PARTICIPARAM DESTA ENTREVISTA: André Gonçalves, Samária Andrade, Wellington Soares. Convidada: Ayra Dias – Graduanda em Jornalismo (Uespi) e Serviço Social (Fatesp), pesquisadora PIBIC da Fiocruz-PI, ativista, Coordenadora do Fonatrans-PI (Fórum Nacional de Travestis e Transsexuais Negras e Negros, drag queen, escritora. TEXTO E EDIÇÃO: Samária Andrade. FOTOS: Wilkerson Araújo.
No último mês de maio, Letícia Nascimento lançou o livro Transfeminismo (Jandaira, 2021), décimo título da Coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro. Dois anos antes as duas se conheceram quando Letícia pediu um autógrafo a Djamila durante o Salipi – Salão do Livro do Piauí. Aproveitou para se apresentar e despertou a atenção da filósofa feminista. Desde então mantiveram contatos, que resultaram na publicação do livro.
No Piauí, Letícia era conhecida especialmente por palestras e posicionamentos públicos em defesa das causas que defende: “Antes de ser professora universitária me sinto ativista social”. Docente do curso de Pedagogia da Ufpi – Universidade Federal do Piauí –, conta que a estabilidade no trabalho lhe permitiu livrar-se de alguns medos: “Por que demorei tanto a ser Letícia? Porque eu tinha medo – medo de não conseguir um emprego sendo travesti”. Na imprensa é sempre citada como a primeira professora travesti daquela Universidade. Considera isso um marco, mas também a denúncia de uma ausência. Não quer ser vista como exemplo de quem consegue, mas como a exceção que comprova a dificuldade. “Não quero que pareça que, se eu consegui chegar onde cheguei, qualquer uma consegue. Porque isso é mentira, não é fácil”.
Graduada em Pedagogia, ela tem mestrado em Educação e hoje, aos 32 anos, é doutoranda também em Educação, pela mesma Ufpi. Nasceu em Parnaíba, litoral do Piauí, onde tem passado boa parte do período de pandemia. É de lá que pesquisa, faz lives com palestras, concede entrevistas e, no início de julho, postou no Instagram sua primeira foto de biquíni completo feminino em lugar público. Estava na praia e, na legenda, conta que venceu uma barreira. Ultimamente diz que tem publicado mais fotos sensuais, que tira sozinha ou com ajuda de amigues. São de Parnaíba também parte de suas lembranças de infância – sejam de violência na escola, chamada de gorda e afeminada –, ou das boas brincadeiras entre os irmãos. Letícia é a segunda de quatro filhos.
No currículo Lattes ela é Letícia Carolina Pereira do Nascimento, e a primeira frase de seu perfil diz: “Mulher Travesti, Negra e Gorda”. Além das pesquisas sobre sexualidade e ideias decoloniais, se apresenta ainda como “filha de Xangô e Iansã” e “leonina com lua em Capricórnio”.
A professora fala com gentileza, mas é assertiva. Propõe pontos de vista sem imposições. Com seus disparos, provoca o interlocutor ao concluir que não apenas as pessoas trans estão em constante transição e assumindo novos papéis a cada situação: “Performamos o tempo todo – não só as pessoas trans. Se você decidiu vir pra essa conversa com esse boné, você deve estar querendo passar alguma imagem.”
Letícia Carolina deu essa entrevista – ou aula – a Revestrés pelo aplicativo Meet. Ao falar dos enfrentamentos de homofobia, não quer deixar mensagem de dor, e ainda ensina: “A felicidade é um dever ancestral. A tristeza é um contra-axé.”
André: Transgeneridade é uma questão complexa para a maioria das pessoas. O seu livro é bastante didático. Que contribuição acha que esse tipo de publicação traz para a discussão desse tema e para a produção intelectual das pessoas transgêneres?
