Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Luana Sena, Maurício Pokemon, Samária Andrade, Wellington Soares e Douglas Machado (Documentarista, convidado).

Texto e edição: Samária Andrade. Fotos: André Gonçalves e Maurício Pokemon.

Ele chega silencioso e vai ocupar uma cadeira quase no fim do auditório. Vinha do aeroporto e carregava mochila e uma pequena mala de rodinhas. Uma das maiores fortunas do Brasil (9º maior bilionário do país, segundo a revista americana Forbes), João Moreira Salles anda sem seguranças e veste um jeans e uma camisa polo. Mesmo discreta, sua chegada é logo denunciada pelos olhares dos próprios colegas de trabalho, jornalistas da Revista piauí, que já participavam desde o dia anterior da Caravana piauí – evento que tem percorrido o Brasil disposto a discutir o jornalismo – tudo organizado, mas sem pompas, como João recomenda. 

Era uma sexta-feira, 24 de novembro. Em Teresina a Caravana piauí tem parceria com revista Revestrés e UESPI – Universidade Estadual do Piauí. Além do time de jornalistas, o fundador e editor da revista quis estar presente no estado que dá nome à publicação. Para isso enfrentou uma maratona de voos, vindo de Amsterdã, na Holanda, onde participava de compromissos de lançamento de No Intenso Agora, seu mais novo filme.  

Foto: Maurício Pokemon

Vamos até ele e nos apresentamos. João arruma os óculos de aro muito fino e dourado, como se quisesse ver melhor seus interlocutores. E nos enche de perguntas: como a Revestrés consegue anunciantes? Quantos estudantes de jornalismo há nas universidades do Piauí? Onde trabalham? Era ele o entrevistador, interrompido somente por uma jovem estudante, que passa a entrevistá-lo. O solícito João a atende de imediato. Ali se desfazia a imagem um tanto fria e austera que guardávamos do editor. Em novembro de 2014, eu e André, fomos ao primeiro Festival piauí de Jornalismo, em São Paulo, e tentamos abordá-lo num dos intervalos das palestras. Bastou um gesto de mão, sinalizando que parássemos, e ele nos manteve a distância. Até então, nunca mais havíamos tentado um novo contato. 

O criador da Revista piauí (2006) e documentarista com filmes premiados no mundo é formado em Economia, mas diz que até os 20 anos não sabia o que queria fazer da vida. Convidado pelo irmão, cineasta Walther Salles (Central do BrasilTerra EstrangeiraDiários de Motocicleta), aproxima-se do cinema, primeiro como roteirista e depois como diretor. Em 1987, os dois irmãos fundam a produtora VideoFilmes, que acaba produzindo importantes longas do cinema brasileiro. Ainda assim João não costuma se definir como cineasta, aceita ser chamado de documentarista e já disse, em entrevistas, se sentir mais à vontade entre os amigos jornalistas. Não é de se duvidar. Embora tenha chegado no segundo dia ao evento na capital do Piauí, sua presença era sentida desde a tarde anterior. Os companheiros de revista se referiam a João entre a admiração e a camaradagem. 

No encerramento das atividades em Teresina, ele participa de uma conversa estritamente cronometrada, mediada por Américo Abreu, professor da UESPI. Os temas passam pela criação da piauí: “Eu queria ler uma revista com texto narrativo, grandes reportagens, experimentações, e elas tinham desaparecido do jornalismo brasileiro”; e a origem do nome da publicação: “Piauí é uma palavra sonora e é um lugar não mapeado – como as pautas que precisam ser feitas e ninguém tá cobrindo”. João também conta que constatou que a piauí terminaria por cumprir uma função por ele não imaginada: qualificar o jornalismo e estimular jovens jornalistas. Há menos pretensão e mais senso de responsabilidade em sua conclusão. No bate-papo, o editor vai desfiando suas crenças e receios. Diz que quando toda a imprensa está disputando uma informação – como em grande parte das matérias políticas atuais – a sutileza se perde, e lamenta que funções importantes no jornalismo estejam sendo ocupadas por gente muito nova “mais por ser barato e menos pela capacidade”. Por fim, redime a todos ao confessar sua técnica para ler os textos mais longos da piauí: “Eu paro na capitular e depois retorno”. Ufa! 

No final, ele respondeu as perguntas do auditório e recebeu estudantes para fotos quase intermináveis. Perguntamos a Mariana Faria, jornalista da piauí, se ele gostaria de encerrar os atendimentos. Ela sorriu: “se eu interromper, ele me mata”, revelando a predileção do editor, nessas oportunidades, pelo contato pessoal. Ele não usa redes sociais e raramente recorre ao telefone ou e-mail.  

Douglas Machado, que coordena a programação do Cinemas Teresina onde No Intenso Agora foi exibido, trazia um cartaz do filme para João autografar. Na capital do Piauí, o longa reuniu um público de apenas 20 pessoas em uma semana de exibição. Mas essa não era a pauta da animada conversa que os dois documentaristas travavam. No dia seguinte, quando entrevistamos João e levamos conosco perguntas feitas por Douglas, ele nos conta: saíra triste da Holanda, onde, acredita, ninguém havia entendido seu filme e, ao conversar com Douglas, achou-se compreendido: “Essas coisas meio que abatem a gente. Então eu fiquei feliz por encontrar, em Teresina, alguém que percebeu exatamente o filme que eu fiz”. 

