Beatriz, meu pai está morto. Foi no último fim de semana. Morto no sábado, sepultado no domingo. De certo modo estava morto já há muito mas não sabia, ou, se sabia, não tinha coragem de cair. Vai ver por isso se segurava na garrafa, talvez a garrafa fosse sua vara de equilíbrio, como aquela que um equilibrista carrega quando caminha sobre a corda bamba. Há muito, Beatriz, eu sabia que meu pai não estava exatamente vivo. Várias vezes vi nos olhos dele que a luz, sabe, aquela luz que a gente vê nos olhos das pessoas, estava apagada. Para ser honesto nunca vi nos olhos do pai qualquer sinal de vida. Você lembra do olhar dele, era oco, você me disse uma vez que sentiu medo na primeira vez que olhou nos olhos de meu pai, que eram olhos de vidro, um vidro opaco, sem reflexo do que estava fora nem sinal de que havia um algo dentro, você disse que ele olhava você como se os olhos dele faltassem nas órbitas, eu lembro bem do seu jeito assustado ao me dizer isso.
Pois agora, Beatriz, meu pai está mesmo morto. Além de não terem luz, agora os olhos do pai estão fechados e nunca mais vão abrir. E eu não sinto nada, Beatriz. Não sinto dor nem sofro. Mas também não sinto alegria. Não sinto vontade de chorar, não sinto saudades, não sinto raiva, não sinto nada. E fico pensando se isso é algo de ruim, a gente aprende que é preciso sentir dor na morte, o papel que se espera que a gente represente na morte é o de sofrimento. Mas eu não sinto nada, Beatriz. Nada. Talvez seja porque, como meu pai me disse, eu não seja ninguém e, assim sendo, ou sendo que eu não sou alguém, não tenho como sentir nada.
Sei que isso não deve lhe interessar, que para você tanto faz, sei que se para mim ele não faz falta muito menos para você, já que nunca se deram bem. Mas achei que devia lhe contar.
Espero que esteja bem. Saudades.