Letícia Carolina: Sempre fui ativista social. Desde minha graduação estou envolvida com projetos de educação popular e, posteriormente, com o movimento social LGBTQIA+, ainda em Parnaíba. Esses envolvimentos fizeram com que minha linguagem buscasse ser acessível, e isso se reflete na minha escrita e palestras – entendo tudo como um processo de militância, como minha função, porque antes de ser professora universitária me sinto ativista social. A grande contribuição que o transfeminismo traz é uma crítica radical à concepção de natureza – essa ideia de que nascemos homens ou mulheres e de que o nascimento determina a nossa identidade. Isso é enraizado na nossa cultura e acaba parecendo um destino irremediável. Mas nas ciências sociais e humanas isso é o contrário do que acreditamos. Quando trabalhamos conceitos de cultura, sociabilidades, entendemos que a mutabilidade é característica básica de qualquer compreensão cultural ou social. Ou seja: a cultura, os valores de uma sociedade, sempre estão em transição. E nós insistimos em ter uma referência âncora, que não consegue mudar, acerca de nós mesmos.
Ensinar (transfeminismo) para um homem branco, classe média, com internet, poder aquisitivo, é uma incoerência. O MEC não me paga pra ser didática com raciste e transfóbique.
Samária: A ideia de gênero como construção contradiz ideias biológicas. Comente como a concepção de um corpo natural – homem e mulher – se impôs.
LC: A ideia de que nascemos homens ou mulheres dá uma resposta a um certo tipo de sociedade – burguesa, do século 18, europeia – que tinha um enorme problema: a população morria facilmente. Não havia condições sanitárias, as guerras eram muito comuns e o Estado emerge tendo, como grande preocupação, aumentar a população. Nesse contexto social, cultural, econômico e político, a medicina entendeu que a prática sexual deveria servir para reprodução, e todas as outras práticas sexuais e afetivas foram condenadas. Criou-se então a ideia de masculinidade e feminilidade numa via de reciprocidade entre homem e mulher. Mas isso é uma farsa, uma invenção! Essa é a crítica radical do transfeminismo. Ele diz que, na verdade, nem existe corpo natural. Isso que nós chamamos de “natureza” é uma prática eminentemente discursiva, de nomeação, de produção de sentidos.
Wellington: A conhecida frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” é útil para se pensar a pessoa trans?
LC: Alguns autores entendem que nós nem “nascemos”, pois o próprio ato de nascer é uma produção de sentido. Os bichos não “nascem” – eles têm crias, e não fazem disso um evento excepcional. Nós é que criamos a instituição nascimento, um momento especial, que precisa ser celebrado. Isso é sociologia básica: a compreensão de que nada que nos acontece é natural. Quando digo que não existe homem, não existe mulher, tudo é produção de sentido, não estou dizendo que não exista materialidade. Ela, inclusive, produz violências concretas. A produção de sentidos tende a criar hierarquias, divisões sociais e opressões – que também não são naturais. Isso tá no velho Marx, na compreensão de história como produção. Então gênero, raça, classe, são conceitos. E o fato das categorias sociais serem “inventadas” não significa que não são reais. Significa que foram criadas em um dado contexto e, do mesmo modo que foram criadas, podem ser remodeladas, destruídas, refeitas. É isso que difere os homens na natureza.
Samária: Você se diz ativista antes de ser professora e atribui à militância o caráter didático que busca ter. Recentemente alguns ativistas têm manifestado cansaço por estarem sempre explicando aos demais as suas condições identitárias. Como você vê essa questão?
LC: Acho uma revolta legítima, principalmente em tempos de sociedade da informação, onde tem tutorial no Google pra tudo. Qual a dificuldade da pessoa pesquisar: “como não ser transfóbico?”, “o que é transfobia?”, “o que é travesti?” Quando a gente diz “não queremos mais ensinar” é um choque para as pessoas. E nem é que nós não queremos mais ensinar, é que cansa, toda hora, repetir – porque a gente tá fazendo isso, sim. Você vai no meu Instagram e tem vídeo, texto, indicação de leitura, links… Mas a pessoa quer um “personal anti-transfobia”! Eu chamo isso de preguiça cognitiva. E isso é também uma manifestação de transfobia e racismo. Essas pessoas não aprendem sobre transgêneres, sobre racismo, não porque o assunto é difícil, mas porque não enxergam essas áreas como importantes, e ficam dando desculpas: “ah, a minha idade”, “ah, no meu tempo não tinha isso”. Eu entendo tanto sobre gênero e sexualidade não porque sou travesti, mas porque estudo isso há 10 anos. Não dá pra entender algo que a gente não estuda, não se informa sobre. E tem muito conteúdo disponível sobre as diversidades, a literatura a respeito é imensa, e parte da população que mais se queixa de não entender é a mesma que tem acesso a isso tudo. Há públicos que não sinto nenhum incômodo em ensinar. Mas ensinar para homem branco, de classe média, com celular na mão, internet em casa, computador, ipad, viagem pro exterior, poder aquisitivo – é uma incoerência. O MEC não me paga pra ser didática com raciste e transfóbique.