Mas se os filmes e a revista lhe trazem a riqueza de histórias para contar, a fortuna financeira vem dos negócios da família, especialmente banco (Itaú Unibanco) e mineração. Aos 55 anos, João Moreira Salles é o filho caçula de Walther e Elisa Moreira Salles, segunda esposa de Walther. Os irmãos Salles, além de João e Walther Salles Júnior, são também Pedro (presidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco) e Fernando (sócio da editora Companhia das Letras, filho do primeiro casamento de Walther). Apesar da simplicidade de João, os irmãos cresceram em meio ao luxo. Além de empresário, o pai foi Ministro da Fazenda e Embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Elizinha aparecia em lista das mulheres mais bem vestidas do Brasil e era citada como “ícone de estilo” e “uma das poucas brasileiras a ter renome mundial no jet set”, segundo a revista Vogue. Dizia-se que Elizinha recebia tão bem que suas recepções só eram comparadas com as do casal Kennedy. O sucesso social e as bajulações não lhe fizeram abrir mão do jeito discreto e elegante. A casa que mantiveram na Gávea, Rio de Janeiro, transformada em Instituto Moreira Salles desde 1999, com projeto arquitetônico de Olavo Redig e paisagismo de Burle Marx, e decorada com obras de arte do mundo, foi cenário de festas memoráveis, reunindo notáveis da cultura, intelectualidade e política. Essa casa, de onde João sairia aos 20 anos, é quase outro personagem no filme Santiago (2006), que o documentarista produziu, sobre o mordomo da família.     

No longa mais recente, mais ensaio que documentário, João trabalha com imagens de arquivo – são cenas caseiras de Elizinha numa viagem de turismo à China, em 1966, e imagens de movimentos de 1968: maio em Paris; a Primavera de Praga, na antiga Tchecoslováquia; e, em menor medida, manifestações no Brasil. O cruzamento de histórias aparentemente desencontradas na verdade quer discutir questões vitais, como a capacidade de ser feliz, a perda dessa felicidade e a crença do documentarista de que o caminho é pela reinvenção e não pela insistência em um momento que jamais se repetirá. “O filme não é sobre 68, não é sobre questão política, isso é só um álibi pra discutir questões existenciais”. Ele chama os momentos de extrema alegria de “no intenso” e, contra a nostalgia, que paralisa, aposta em seguir em frente, testando novos intensos. O filme vem sendo chamado pela crítica desde obra magistral até visão pessimista sobre a vida ou sobre os movimentos sociais – devido a sua aparente descrença nos resultados de manifestações que se tornaram clássicas, como maio de 68.  

Seja como for, No Intenso tem tentado cumprir a provocação de lançar a pergunta: qual o nosso (seu) no intenso? Ele existiu/existirá? Como sobreviver a ele? À margem do longa, o suicídio de Elizinha, em 1988, aos 56 anos, faz supor que o intenso da mãe de João esteve nas décadas de 60 e 70 e nas recepções da casa da Gávea. João acredita que também estavam na viagem à China, onde uma curiosa Elizinha tanto filma como se deixa filmar descontraidamente: “Minha mãe foi feliz na China. E depois foi ficando cada vez mais triste” – conclui. Da experiência feliz, Elizinha publicaria, nas revistas Vogue americana (abril de 1967) e O Cruzeiro (setembro de 1967) o texto “Uma brasileira na China”. Trechos desse texto estão no filme do filho.    

Reservado na vida pessoal, João é casado com Branca Vianna, linguista, intérprete e professora da PUC – Rio de Janeiro. Em março de 2017, o casal lançou o Instituto Serrapilheira, primeira entidade privada do Brasil dedicada ao fomento de pesquisa e à divulgação científica, talvez seu próximo no intenso. Como nos contou, João tem planos de deixar a piauí. Parece disposto a cumprir o que deduziu fazendo seu filme: contra a paralisia do aparente sucesso, a necessidade de reinventar-se. 

Após a palestra, ele sai para jantar com os jornalistas da piauí e dispensa o motorista que colocamos a sua disposição. Voltam ao hotel de über. Pela manhã, acorda por volta de 6h e vai a pé, do Hotel Uchoa, até o parque Poticabana, onde mantém sua rotina de exercícios com uma corrida matinal. No Rio de Janeiro, essa atividade acontece em Copacabana. “Eu adorei o parque de vocês!”. Antes da entrevista, ele já estava de malas prontas e, enquanto conversamos, pede um suco de cajá que havia experimentado no dia anterior – “Muito bom esse suco!”. Arriscamos pensar que, ainda que rápido, João foi feliz no Piauí. 

A fala mansa, o humor sutil, o modo como constantemente arruma o cabelo com a ponta dos dedos – tudo parece se combinar ao pensamento engenhoso na elaboração das respostas. Para Revestrés João falou de política, de sua preocupação com o Brasil, dos planos e sobre o que fazer com a banalidade da vida: “O intenso passa, entende? Aí você volta para o dia a dia, que é a maior parte da vida, e é aí que você tem que inventar maneiras de ser feliz”.

André – No início do filme No Intenso Agora, ao mostrar a sequência de uma mãe, uma criança e uma babá, você diz: “nem sempre a gente sabe o que está filmando”. Com a tecnologia que temos hoje, pessoas de todas as classes sociais estão sempre gravando alguma coisa. É possível avaliar o que a infinidade de imagens produzidas poderá revelar sobre o Brasil no futuro? 

João Moreira Salles – Essa frase na verdade não é minha, é do Chris Marker (documentarista), que eu tomei de empréstimo e ela se tornou importante pra mim desde o meu filme anterior, Santiago. Eu rodei Santiago, tentei montar e não consegui. E passaram-se 13 anos até que eu voltasse ao material e percebesse coisas que não via antes. Eu fracassei na primeira tentativa de montagem porque não me dei conta de que a única verdade do material estava na relação que se estabeleceu entre nós  durante os dias de filmagem, que era uma relação de afeto, mas também de poder, porque eu era o filho do patrão e, ele, o empregado. O filme só se tornou possível quando isso veio à tona, quando percebi que eu também era personagem do filme. No Intenso Agora traz essa lição para a análise do material. O filme é sobre várias coisas, mas é também sobre a natureza das imagens de arquivo: por que elas são como são? Como imagens filmadas numa democracia são diferentes das filmadas num regime totalitário? Por que as imagens da França, em maio de 68, são diferentes das imagens da Tchecoslováquia, em agosto? Por que as imagens em Paris estão próximas da ação e, em Praga, estão por trás de cortinas? Isso não está na cabeça de quem filma, naquele momento, mas é possível, depois de um tempo e entendendo as circunstâncias em que as imagens foram produzidas, fazer inferências a respeito do contexto político em que elas foram feitas. Isso, hoje, é o que me interessa: uma análise política das imagens. Mas é fundamental alguma distância entre o momento da filmagem e o momento da reflexão. É difícil você estar no meio do furacão e saber o que as imagens revelam e você não está vendo. E há problemas em relação às imagens contemporâneas: eu não sei quanto tempo elas vão durar. A cada novo suporte em que a informação é transmitida esse suporte dura menos! Muitas imagens de momentos intensos, como 2013 no Brasil, foram feitas de celular, e eu não sei se teremos acesso a elas dentro de dez anos. O que as imagens de 2013 poderão revelar que ainda não nos demos conta? Esse vai ser um exercício interessante, que eu me disponho a fazer. 

