O cineasta baiano Glauber Rocha foi um artista cuja produção intelectual foi de grande valia e contribuições ao cenário cultural brasileiro, sobretudo com o movimento do Cinema Novo.

O que muita gente não sabe é que Glauber Rocha foi um intelectual orgânico, cuja atuação foi além do cinema, adentrando a literatura e, até mesmo, as artes visuais com desenhos que figuravam seus trabalhos. Tendp ingressado, também, o universo das letras o autor teve um único romance publicado: Riverão Sussuarana.

Por conta da realidade política do período em questão os escritores esbarraram em difíceis condições de expressão literária e, por isso mesmo, o cineasta foi também um dos exilados no período militar. Entretanto, assim como outros artistas de sua época, Glauber Rocha deu continuidade à sua produção, chegando a afirmar que o período em que esteve exilado foi seu período de maior produção. “Durante o tempo em que passei fora do Brasil pode-se dizer que passei escrevendo e produzi toda essa obra literária”. (ROCHA apud REZENDE, 1986, p. 151)

Glauber era um intelectual cuja capacidade de produção era tão ativa quanto seu próprio pensamento. Dinâmico, ele não cessava. Sua escrita não possuía limitações. Escrever era, para ele, uma forma de desabafo, um meio encontrado para pôr para fora as angústias e pensamentos sobre as urdiduras de um tempo, quase como uma catarse.

O livro inicia com a narração dos contatos que Glauber teve com Guimarães Rosa e reproduz, logo no início, a dedicatória do escritor mineiro ao jonalista e cineasta, datada de 1962, junto com um exemplar de Primeiras estórias. Glauber descreve também seu encontro com Rosa, em Gênova, durante a Resenha do Cinema Latino Americano.

O personagem Riverão Sussuarana é também River, Rivo, Riverun, Riveran, Riverim, Adeodato, Sussu e tantos outros nomes. Ele é um jagunço que tem sua história contada ao Major e Mestre Rosa pelo cine-repórter Glauber Rocha.

O jornalista do grupo tem um nome que também assume variadas formas. Atende por Grober, Globe, Grobe, Glaubiru, seu Roxo, até que ao final do romance mistura-se com “Embaixador Romancista” na personagem de Guimarães Rocha, em seguida tornaser Jango Rosa e, por fim, desmembra-se em dois novamente.

Publicado em maio de 1978, Riverão Sussuarana passou mais de 30 anos ignorado pela crítica

Ambos os personagens fazem uma viagem pelo sertão acompanhados pelo Comandante e por sua filha Linda. Essa viagem faz com que se enveredem na história narrada pelo jornalista Glauber até se encontrarem com Riverão. O protagonista se apaixona por Linda, filha de Diadorim e Riobaldo, fato revelado no início da narrativa depois que ela tem relações íntimas com Major Rosa.

O personagem Guimarães, mesmo depois de morto, é destinado a, junto com Riverão, lutar pela destruição do empresário Karter Bracker que surge como alegoria do ocupante estrangeiro que invadiu o sertão e manteve seu povo como escravo nas minas de urânio.

O empresário controlava tais minas junto com o Senador Lima Ferraz. Nesse de livro de viagem retrata-se um país miserável. Com essa metalinguagem o autor concebe sua crítica velada à dificuldade em dar voz aos sertanejos, pois Glauber acreditava que a literatura brasileira não emprestava a palavra ao povo do Sertão.

Toda a obra de Glauber é marcada pela relação literatura-cinema e seu romance é permeado de metáforas e críticas. Sendo ele um agitador nato sua ficção literária surgiu como mais uma de suas experiências artísticas. Sempre buscando inovar, o cineasta emprestou técnicas do cinema nas linhas de seu romance, da mesma forma que fez uso de estratégias literárias em seus filmes.

Existe um fato: o romance de Glauber Rocha não foi bem recebido pela crítica da época. Publicado em maio de 1978 Riverão Sussuarana passou mais de 30 anos ignorado pela crítica que não leu bem seu livro, uma crítica que, sequer, o leu de fato.

Quando da publicação do livro Glauber já era figura conhecida no Brasil tendo ultrapassado fronteiras e ganhado o mundo provando os ônus e bônus da fama. O texto em questão configura-se uma obra complexa, repleta de pluralidades e cuja amplidão não foi alcançada pelos leitores nem pela crítica.

Algumas hipóteses procuram justificar esse mau posicionamento da crítica no que concerne a esse livro. Uma delas versa em torno da unilateralidade atribuída a Glauber que, sendo um cineasta, não poderia assumir um posicionamento de crítico da cultura. Tal posicionamento dos críticos seria como uma espécie de grade de segurança, como uma tentativa de proteger o público da loucura do autor, ou como se seus filmes já fossem suficientemente insanos.

Outra explicação para esse lapso crítico é a dificuldade de leitura que o texto apresenta visto que a narrativa é um inferno gramatical e ortográfico. Sobre o que a crítica diz a respeito de sua escrita Glauber aponta “Aceito que neguem a validade do discurso sob esse ângulo não porque o livro está preso a Guimarães Rosa, porque é ou não é um romance, porque não está dividido em capítulos ou porque a linguagem não é racional.” (apud REZENDE, 1986, p.144)

Glauber havia cultivado muitos desafetos, o que contribuiu para o limbo da ignorância ao qual sua “desnovela” (termo do próprio Glauber) foi relegada. Mal recebido pela crítica o livro foi entendido apenas como um passatempo do cineasta tendo, por isso, se tornado uma obra esquecida e taxada de incompreensível, hermética, surreal.

É difícil dizer quais razões que levaram a crítica literária da época a não aceitar a obra de Glauber, o que podemos inferir é que houve uma série de condições que desfavoreceram o autor.

À época do lançamento de seu livro Rocha viveu uma espécie de isolamento por falta de diálogo entre ele e os “donos da cultura”, para usar um termo do próprio cineasta. Somando-se aos fatos supracitados Glauber sofreu repressão de todos os lados, até mesmo do mercado editorial em que não encontrava apoio para a publicação de seu romance.

Se a crítica literária tem um poder e ela surge enquanto instância legitimadora do que deve ser consumido podemos inferir que essa crítica renegou a obra de Glauber Rocha ao esquecimento e obscurantismo. As razões pelas quais essa obra foi rejeitada na época podem ser diversas, entretanto a rejeição no passado não precisa ser definitiva pois, conforme o pensador francês Bourdieu (1996, p.169), é através da delimitação entre o que merece ser transmitido e reconhecido e o que não merece que se reproduz continuamente a distinção entre as obras consagradas e as ilegítimas.

* Denise Veras é mestre em Letras e servidora pública federal

(Publicado na edição#23)