Não compactuo com ideias de meritocracia, não quero que nessa entrevista pareça que, se eu consegui chegar onde cheguei, qualquer uma consegue. Porque isso é mentira, não é fácil.
Ayra: O movimento social e político de travestis e transexuais contribuiu e contribui ativamente para a formulação de políticas públicas voltadas para a comunidade trans. Há diversas críticas, no entanto, quanto à atuação de membros da comunidade acadêmica, no sentido de cobrar a pouca ou nenhuma contribuição desta, uma vez que a maioria dos “produtores” de ciência são cisgêneros, brancos e heterossexuais. Como a sua atuação, como pesquisadora e ativista, se reflete na produção do livro?
LC: Estamos tentando produzir pontes entre a Academia e os movimentos sociais. A primeira compreensão que a gente precisa alargar é: movimento social é educador, produtor de conhecimentos, de epistemologias. Então a ideia de que o conhecimento está na universidade é equivocada. O que acontece é uma centralização do conhecimento dito científico e ele acaba sendo entendido como melhor, mais correto – e isso inclusive passa por uma disputa, contemporaneamente, que nos deixa até constrangidas de criticar o conhecimento científico, uma vez que estamos tendo que defender a ciência. Mas o certo é que a ciência não é a dona da verdade. Ela contribui, sim, com a produção de conhecimento, mas também está imersa em interesses políticos e ideológicos. A universidade e a ciência não são neutras, elas produzem conhecimentos a partir de uma lógica. E precisamos nos perguntar: como ter um diálogo mais horizontal entre Academia e movimentos sociais? A universidade tem mudado, principalmente a partir da entrada dos movimentos sociais. O movimento negro entendeu a universidade como lugar de disputas – desde a década de 1990 e, depois, nos anos dois mil –, impulsionado pela política de cotas, que possibilitou a entrada na graduação e, posteriormente, nos mestrados, doutorados, carreira docente. E os estudos de raça no Brasil começam a mudar quando pesquisadores negros começam a produzir mais conhecimento. Então devemos fazer as críticas e fazer as pontes, entender onde a universidade falha, é incompleta, e como podemos possibilitar diálogos. A universidade precisa estar mais próxima do movimento social, vivê-lo. Não é “pesquisar sobre travestis”, é pesquisar “com” travestis. E levar as pessoas do movimento social pra dentro da universidade, e não só para cursarem, mas para que sejam ouvidas, deem palestras, aulas, sejam coautoras de conhecimento. Outra ideia que a gente precisa deixar de lado é que as pessoas, para serem bem sucedidas, precisam ter curso superior ou estar num mestrado, doutorado. Não! Nem todo mundo do movimento social quer ou precisa estar na universidade estudando. Existem lideranças que devem ser reconhecidas pela sua intelectualidade sem necessariamente ter que cursar uma universidade. Esses entendimentos precisam acontecer, até porque existem pessoas que hoje estão nessa fronteira, como você, Ayra, como eu.
André: Muitas matérias sobre você se referem à primeira professora trans da Universidade Federal do Piauí, como você mesma se distingue. Isso é um sinal de distinção, mas também revela um estranhamento. Como você vê esse estranhamento e qual seu grau de otimismo em relação a que isso se torne desimportante?