Samária – Em entrevista ao site do Estadão (São Paulo), falando sobre No Intenso Agora e discutindo um quase inevitável paralelo entre maio de 1968 e junho de 2013, você diz sobre o momento político atual: “Hoje a esquerda embarca numa espécie de sonho regressivo. As utopias estão no passado. Há alguma coisa nostálgica aí, e como tento mostrar no filme, acho que toda nostalgia é perigosa porque é uma tentativa de recuperar o irrecuperável”. Ao fazer essa avaliação, você não está sendo muito pessimista ou severo? 

A turma do Vale do Silício, que evidentemente não é de esquerda, está atrás de ficar rico. E enquanto não se apresentar uma proposta alternativa, são esses caras que estão definindo nosso futuro.

JMS – Eu acho que não. Essa é a cilada da esquerda nesse momento: ela não consegue mais imaginar o futuro. E o futuro é distópico: ou é o futuro do aquecimento global ou o futuro de uma sociedade de consumo que se devora. A esquerda não tem um projeto alternativo de sociedade. Quem tem projeto de futuro hoje é a direita, e isso é curioso porque esse sempre foi o papel da esquerda: oferecer alternativas de sociedade. Então as utopias da esquerda hoje são regressivas – é difícil até definir “esquerda” porque são muitas, né? – mas são utopias de pequenas comunidades que se autorregulam. Esses grandes movimentos que convulsionaram a sociedade nos últimos dez anos – Occupy, Indignados, 2013 – têm um perfume anarquista, são contra o Estado, contra a política representativa, contra partidos políticos, buscam se organizar em assembleias, com uma sociedade mais horizontal, sem lideranças, com decisões tomadas por consenso. Eu acho que essas coisas funcionam em comunidades pequenas, então é um pouco o sonho de voltar à aldeia indígena, e eu sou daqueles que acredita no Estado, na necessidade de estruturas verticais, que coordenem as tensões sociais. Acho que quando essas estruturas se desfazem, o resultado não é uma comunidade hippie; é Hobbes, não é Rousseau; é lobo contra lobo, não é o bom primitivo. E eu acho que a esquerda não tá pensando em como organizar uma sociedade complexa, tá querendo organizar sociedades simples, e essas não existem mais! Como você vai pensar numa organização autogerida numa sociedade conectada, globalizada, com demandas e problemas tão graves a serem resolvidos?  

Wellington – Você afirma que a direita tem um projeto. Que projeto é esse? 

JMS – Um projeto de mercado, de organizar a sociedade pelas leis da oferta e demanda, um projeto tecnológico. Quem tá sonhando o futuro? São os tecnólogos que estão pensando em tudo! Zuckerberg introduziu a ideia de salário universal, porque chegou à conclusão de que, daqui a pouco, não vai ter mais trabalho, e como as pessoas vão viver? Vão receber uma renda, não pelo trabalho que fazem, mas pelo fato de existirem. É um delírio, mas é uma proposta – uma proposta de futuro. O pessoal do Google está pensando em como resolver a questão da morte, outro tá querendo levar as pessoas pra Marte, tem a inteligência artificial – são projetos, alguns delirantes, outros interessantes, mas são pessoas que estão pensando e construindo o mundo em que a gente vive. Eu tô aqui cercado de celulares, iPad (aponta para nossos aparelhos sobre a mesa) – isso mudou a nossa vida! São novas maneiras de produção, compartilhamento, de se inserir no mercado de trabalho, e são inventadas pela turma do Vale do Silício, que evidentemente não é de esquerda, é gente que está atrás de ficar rico! É uma turma libertária – como eles se chamam –, não querem governo, querem se regular – nesse sentido são também anarquistas. Então, mal ou bem, enquanto não se apresentar uma proposta alternativa, são esses caras que estão definindo nosso futuro (fala com convicção). 

Wellington – A revista piauí surgiu em 2006 fazendo referência a um estado desconhecido, fora do radar – como você já mencionou. Nesses mais de dez anos, o que você, sua equipe ou os leitores da revista já conhecem sobre o Piauí? 

JMS – Menos do que eu gostaria, e nesse sentido a gente falhou. Mas o Piauí, como título da revista, é uma metáfora. A ideia não era tornar o estado do Piauí conhecido, mas tornar conhecidas pautas que passam à margem do jornalismo brasileiro, que não estão no eixo da grande imprensa. Isso eu acho que a gente entrega ao leitor, porque tem coisa que a imprensa do Brasil não cobre e a gente passou a cobrir. Ciências, por exemplo, não fazia parte da grande imprensa e passou a fazer na piauí. Hoje as pessoas sabem que a matemática brasileira é de boa qualidade, que existe um acelerador de partículas, que tem um supercomputador prestes a ser desligado por falta de recursos, sabem da Serra da Capivara… Nós queremos olhar as pautas do Brasil espalhado por aí, que não é a do baiano que teve que ir pro Rio ou São Paulo pra entrar no radar. Acho que a piauí é a única revista que não tem editoria fixa, não é engessada. Quando o Bernardo (Esteves, repórter) faz um perfil do arqueólogo Walter Neves e precisa de muitas páginas (o texto “O Evolucionista” foi publicado com sete páginas, em novembro de 2017), a gente pode garantir essas páginas, porque esse material não tá entrando na seara da economia, ou do esporte, ou da política. A revista é muito flexível, não tem uma espinha dorsal clara, tem algumas seções que a ancoram: Chegada, Despedida, Esquina e pronto! O miolo é uma sanfona, pode crescer, diminuir, pode ter um tema só na revista inteira! Mas, voltando ao Piauí, acho que esse movimento da Caravana, iniciado pela Daniela Pinheiro, que não está mais na revista, de ir a lugares que são mais periféricos em relação ao eixão do Brasil, é uma excelente iniciativa que a gente já deveria ter começado antes. Eu tenho impressão que a gente tá começando a remediar esse problema agora, no ano 11 da revista. 

