos casamentos deles. Eu disse: ‘Pô, tô me sentindo o Santo Antônio da música popular brasileira’. Brincadeiras à parte, isso é bonito: você saber que as pessoas se apaixonam – ou se separam – ao som de sua música. Isso envaidece e alegra a gente. Porque qualquer artista, não importa o tamanho, em algum momento tem dúvida com relação à permanência de seu trabalho. Acho que isso pode ter acontecido até com, sei lá, Dostoievski, Dylan Thomas, porque é inerente à criação. E no caso da música popular as coisas se sucedem numa velocidade grande, um cantor novo hoje, dois anos depois já será veterano ou esquecido. Então essas manifestações dão conforto: ufa, acho que minha música vai ficar para algumas pessoas. Porque às vezes rola uma solidão, uma desolação, vontade de desacelerar ou mesmo parar. Todo mundo já teve…
É exatamente porque a música que fiz aos 22 anos não traduz quem sou hoje que não paro de compor. Quero atualizar a minha impressão sobre o mundo.
Samária: Sobre suas músicas, você nos falou nessa entrevista que fez Flor da Pele muito novo e a acha imatura; que Telegrama é uma música estranha. Olha, os fãs podem sofrer ao ler isso, porque essas músicas já se tornaram memórias e histórias das vidas das pessoas. Que música, então, você compôs e a gente pode continuar cantando porque você não se arrependeu?
ZB: (risos) Veja bem: eu gosto dessas músicas, só sou um pouquinho sincerão demais. Quando gravei essas canções, inclusive existia aquela ideia da “música de trabalho” – você tinha que escolher uma do disco pra tocar no rádio, tentar emplacar numa novela, e eu nem participava dessa discussão porque era como escolher entre filhos. Era o pessoal do marketing que escolhia. Quando me disseram “escolhemos Telegrama”, eu falei: gente, mas essa música é muito estranha, olha essa letra, nunca vai ser popular! Um amigo falou: ‘Cara, isso é o tema de um bipolar: o cara acorda triste, tristinho, e no final explode numa euforia querendo dar flores ao delegado!’. Tenho canções de amor mais óbvias que não chegaram nesse lugar de mega sucesso de Telegrama. Algumas eu continuo cantando por saber a importância que elas têm pras pessoas, mas têm coisas que não creio mais, foi um outro cara que escreveu e esse cara não existe mais. A gente muda muito, e a canção é um retrato do momento que você compôs, das sensações que teve. Uma canção que fiz com a angústia de um jovem de 22 anos, aos 56 penso muito diferente, embora possa gostar da música, porque ela envolve melodia, leva a uma emoção, as palavras podem ser saborosas de cantar. Mas é exatamente porque a música que fiz aos 22 anos não traduz quem sou hoje que não paro de compor. Quero atualizar a minha impressão sobre o mundo. Nessa pandemia fiz mais de cem músicas, muitas em parceria com amigos, é uma forma de mostrar meu olhar de hoje. Mas gosto de todas as minhas músicas e canto todas com gosto, porque todas saíram da minha pena – então tenho mesmo que assumir (risos). E tenho carinho também amplificado pelo eco que elas têm na alma e na vida das pessoas.
Samária: Essas músicas são nossas então, né?
ZB: Sim. São de todo mundo! Ei, na próxima vamos fazer essa entrevista presencialmente, tomando uma cajuína?
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Entrevista publicada na Revestrés#51 – 2022.
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