LC: Digo que faço as mesmas coisas que toda professora: preencho diário, planejo aula, preparo slide, faço avaliação, publico artigos, submeto projetos de pesquisa – a única diferença é que sou travesti – a única, no meu departamento, meu campus e minha universidade. E faço questão de esclarecer uma coisa: não compactuo com ideias de meritocracia, não quero que nessa entrevista pareça que, se eu consegui chegar onde cheguei, qualquer uma consegue. Porque isso é mentira, não é fácil e eu só cheguei porque tive condições: estudei em escola particular, tive educação de qualidade, nunca tive problemas sociais como passar fome, não ter o que vestir. Então, para mim, chegar na universidade foi uma trajetória natural, não uma superação, apesar dos problemas da homofobia que sempre me perseguiram e me fizeram entender que ser dona de mim me ajudaria. Sempre corri atrás de emprego, de segurança. E por que demorei tanto pra me assumir, pra ser Letícia? Porque eu tinha medo – medo de não conseguir um emprego, de não passar numa seleção pública sendo travesti. Esse medo me paralisou de ser quem eu era durante anos (falando arrastando as duas últimas palavras). Por isso, quando me tornei professora, decidi que não poderia mais me esconder. Vivemos tempos de mostrar quem somos, precisamos ser extremamente políticos e políticas. Decidi que iria marcar minha atividade de professora em universidade pública como algo importante, entendendo esse lugar e essa chegada como incomum e demarcando as ausências. Em fevereiro de 2022, irão completar três anos de minha posse e provavelmente continuarei sendo a única professora travesti desta instituição. E falo isso não porque não tenha esperança – a vida nos movimentos sociais ensina a ter esperança e a ter o pé no chão. No movimento social, a gente vive assim: com os dois pés no chão e o olhar no horizonte, vislumbrando o que se pode fazer agora e o que se pode fazer amanhã. Mas nós ainda temos um grave problema na educação: as travestis são expulsas ainda no ensino fundamental, pelas diversas formas de violência. Eu me tornarei a primeira doutora travesti da Ufpi, e isso é um quadro muito pequeno, até porque pouquíssimas pessoas conseguem se candidatar a uma vaga sendo travesti. Então a ideia de me afirmar “a primeira” é entender o abismo em que estamos, a ausência dessa população dentro da universidade e que precisamos construir políticas que contribuam para a inserção de mais pessoas trans. Essa é uma afirmação, na verdade, política e não de mérito pessoal, é uma denúncia de todas as outras corpas que não conseguem adentrar a universidade, nem como alunas, nem como professoras.
O mercado adora os direitos LGBTQIA+, é maravilhoso que esse povo vire cidadão e possa consumir – porque ser cidadão, pra direita, é ser alguém que consome.
Wellington: Em relação ao próprio meio universitário, como você se sente: acolhida, abraçada, rejeitada?
LC: O ambiente universitário é um reflexo da sociedade, então encontramos os mesmos grupos que estão na sociedade – desde aquela galera extremamente aberta, transgressora, que cria espaços dentro da universidade para se divertir, escutar música, dançar, pichar, aos grupos que vão na diretoria protestar contra os que fumam maconha; e aqueles que não estão nem aí – nem pros que reclamam, nem pros que fumam, e querem ir lá estudar e tudo bem. Entre esses grupos, hoje, a população negra e comunidade LGBTQIA+ é bem presente. Embora pessoas trans estejam em menor proporção, gays e lésbicas são frequentes e se organizam em grupos exclusivos ou participam de grupos de gênero. Já cheguei na biblioteca e a pessoa que me atendeu viu meu nome civil no documento e perguntou: “Como devo lhe chamar?” – um atendimento super humano. E também já encontrei atendente que tive que explicar mais de uma vez: “Você deve me chamar pelo nome de Letícia Carolina, é meu nome social, diferente do que está no documento”. Na minha experiência tenho sido bem tratada, mas não posso afirmar que a universidade é um ambiente sem transfobia, recebo relatos de estudantes que são maltratados. Por eu ser muito didática, geralmente já entrego minha documentação dizendo: “Me chame Letícia, tudo bem?” Ali a gente já matou uma situação que poderia ser constrangedora.
Samária: Como você se autodefiniu: “eu sou Letícia”?