Foto: André Gonçalves

Douglas – Como nasce uma capa da piauí? 

JMS – Elas têm duas fases. Nos sete ou oito primeiros anos as capas eram escolhidas simplesmente porque pareciam intrigantes, bonitas, surpreendentes, mas não tinham uma pegada crítica, não falavam do mundo nem do país, e eram completamente desconectadas da revista. A partir da chegada do Fernando de Barros (diretor de redação) as capas começaram a ser mais quentes e passaram a chamar a atenção porque se tornaram bem-humoradas, sarcásticas, agudas, sobre o momento contemporâneo. Isso aconteceu um pouco por acaso: há uns três anos a gente publicou uma capa de um desenho que encontrou na internet, de uma artista gráfica russa, Nádia Khuzina. Inspirada naquela famosa foto do (Leonid) Brejnev beijando o (Erich) Honecker, Nádia fez o (Vladimir) Putin beijando o (Edward) Snowden. Nós entramos em contato com ela e publicamos essa capa (piauí, agosto de 2013). Depois fizemos muitas capas ilustradas por Nádia. E quando começou a articulação pra afastar Dilma, eu tive a ideia de fazer o Cunha beijando a Dilma. Aí o Fernando disse: vamos fazer o Cunha beijando o Temer, porque é claro que essa é a conspiração! E fizemos (piauí, janeiro de 2016). E aquela foi a primeira capa que dizia alguma coisa, do ponto de vista da revista, sobre o que estava acontecendo no país, e fez um sucesso danado! (fala com entusiasmo). A partir daquele momento começamos a pensar em comentar a atualidade brasileira ou mundial por meio da capa. E funciona da seguinte maneira: uma semana antes do fechamento, eu e Fernando discutimos umas ideias e conversamos com a diretora de arte da revista, Cecília Marra, que nesse momento mora na Islândia, e passamos pra Nádia, a russa que foi para os Estados Unidos e se casou com um americano, jogador profissional de poker – olha que loucura! Tô te falando – esses caras do Silício tão inventando o nosso mundo, hein? Hoje tudo é possível e é facílimo. Então a capista manda três ou quatro esboços e a gente vai refinando e escolhe a capa. Para a próxima edição (dezembro de 2017) estamos pensando em fazer o Lula e o Bolsonaro, vestidos de Papai Noel, tentando entrar pela mesma chaminé. Bolsonaro com um saco cheio de metralhadoras e Lula com dinheiro pra empresários e tal (risos), mas ainda não sei se será essa a capa. 

(A capa da piauí de dezembro traz Bolsonaro e Lula tentando entrar na chaminé, vestidos de Papai Noel. No saco de Bolsonaro há metralhadoras e, no saco de Lula, ao invés de dinheiro, pequenos pacotes de presentes. Em um dos pacotes está escrito: BNDES). 

No vídeo você tem tudo o que o corpo do Lula diz, a linguagem gestual, a coisa brasileira de tocar, o modo como, ao receber a notícia de que era o presidente eleito, abraça Palocci com afeto e Zé Dirceu formalmente.

Luana – Contar boas histórias em texto e contar boas histórias em vídeo: qual a diferença de trabalhar com a imagem ou com a palavra? 

JMS – Meu ponto de vista é que, em termos de procedimento, não há diferença nenhuma, é só uma questão de que instrumento eu tô usando, porque a minha maneira de filmar e de contar as histórias na piauí dependem do acesso ao personagem e do tempo de convivência com esse personagem. Dois exemplos: fiz o documentário sobre Lula, na campanha de 2002 (Entreatos), que só existe porque eu tenho acesso. Durante 40 dias eu estive muito próximo dele. Para a piauí eu escrevi um perfil de Fernando Henrique Cardoso e foi rigorosamente a mesma coisa: eu pedi pra viajar com ele por uma semana, tava dentro do carro dele, pegava o mesmo vôo, me sentava ao lado. É nas horas de tédio que as pessoas se desarmam e dizem coisas que não diriam numa situação mais formal de entrevista. Então, pra mim, a maneira de contar a história é a mesma. Agora, tem coisas que se prestam mais a serem filmadas e outras que se prestam mais a serem escritas. No caso de Lula, eu poderia ter escrito uma reportagem, mas seria muito mais pobre, porque no vídeo você tem tudo o que o corpo do Lula diz, a linguagem gestual, a coisa brasileira de tocar, encostar, a maneira como ele se relaciona com as pessoas, o modo como, ao receber a notícia de que era o presidente eleito do país, abraça o Palocci com afeto e o Zé Dirceu formalmente. Tudo isso é muito visual e eu teria que despender uma energia imensa pra conseguir a mesma potência na escrita. Por outro lado, um perfil como o que eu fiz, do matemático Artur Ávila, que quatro anos depois ganhou a Medalha Fields, seria impossível de ser filmado. Tudo o que Artur faz está dentro da cabeça dele, é abstrato, não tem como filmar. O Artur trabalhando é ele deitado na cama olhando para o teto. Como você faz um filme com isso? Então eu escrevi. 

Wellington – Quando se fala que a piauí pratica um jornalismo literário você parece se incomodar. Por quê?   

JMS – Porque eu acho pretensioso. Eu falo em jornalismo narrativo, em contar boas histórias. 

Samária – Você percebe a influência que exerce na equipe da revista? Como lida com isso?   

JMS – Não (repete a palavra “não” seis vezes, antes que eu conclua a pergunta). Quando comecei a piauí, em 2006, tinha terminado Santiago, e ficava na revista o dia todo, era meu batente, então tinha uma relação muito próxima com a redação. Aí, em 2011, fui para os Estados Unidos e passei seis meses lecionando produção audiovisual, e foi quando comecei a pensar em No Intenso Agora. Quando voltei, já comecei a trabalhar no filme e isso foi me afastando um pouco da redação. Nos últimos cinco anos fiquei muito menos presente e a redação hoje tem muito mais a cara do Fernando. Eu tô voltando pra revista, mas a minha intenção é me afastar inteiramente, a ponto de não ser sequer sócio. Quero transformá-la numa publicação independente, que tenha um fundo patrimonial que a mantenha, e um grupo de curadores, que elejam o diretor de redação sem nenhuma ingerência minha. Eu acho que, do jeito que a banda vai, o jornalismo independente vai desaparecer. É muito difícil que o modelo de negócios atual consiga sustentar os jornais, as revistas, e eu não sei o que vem depois disso, não sei se a gente vai ficar nas mãos do Google, do Facebook, se vai depender desses caras pra ter as nossas notícias, então eu quero assegurar que, pelo menos, um veículo de comunicação possa continuar a existir sem depender de publicidade, com independência, não atrelado a grande grupo econômico, e que seja um local em que as pessoas saibam que há informação confiável. Acho que isso é um bem para o Brasil.  

Samária – E isso é possível de pôr em prática no Brasil de hoje? 

JMS – Ontem mesmo eu estava conversando com um advogado pra tratar disso. Nos Estados Unidos têm algumas iniciativas assim. Uma delas, que é um pouco a nossa inspiração, se chama ProPublica. Eles têm uma redação poderosa, com 30 ou 40 jornalistas, só com jornalismo investigativo, sustentados por uma fundação e em parceria com grandes veículos de comunicação, onde as reportagens são publicadas. Eu quero que a piauí vire um pouco isso. Então minha ideia é que, a partir de 2019, eu me afaste da revista e ela se torne realmente independente. E eu? Aí eu já não sei o que vou fazer da vida.  

(Com sede em Nova York, a ProPublica se define como organização sem fins lucrativos e com uma redação independente que produz jornalismo investigativo de interesse público. Em 2010 tornou-se o primeiro portal de notícias a vencer um Prêmio Pulitzer, com matéria publicada na The New York Times Magazine. As reportagens da ProPublica, produzidas por sua equipe de jornalistas, são repassadas a “parceiros” que também as publicam. Entre eles, mais de 50 veículos de comunicação, como CNN, USA Today, New York Times, Los Angeles Times, Washington Post, Newsweek).    

Wellington – O Brasil vive hoje uma grande polarização entre esquerda e direita, ou, mais especificamente, em relação ao momento político eleitoral, uma polarização entre Lula e Bolsonaro – como vocês colocam na própria capa da revista (dezembro de 2017). A piauí está de que lado nesse cenário? 

Lula faz parte de um projeto civilizatório e Bolsonaro não, ele está fora do tabuleiro de uma sociedade democrática. Voto em qualquer pessoa que seja contra o Bolsonaro, o que não significa que eu ache que o Lula seja a solução para o Brasil.

JMS – A piauí nunca fica com ninguém, não toma partido, a nossa posição é de ceticismo em relação a tudo. Agora, falando sem o chapéu da piauí, mas como cidadão, eu acho que Lula faz parte de um projeto civilizatório e Bolsonaro não faz, ele está fora do tabuleiro de uma sociedade democrática. Portanto, eu voto em qualquer pessoa que seja contra o Bolsonaro, o que não significa que eu ache que o Lula seja a solução para o Brasil. O Bolsonaro é um retrocesso civilizatório. Lula também é retrocesso – dentro das regras da democracia, mas um retrocesso. Acho que o desmanche do Brasil e das esquerdas deve ser jogado no colo do PT e seu projeto de poder, que foi um fracasso. Se chegarmos a um cenário entre Lula e Bolsonaro, eu vou à urna e vou cravar Lula, mas essa não é minha opção, você é quem está me colocando nessa sinuca de bico. E essa não é a posição da piauí, é minha. 

Wellington – Não sou eu, mas a provável conjuntura do país… 

JMS – Acho que é muito cedo para saber disso e eu tenho esperança que Bolsonaro não seja viável. Mas eu achava que Trump não era viável e hoje o homem é presidente dos Estados Unidos, né? Mas no Brasil temos experiências de personagens que saem na frente e se desmancham. Estou muito apreensivo porque a eleição de 18 pode ser a mais importante da minha vida – a gente fala isso e parece retórica, mas é real. Dependendo da escolha que a gente faça, isso pode implicar em consequências difíceis de reverter. Um Bolsonaro, por exemplo, é jogar a tolha e acabou, o Brasil volta 50 anos e não tem mais jeito, só nossos bisnetos consertariam o estrago, que já é imenso. Mas 2018 é crucial. Tem que ter gente nova! A França tem um presidente de 40 anos; Canadá, tem um primeiro-ministro de pouco mais de 40; Obama tinha 43 quando foi eleito; o primeiro-ministro da Inglaterra tinha 41 anos. Quem são os nomes na faixa dos 40 anos no Brasil? Não é possível que a gente tenha que voltar aos homens de 70 anos?! (fala com indignação). Nos Estados Unidos eleger Trump foi uma tragédia, mas as pessoas resolveram se engajar no processo político e depois disso já foram eleitos uma transgênero, um negro imigrante, uma mulher hispânica. Eu acho que o erro de 13 foi que as pessoas não se engajaram no processo político. 

Samária – Vladimir Safatle (filósofo) diz que 2013 foi uma grande oportunidade perdida. 

JMS – E foi mesmo. As pessoas têm que entrar nos partidos, concorrer, disputar todos os cargos, aí sim, você começa a mudar o país. 