LC: Eu sempre soube que era Letícia, mesmo sem ter esse nome. A gente dá muita importância às práticas de nomeação e, como leitora pós-estruturalista, adoro as palavras, acredito que as coisas precisam ser nomeadas para que ganhem consistência. Mas, como boa pós-estruturalista, antes das práticas de nomeação acredito no desejo. É o desejo que me move, que faz a Letícia Carolina ganhar forma. E ele não é o mesmo desejo sempre, mas mudou – era um na minha infância, outro na adolescência, e foi um desejo que me trouxe, na fase adulta, a me afirmar publicamente como Letícia Carolina. Foi uma transição que levou tempo e cada processo é único. Na minha experiência, comecei em 2017 e passei um ano vivenciando o que chamamos de gênero fluido, eu transitava entre o masculino e o feminino, e isso dependia do lugar, do contexto, da atividade. Aí a Letícia Carolina começou a ganhar mais espaço, a ser conhecida, até que, aos poucos, ela foi ampliando a participação, até que não havia mais espaço para outra pessoa e eu deveria ser apenas Letícia Carolina. Em 2019, essa mudança ocorre de maneira radical e passo a assumir essa identidade integralmente em todos os momentos e espaços. A minha família foi acompanhando o processo e entendendo que eu deveria ser tratada como Letícia Carolina. Quando a gente se questiona sobre como nos tornamos quem somos, também devemos nos perguntar porque esse processo não aconteceu antes. É porque há regimes de interdição que nos proíbem constantemente de sermos quem desejamos ser. Inúmeras crianças, por exemplo, poderiam viver artisticamente desde a infância, mas os pais entendem a arte como supérflua e, apenas na vida adulta, elas se tornam artistas. Quantas crianças e adolescentes são moldadas pela sociedade, impedidas de viver aquilo que o desejo delas coloca? Eu fui uma criança que sempre desejou brincar com boneca, me vestir como menina, não me identificava com aquele nome, mas esse desejo foi constantemente podado. A sociedade sempre cria modos de podar nossos desejos, não ouvimos as nossas crianças, nossos adolescentes, estamos o tempo todo em práticas educativas que buscam impor uma concepção de vida, de mundo, de sociedade, ao invés de entender que essa concepção está o tempo todo sendo feita e refeita e os desejos das crianças podem atualizar nosso mundo. A gente poderia aprender muito mais com as crianças.
André: No livro você fala de uma infância perdida. As pessoas transgênero perdem, de alguma maneira, a infância? O que você perdeu que é irrecuperável e como você lida com isso hoje?
LC: Há uma perda, mas há uma inventividade, porque esse modo linear – infância, adolescência, vida adulta – é uma ideia positivista pelo qual definimos nossa realidade. Na verdade, eu ainda sou uma criança. Agora, é óbvio que houve um assassinato daquela criança também. Então há uma parte que se perde, mas uma parte que se recria em mim. Ainda tenho esse devir “Leca”, que é como chamo minha criança interior, e Leca ainda vive em mim. Mas não somos nós apenas, as crianças transgêneres, que temos a infância perdida. A infância é uma grande problemática nas sociedades ocidentais, que entendem a criança como aquela que não fala – a palavra, inclusive, vem do latim e significa o indivíduo que não é capaz de falar (infantia, do verbo fari, que é falar. Fan é falante e in a negação do verbo). Também passam por violações as crianças artistas, todas as queers, que de algum modo não estão de acordo com o gênero; as negras, que não conseguem se encontrar com sua raça na infância e só sentem orgulho de dizer “eu sou negra” na vida adulta. Eu passei por processo de castração, de perda de parte da minha infância, mas também tive fugas, delírios – isso é importante, para que a gente não reforce apenas a dor. Vivia com minha irmã e a gente brincava de boneca, felizes, e aquele momento era importantíssimo, porque ali era a oportunidade de vivermos como duas meninas – ou sem preocupação nenhuma com papel de gênero –, porque éramos apenas duas crianças brincando.
A irmandade travesti é a nossa cura, nossa força, é necessário ter outras pessoas que sejam como você, vivam como você, saibam do que você está falando porque vivem isso na pele.
Ayra: No livro Transfeminismo, você inicia nos apresentando Sojouner Truth (abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres – 1797/1883) com seu famoso discurso “Então eu não sou uma mulher?”, e também se apresenta enquanto corpa política, reivindicando-se transfeminista e apresentando essa corrente teórica como parte do feminismo. Há diversas críticas e apontamentos que dizem que o feminismo é racista e transfóbico. Por que não apresentar o Transfeminismo em caminho independente?
LC: Essa é uma crítica que outras correntes de feministas também fazem internamente, como o feminismo lésbico e o negro. As mulheres negras se perguntaram: “a gente deveria se dizer feminista, uma vez que o feminismo branco tem grande predominância?”. Assim também fizeram as feministas lésbicas e estão fazendo as indígenas. Todas se perguntam se devem se reivindicar feministas, tendo em vista que o feminismo é uma produção ocidentalizada e pode não dizer respeito a outras experiências. As feministas negras entenderam que o feminismo é esse lugar de disputa, e que agregar esse movimento à nossa luta acaba nos tornando mais irmãs. O questionamento sobre o princípio branco-burguês do feminismo perpassa várias correntes e muitas entendem que existem experiências que compartilhamos, enquanto mulheridade e feminilidade, que têm o poder de nos fazer decidir permanecer juntas. Porque a gente se entende na fala uma da outra. Por exemplo: em alguns povos indígenas, quando acontece um abuso sexual, o líder do povo tenta resolver aquela questão internamente, sem denúncia, porque entende que os problemas do povo devem ser resolvidos dentro do povo. Olha o quanto isso é familiar à experiências de mulheres brancas e negras?! A gente vê a repetição do patriarcado, do poder do macho, distribuído e reproduzido nas várias experiências sociais. Quando percebemos isso, decidimos apostar nos pontos de semelhança ao invés de reforçar as diferenças – que são muitas. O segundo ponto diz respeito a uma historicidade. Ao ficar junto ao movimento feminista, nos associamos a uma luta histórica, que passa pela conquista do voto, ser votada, entrada no trabalho, na Academia. E a gente percebe como algumas experiências se repetem: as mulheres brancas entraram primeiro nas universidades, depois as negras, hoje as trans e indígenas estão disputando esse espaço. Compreendo machismo e patriarcado como uma formação histórica branco-centro-ocidentalizada e acredito que entender essa estrutura faz parte de um processo de desconstrução. Quando leio Foucault, Deleuze – que são homens brancos, europeus, ocidentais –, entendo que eles fazem uma crítica interna, é a Europa criticando a produção da Europa. Nós podemos fazer isso. Depois, quando esses autores brancos ocidentais chegam na América, África, ganham novas leituras e a nossa crítica, inclusive, pode ser mais severa. É fundamental entender – como as mulheres brancas entenderam – as estruturas de dominação e aprender com experiências anteriores. Porque as experiências de diferentes mulheres atravessam minha produção enquanto feminista. Essas conexões são possíveis e, com isso, insistimos numa ferramenta do feminismo que é a sororidade. Como conseguimos construir esses laços é algo que estamos aprendendo, mas quando entendemos que todas nós somos feministas, estamos, de algum modo, dizendo que somos negras, lésbicas, trans, indígenas, e podemos ser irmãs. E irmãs brigam, se desentendem, concordam, mantêm suas diferenças, sabendo que são irmãs. A gente precisa acolher as diferenças e entender que a igualdade é construída a partir das diferenças. Uma igualdade que pensa em abolir diferenças é um delírio. A igualdade que precisamos construir é outra, é muito mais uma integração entre diferenças. Entender a igualdade nas nossas diferenças é uma aprendizagem difícil porque é uma luta constante contra a tradição ocidental que temos de mundo e sociedade. A gente percebe mais o entendimento da igualdade com diferenças entre os povos indígenas e afro diaspóricos.
Ninguém “é”, nós nunca “somos” – sempre “estamos sendo”. “Quem é você?” talvez seja uma das perguntas mais ingênuas de nossa sociedade ocidental.
Ayra: Você tece uma importante discussão sobre Xica Manicongo, primeira travesti negra documentada. Xica foi perseguida pela inquisição brasileira no século XVI. Recentemente Benny Brioli (PSOL-RJ), vereadora pela cidade de Niterói, teve que sair do país em virtude dos ataques e ameaças que sofreu. Considerando o processo histórico, é possível dizer que algo mudou?