Wellington – Você já pensou em se candidatar? 

JMS – Eu não! Eu seria alguém que vem de fora da política e acho isso perigosíssimo (repete três vezes). É como Luciano Huck: eu vou me basear em quê para saber se ele é um bom candidato? No que ele diz no programa de TV? Ele pode até ser boa pessoa, mas não me interessa. Não acredito em gente que caia de paraquedas no mundo político. Eu acredito em gente que tenha um serviço pelo Estado, acredito em política institucional. 

André – No evento de inauguração do Instituto Moreira Salles, em São Paulo (setembro de 2017), você falou que riquezas privadas implicam no compromisso moral da criação de bens públicos, e citou seu pai, que trouxe dos Estados Unidos a noção de que o mecenato constitui não uma possibilidade, mas um dever, especialmente num país desigual como o nosso. Como você vê o mecenato no Brasil hoje? As pessoas em condição de exercê-lo estão cumprindo seu papel?    

JMS – Acho que o mecenato é uma cultura ainda a ser criada no Brasil, mas está muito melhor do que já foi. Evidentemente o mecenato não conserta as questões da desigualdade brasileira, o correto é ter políticas de governo e melhor distribuição de renda, o mecenato é um esparadrapo, mas, de toda maneira, é importante que as pessoas que deram a sorte de enriquecer no Brasil e de ficar do lado do privilégio, nessa loteria, tenham de fato essa obrigação, que se torna maior num país injusto como o nosso. Isso não era uma consciência clara nas elites brasileiras há 20 anos e acho que começa a se tornar, até por pressão social. Já temos institutos, fundações, associações e iniciativas progressistas que fortalecem a sociedade civil, com apoio a movimentos de direitos humanos, minorias. Essa minha fala no IMS teve endereço certo, entende? (faz pausa e sorri). Eu não falei isso à toa, falei porque tinha muita gente na plateia com condição de contribuir e com obrigação de fazer mais do que faz.  

 Eu sou branco, se entrar numa favela do Rio de Janeiro e pedir pra filmar, vou conseguir autorização. Mas eu, provavelmente, não deixaria que as pessoas da comunidade filmassem a minha família

Samária – O fato de você vir de uma família muito rica lhe permite fazer algumas coisas, mas, por outro lado, pode lhe colocar em uma situação em que as pessoas desconfiam de suas intenções. O que você pensa sobre isso?  

JMS – Por que Santiago foi um filme importante pra mim? Porque é um filme em que eu assumo a primeira pessoa e passo a filmar o meu mundo. Hoje ele é um filme que me incomoda, por razões que depois ficaram claras pra mim. Depois de Santiago, ficou progressivamente incômodo, para mim, filmar a desigualdade social, ir no morro Santa Marta e filmar o tráfico, como eu fiz em Notícias de uma Guerra Particular. Eu diria que 90% dos filmes brasileiros são feitos por pessoas de classe média ou alta que vão filmar os pobres do Brasil. Os documentários geralmente são sobre miséria, pobreza, violência, favela, fome. A gente conhece bem esses filmes e alguns são excepcionais e precisam continuar sendo feitos. Mas a mim eles começaram a incomodar porque eu sei que há algo da desigualdade social que me permite fazer esses filmes: eu sou branco, se entrar numa favela do Rio de Janeiro e pedir pra filmar, vou conseguir autorização. Mas eu, provavelmente, não deixaria que as pessoas da comunidade filmassem a minha família, a minha vida. Então comecei a perceber que fazia esses filmes usando do meu privilégio de poder fazer. Em Santiago fiz um filme sobre o meu mundo, que é um mundo que não se deixa filmar. As classes dominantes brasileiras se protegem, são opacas, vivem atrás de muros, têm câmeras de segurança. Então eu cheguei à conclusão que o que eu posso dar para o documentário brasileiro é tratar do meu mundo e colocá-lo para que as pessoas possam ver, avaliar, criticar. Eu tomei muita pancada em Santiago, e algumas merecidas. É mais fácil você fazer um filme sobre violência no Rio de Janeiro, porque você tá do lado certo, entende? Você fica do lado do bem, vira um paladino da justiça e todo mundo te admira. Já quando você fala do mundo do privilégio, que tá na raiz da desigualdade brasileira, você abre a guarda. Já recebi críticas, inclusive da seguinte maneira: ‘ele tá se expondo pra dizer que é corajoso e, portanto, isso o exime’. É um jogo de espelhos infinito e tem alguma coisa verdadeira nisso. Mas acho que a minha contribuição é fazer um filme que mostre os privilegiados, porque isso eu posso contar. No Intenso Agora tem um pouco disso, tem a minha mãe, que era uma mulher conservadora, do privilégio brasileiro. Hoje eu precisaria ter uma razão muito forte para voltar a fazer filmes em que vou a lugares em que as pessoas têm muito pouco, são muito carentes. E isso não é uma regra para todo mundo, é um incômodo meu. 

André – Vazante, de Daniela Thomas, que retrata a escravidão em Minas Gerais no século 19, foi criticado por espectadores negros que viram, no filme, um discurso mantenedor da opressão racial, uma visão de brancos sobre escravos, em especial pela forma como parte dos escravos é retratada: sem nome e sem subjetividades. Essas críticas foram justas?   