LC: A gente precisa entender a história dentro de uma dinamicidade, com permanências e mudanças. Ainda temos uma sociedade extremamente colonial. Aníbal Quijano entende que, contemporaneamente, ainda somos coloniais, mas não exatamente como éramos em 1500 ou 1700, porque há permanências e rupturas. E há uma diferença entre uma travesti negra que andava pelas ruas de Salvador como escravizada de um sapateiro e uma travesti negra que adentra a Câmara Municipal de Niterói como vereadora eleita. Ambas são perseguidas, mas os lugares que elas ocupam são completamente diferentes. Naquele período de Xica Manicongo ter uma travesti vereadora era impensável. Hoje, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), temos 27 pessoas trans eleitas para Câmaras Municipais nas eleições de 2020. Isso é uma conquista que precisamos ressaltar, sob o risco de continuar tendo um olhar triste acerca de nós mesmas, do nosso passado. Se perdermos a esperança da mudança a gente perde a dimensão da luta e vai pensar: “pra que lutar, se ainda vivemos como Xica Manicongo”? Se nós lutamos é porque existem conquistas. A compreensão de como a história se repete é uma crítica ao modo como nossa sociedade é estruturada, é entender a raiz dos problemas, compreender como, colonialmente, a divisão sexual, de gêneros, foi gestada em nosso país. E é também pensar em como podemos, numa crítica a essa construção, criar uma outra sociedade.
Wellington: A maioria das candidatas trans eleitas está abrigada em partidos de esquerda? Essa pauta não chega aos partidos de direita?
LC: Na grande maioria são de partidos de esquerda, sim, mas existem eleitas em partidos de direita onde essa discussão também está presente. Existe a diversidade tucana – por incrível que pareça (risos). No Brasil, tem se gestado uma direita ultraconservadora, que defende valores morais, e que é diferente das direitas da Europa e da ideia de liberalismo econômico e liberdade individual. Existem países europeus governados por direitas não-conservadoras onde os direitos LGBTQIA+ são extremamente avançados, porque são compreendidos no âmbito da liberdade das pessoas. O viés preconceituoso é uma característica da direita do novo fascismo latino americano e trumpista – como eles dizem: “liberal na economia e conservador nos costumes” – na verdade, uma aberração política, que Bolsonaro representa. Eles não defendem políticas e investimentos públicos para populações historicamente marginalizadas, porque defendem um Estado mínimo e preconceituoso que, além de achar que o Estado não deve gastar com negros, acha que a pauta racial não importa; além de achar que o Estado não deve gastar com LGBTQIA+, acha isso uma imoralidade. É uma direita retrógrada que dificulta as discussões, inclusive porque defende o mercado e ataca os LGBTQIA+ enquanto esse mesmo mercado entende que as pautas LGBTQIA+ são boas para ele, porque movimentam a economia. O mercado adora os direitos LGBTQIA+, o estado capitalista ama (fala com ênfase), é maravilhoso que esse povo vire cidadão e possa consumir – porque ser cidadão, pra direita, é ser alguém que consome.
Performamos o tempo todo – não só pessoas trans, todes possuímos identidades fictícias, frágeis, mutáveis. Todes somos personagens e quem diz que é real é mentiroso.
Wellington: Você teve inspiração em outras pessoas e hoje inspira, com suas posições, livros e palestras. O que aconselharia a uma pessoa que está em trânsito de gênero, por onde ela deve caminhar para um processo menos discriminatório?