JMS – Eu acho que a gente vive num momento tão assertivo, em que todo mundo tem uma opinião a dar sobre qualquer assunto, e algumas opiniões são importantes, outras são superficiais, outras são puramente agressivas. Eu acho que, se por um lado, há elementos autoritários e antidemocráticos quando dizem “você não pode mais falar desse assunto porque você não tem legitimidade pra falar desse assunto” – o que me parece uma tragédia –, por outro, é um momento de grande afirmação de identidade de pessoas e grupos que nunca tiveram poder de fala no Brasil, e isso também é muito importante. Acho que parte disso se deve a 2013. Não é que o movimento LGBT ou negro não falassem antes, mas não falavam com a assertividade que falam hoje. Daniela Thomas ou eu não somos as únicas pessoas na mira. Se vocês fizerem uma revista sobre a condição negra, vão levar pancada, vão dizer que é um grupo de brancos falando sobre negros. Você sabe que, curiosamente, eu só me dei conta disso depois do que ocorreu com Daniela. Pelo fato de eu ter tomado a decisão de falar mais do meu mundo, eu meio que me coloquei no lugar de falar daquilo que tenho legitimidade para falar. Não sei se hoje um filme como Notícias de uma Guerra Particular (1999), que teve grande repercussão, seria bem recebido. Talvez me questionassem: quem é você pra fazer um filme sobre violência na favela e reafirmar velhos estereótipos de que na favela só há violência, não tem cultura, só menino com arma? Então mudou a natureza do debate e eu acho isso saudável. O que não significa que concorde com todos os aspectos dessa discussão, porque acho que tem elementos de fato autoritários.   

Foto: Maurício Pokemon

Douglas – No Intenso Agora é dedicado a Eduardo Coutinho. O filme Últimas Conversas (2015), que você finalizou, foi o último filme de Coutinho (o diretor morreu antes de finalizar o filme, concluído por Salles). Todavia, parece-me que existe uma ponte entre essas duas obras, não apenas pela referência a Coutinho e o convívio e parceria que vocês tiveram ao longo dos anos. Percebo entre os dois filmes uma semelhança na alegria de viver a intensidade do agora. Isso está presente no diálogo estabelecido com os adolescentes e, em igual tempo, nos jovens de 1968. O que há do Últimas Conversas em No Intenso Agora? 

JMS – Eu fui a tantos lugares com No Intenso e a primeira pessoa a fazer essa relação foi o Douglas (fala quase em suspiro). Coutinho tá presente em No Intenso do início ao fim. A reflexão sobre porque as pessoas filmam como filmam é uma questão do Coutinho, e isso nunca teria ficado vivo na minha consciência se não fossem os doze anos de convivência que tive com ele. A última vez que estive com Coutinho, dois dias antes dele falecer, foi num estúdio de gravação em que, ao lado de Eduardo Escorel, Zé Carlos Avelar e com a mediação do Carlinhos Matos, ele gravou a faixa comentada de Cabra Marcado Para Morrer (1984). Eu tava lá só pra acompanhar, fiquei em silêncio. E tem uma hora que aparece a imagem do líder camponês João Pedro Teixeira, morto, um corpo dilacerado, e o Coutinho comenta “eu fui muito criticado por usar essa imagem no filme, porque queriam uma imagem do líder camponês forte, não derrotado”. Isso me incomoda porque a realidade foi essa: ele morreu violentamente! O uso político dos cadáveres é uma questão que me incomoda. Tem uma sequência de No Intenso só sobre isso e isso é Coutinho na veia! (fala com empolgação). Aquela frase que eu cito, que a cota da vida é a passagem do tempo, meu amigo, isso é Coutinho! Então, em No Intenso, toda a reflexão que faço sobre cinema documental, é uma reflexão a partir de minha convivência com Coutinho. E é verdade que Coutinho parecia desencantado com a vida antes de começar Últimas Conversas, não acreditava mais no trabalho, no cinema, estava doente, a relação com a família era ruim. Ele achava que Últimas Conversas não era um filme possível, saía da filmagem e ia pra redação da piauí derrotado, dizendo “não deu certo, não vai funcionar.” E quando ele morreu e fui ver o material bruto, me surpreendi: como o Coutinho estava feliz! Eu percebi: o no intenso dele era o ato de filmar, o convívio com a equipe, o encontro com os personagens. Naquele momento ele estava vivo, ele era bom, ele tinha força! E o arco do filme mostra isso: no início o Coutinho tá derrotado e no final tá iluminado!  O percurso do Últimas Conversas fez com que Coutinho voltasse a ter fé: no cinema, na vida, na própria potência. E No Intenso Agora é sobre isso: sobre a alegria, a perda da alegria e o que se deve fazer para recuperá-la. Não é sobre 68, não é sobre questão política, isso é só um álibi pra discutir questões existenciais. Fiquei muito feliz do Douglas vir falar comigo ontem sobre como ele interpretou No Intenso, porque vim direto de Amsterdã e lá as pessoas não entenderam o meu filme, queriam uma conexão puramente política entre a experiência da minha mãe, na China, e maio de 68, e isso não existe! Minha mãe não foi militante, não tava a favor da revolução cultural, e a plateia inteira ficou perguntando o que uma história tem a ver com a outra, e não gostou, e essas coisas meio que abatem a gente. O filme tá sendo premiado, tendo uma carreira bacana, mas você traz a última experiência e ela foi traumática. Então, fiquei feliz por encontrar, em Teresina, alguém que percebeu exatamente o filme que eu fiz. Em 68 eles viveram o intenso deles e a questão deles era política; minha mãe viveu o intenso dela na China e a questão dela era estética; Coutinho viveu vários intensos e naquele momento era fazer o filme. E o intenso passa, entende? O filme acaba, maio acaba, a viagem acaba, e aí você volta pra vida cotidiana, para o dia a dia, que é a maior parte da vida, e é aí que você tem que inventar maneiras de ser feliz (faz uma pausa e continua). Quando a gente começa a fazer documentário acha que o importante é um tema – a violência, a eleição.  E acha que o tema resolve tudo, não pensa na forma! Avançando na carreira eu me convenci que o tema é quase secundário, o fundamental é a maneira de contar, e isso pra mim se tornou vital! O mesmo vale para quando eu escrevo: criar uma tensão narrativa, fazer com que a história seja uma boa história, é essencial. Eu acho que na piauí as matérias que realmente dão certo são aquelas sobre assuntos que, para o leitor, são absolutamente desinteressantes, mas ele chega até o final porque foi seduzido pela maneira com que a história foi contada. Aí deu certo!  

O intenso passa, entende? O filme acaba, maio (de 68) acaba, a viagem acaba, e aí você volta pra vida cotidiana, que é a maior parte da vida, e é aí que você tem que inventar maneiras de ser feliz

Luana – Em 2012, quando lançamos Revestrés, eu mandei um e-mail pra você com uma entrevista. Comentei sobre uma pesquisa que havia saído dizendo que os brasileiros estavam lendo mais e você respondeu: “se ainda há gente lendo, há esperança”. E hoje, ainda podemos continuar a ter esperança? 

JMS – Todo botafoguense é otimista (risos), então acho que sim. Tem uma vitalidade que a gente não tá conseguindo ainda identificar nesse momento e ela não tá mais no centro: tá na periferia, tá nas cidades do Brasil e, pretensiosamente, a gente acha que o centro do Brasil é Rio-São Paulo, mas essa vitalidade tá vindo do cinema em Recife, do documentário em Minas, do que eu tô vendo no Piauí, em revistas como Revestrés – não tem uma revista no Rio de Janeiro inquieta dessa maneira! Então tem uma força que vai se manifestar, que tá também na assertividade de movimentos que têm autoestima e exigem o que querem, que tava no Coutinho em Últimas Conversas, em jovens lindos que aparecem no filme: há 20 anos essas pessoas teriam todas o destino de serem empregadas domésticas, pedreiros, e esses meninos querem faculdade, querem ser geólogos, médicos, engenheiros. Ninguém quer mais voltar atrás, tem uma coisa poderosa em curso no Brasil. 

Depois de mais de duas horas de conversa, os jornalistas da piauí já estão no carro em frente ao hotel e buzinam, chamando João e alertando para o risco de perderem o voo. Ele se levanta agitado, pondo a mochila sobre o ombro e pedindo “ei, me esperem!”. Levava o suco de cajá numa pequena garrafa. A última pergunta é uma antiga curiosidade, respondida por ele, a caminho do carro: 

Samária – É você quem responde a seção Carta do Leitor, na piauí? 

JMS – Sou eu mesmo esse desaforado (risos).  

*** 

“Sou eu esse desaforado” 

A seção Cartas, da revista piauí, com comentários de leitores, não é um espaço puramente protocolar ou neutro, como em grande parte dos veículos de comunicação. Tornou-se um espaço lido e discutido. E o sucesso se deve ao tom irônico das respostas. Como nos conta, é o próprio João quem se dedica a responder as cartas. Muitos leitores, afinados com o humor, também entram na galhofa (ou não). 

Veja abaixo alguns exemplos de puro sarcasmo.  

BEIJO NA BOCA 

A capa da edição de piauí_83 é polêmica por natureza. Numa terra onde um simples selinho do jogador Sheik assusta, imaginem um beijaço exposto numa banca de jornal o mês todo. Foi o que aconteceu numa delas, aqui em Bauru, onde encontrei a capa da revista ao contrário. Perguntei o motivo ao jornaleiro e ele disse: “Não aguento ver esse beijo. Ele me incomoda.” Eu mesmo, ao ler a revista numa fila de banco, me vi sendo observado de maneira estranha. 

Portanto, por favor, sejam mais recatados. Ofereçam ao menos uma burca aos leitores e jornaleiros. HENRIQUE PERAZZI DE AQUINO – BAURU/SP 

NOTA DA REDAÇÃO: Cientes do nosso compromisso com os bons modos, optamos este mês por uma capa inocente e primaveril. Informe ao seu jornaleiro que ela foi impressa em tinta perfumada. 

LETRINHA 

Adquiro com frequência a revista piauí nas bancas, mas infelizmente acabo tendo dificuldade em ler os textos, dado o tamanho minúsculo das letras – LÁSARO CÂNDIDO DA CUNHA – BELO HORIZONTE/MG 

NOTA CEGA DA REDAÇÃO: Prezado Lásaro, pedimos desculpas, mas não conseguimos ler sua mensagem até o fechamento desta edição. 

MADE IN BRAZIL 

Prossegui eu na leitura até o trecho em que o jornalista compara os brejeiros comentários de David Brazil à obra-prima de James Joyce. Diria – com certo exagero, é claro – que por alguns instantes desejei a decapitação do tal Kaz – ALEXANDRE MOURA – RIO DE JANEIRO – RJ 

NOTA ESPERANÇOSA DA REDAÇÃO: Nós, que temos que conviver todos os dias com Roberto Kaz, não chegamos a desejar sua decapitação, mas que um tombinho no piso molhado da copa ou uma canelada ardida no canto da mesa nos deixaria bem contentes, ah, isso deixaria.   

Foto: André Gonçalves

As capas

A obra “Beijo Fraterno”, que inspirou as capas de piauí e mostra o líder soviético e o líder alemão se beijando, é de autoria do pintor russo Dmitri Vrubel e foi pintada, junto a outras 106 obras, num pedaço de muro de 1300 metros, em 1990, pouco antes da reunificação das duas Alemanhas. Tornou-se um dos monumentos mais visitados de Berlim e um símbolo do fim da Guerra Fria.  

O muro pintado converteu-se na East Side Gallery, uma galeria de arte ao ar livre. Para fazer sua pintura, Vrubel levou sete dias e assinou sem ler um contrato em que cedia os direitos à galeria. O título “Beijo Fraterno” foi dado por jornais alemães, que interpretaram o desenho à luz dos acontecimentos políticos. Para o autor, o verdadeiro nome da obra é “Deus, ajuda-me a sobreviver a este amor mortal”.

Filmes de João Moreira Salles 

No Intenso Agora – 2017 

Santiago – 2006 

Entreatos – 2004 

Nelson Freire – 2003 

Santa Cruz – 2000 

Notícias de uma guerra particular
(dirigido e escrito em parceria
com Kátia Lund) – 1999 

Futebol (série para TV dirigida em
parceria com Arthur Fontes) – 1998 

Poesia é uma ou duas linhas
e por trás uma imensa paisagem
(curta-metragem) – 1990 

Blues- 1990 

América (TV) – 1989 

China – O Império do Centro
(TV) – 1987 

(Publicado na Revestrés#34 – janeiro – fevereiro de 2018).