LC: Sempre aconselho a irmandade. A irmandade travesti é a nossa cura, nossa força, é necessário ter outras pessoas que sejam como você, vivam como você, que saibam do que você está falando porque vivem isso na pele. Esse tipo de cumplicidade vai ser a melhor companhia para qualquer pessoa trans. Então procure contatos na sua cidade, siga nas redes sociais, participe de grupos de movimento social com essa pauta, conheça travestis, troque contatos, para que se sinta acolhida. A partir desse compartilhar de experiências, você vai ganhar forças pra ser quem é e deseja ser. E entenda: todo processo pode ser feito de modos diferentes. E você não precisa fazer algo do dia pra noite – o tempo quem vai dizer é você e como você se sente confortável. A gente tem a ideia de que o processo de transição precisa ter um início, meio e fim, quando, na verdade, todos nós estamos em constante construção daquilo que somos. Ninguém “é”, nós nunca “somos” – nós sempre “estamos sendo”. E o que nós estamos sendo constantemente muda, não importa se você é cis, trans, branco, negro. Quando me assumi negra, aos 18 anos, ainda não era de candomblé; e depois, aos 27 anos, quando assumi o candomblé como minha religião, isso mudou completamente minha experiência com minha negritude. Algumas pessoas dizem: “mas você nasceu negra”. Eu digo: “Não, eu me entendi negra com 18 anos e hoje sou muito mais negra que aos 18”. Então tudo perpassa por processos: tornar-se negra, trans, homem branco – porque mudamos o tempo todo. Você não é mais o mesmo homem branco de quando tinha 20 anos e não sabia que tinhas amigos LGBTQIA+ e hoje você é um homem que fala da sua heterossexualidade, sua branquitude, mas entende pautas do movimento negro, LGBTQIA+, então você exerce outro tipo de branquitude e heterossexualidade. As mudanças são inerentes a todes e não a uma identidade em particular. Todas as identidades são performativas, nenhum de nós é alguém essencialmente. Se você decidiu vir pra essa conversa com esse boné (aponta boné de Wellington), você deve estar querendo passar alguma imagem, talvez queira esconder que é careca.
Wellington: É isso mesmo. Eu me sinto mais bonito de chapéu (risos).
LC: Isso é uma performance. Como eu, que decidi não passar batom hoje. Talvez, se fosse uma entrevista para uma televisão, eu não estaria de cabelo preso, porque poderia querer passar outra performance pra quem ia nos assistir. Nós performamos o tempo todo – não só pessoas trans, todes possuímos identidades fictícias, frágeis, mutáveis. A gente naturaliza a nossa identidade e entende a do outro como uma ficção: “eu sou naturalmente homem branco; a travesti é que é louca e inventou uma personagem pra ela”. Ora, todes somos personagens e quem diz que é real é mentiroso.
André: Você se identifica como mulher, travesti, negra, gorda e do candomblé. Quem é ou quem está sendo a Letícia?
LC: Em alguns grupos étnicos africanos, quando você chama uma pessoa, a pessoa pergunta: “Com quem você quer falar?”, porque se entende que a pessoa não é uma única. Alguns teóricos contemporâneos, como Stuart Hall, falam de identidade fragmentada e fazem uma crítica à ideia de sermos uma única pessoa. O Mário de Sá-Carneiro (poeta português), diz “Eu não sou eu nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte de tédio, que vai de mim para o Outro”. Então existem inúmeras travessias que são realizadas. Eu estou em tantos lugares e esses lugares dizem muito de mim, mas não o tempo todo, porque há momentos em que não sou de candomblé, não sou negra, não sou travesti, sou apenas uma mulher de 30 anos bebendo com amigues e, ali, a gente só quer saber de encher a cara e ficar louca. Então “quem é você” talvez seja uma das perguntas mais ingênuas da nossa sociedade ocidental, que busca incessantemente uma construção identitária única – essa busca insana, inconclusa. A gente precisa assumir a incompletude e entender que somos diversas, plurais. O que a gente pode fazer é juntar esses caquinhos e tentar construir uma imagem, que é sempre uma miragem, uma projeção do que queremos ser naquele momento. Tem um meme que eu adoro que diz: “Eu gostei da sua personalidade”, “Óbvio, eu fiz ela especialmente pra você” (risos).
Wellington: Com toda essa consciência de trânsito e incompletude, você se sente uma pessoa feliz?
LC: Sim, muito! A felicidade é um dever ancestral. Nós, do candomblé, cultuamos a felicidade. Não há casa de candomblé triste, a tristeza é um contra-axé. E não se trata de não viver a dor, até porque esses maniqueísmos não pertencem ao candomblé. Nós não esperamos uma vida só de dor, ou só de alegria, nem só situada entre esses dois polos. Devemos à ancestralidade viver a alegria no presente e construir a alegria para as próximas gerações. Então sou uma mulher feliz, que cultua a alegria, crê no futuro e acredita, inclusive, que nosso passado não é triste, é também feliz.
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Publicado na Revestrés#49. Compre esta edição avulsa e receba em qualquer lugar do Brasil.
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