“Por que você está lendo esse livro?”, me perguntam como se alguns livros, diferentemente de outros, precisassem de um motivo que justificasse sua leitura, no caso a vivência pessoal do tema, para serem lidos.

Eu sempre pensei muito na morte. Aos 45 anos, me dou conta de que este fora o tema de quase todos os meus anseios até hoje. Eu nunca tive muita dificuldade em lidar com as coisas práticas da vida, mas o medo da morte sempre me assombrou. A consciência de que cada segundo de vida é único e passageiro, e a vivência precoce de mortes repentinas, são fatores que me estruturaram. Durante muito tempo, pensei que deveria dedicar a minha vida a estudar o assunto a fim de, quem sabe, conseguir fazer as pazes com a finitude, o que, confesso, ainda não fiz.

Quando o Morte sem tabu — blog da Folha de S. Paulo dedicado a falar sobre o tema da morte — surgiu, senti a alegria e o alívio por descobrir que eu não era a única a pensar no assunto, que talvez eu não fosse uma pessoa assim tão diferente, para alguns um tanto mórbida e sombria, e que, apesar de eu nunca ter encontrado ao meu redor pessoas com as quais eu conseguisse falar sobre o tema, elas existiam. De lá para cá, a morte começou a sair do armário onde fora trancada e me dei conta de que não éramos nós, os poucos dispostos a falar do assunto, os diferentes, mas era a morte que nas últimas décadas havia sido, de fato, apagada da nossa cultura.

Foi através do blog que conheci a Cynthia Araújo. Eu já havia lido muitos dos seus textos antes de ler o seu livro A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta, lançado em 2023 pela Editora Paraquedas, no qual, a meu ver, ela dá um passo adiante e avança no processo de desconstrução dos tabus que envolvem o morrer. Muito provavelmente, a maioria de nós não esteja preparada para as reflexões que ela traz.

No livro, Cynthia une a experiência como advogada da união à pesquisa de doutorado com pacientes com câncer em estado avançado, traz a vivência pessoal do AVC e processo de recuperação da mãe, e toca de forma corajosa em temas espinhosos. Com lucidez e objetividade, propõe uma reflexão sobre o viver diante da proximidade da morte, e sobre como a falta de consciência sobre a própria finitude, esteja ela sabidamente próxima ou não, nos impede de viver o presente da melhor forma possível.

Nunca tive muita dificuldade em lidar com as coisas práticas da vida, mas o medo da morte sempre me assombrou. A consciência de que cada segundo de vida é único e passageiro, e a vivência precoce de mortes repentinas, são fatores que me estruturaram.

Diferentemente da minha mãe, que morreu de um AVC hemorrágico fulminante aos 56 anos, a mãe da Cynthia sobreviveu a mais de um episódio e, após um longo e difícil processo de recuperação, se recuperou das sequelas. Esse acontecimento transformou a forma com que a Cynthia vive: “Desde então, mais do que nunca, a morte passou a ser minha companheira. Vivo como vivo, porque tenho a morte em perspectiva. Vivenciar, de fato, a transitoriedade de tudo, a fez buscar viver melhor a oportunidade de cada momento.”

A vivência da morte, ou da quase morte, de forma repentina, escancara a verdade para a qual, em geral, não olhamos: a de que nunca sabemos ao certo em que ponto da estrada nos encontramos. E assim como a doença, essas experiências são uma grande oportunidade, para aqueles que sobrevivem, de despertar da ilusão da permanência, recalcular a rota da vida e o modo como queremos vivê-la. No caso de doenças terminais, pacientes já em processo de fim de vida, a consciência sobre a real proximidade da morte é importante para o paciente poder fazer escolhas, quando possível, e viva plenamente, dentro do que estiver ao alcance, o resto dos seus dias.

A vivência da morte, ou da quase morte, escancara a verdade para a qual, em geral, não olhamos: a de que nunca sabemos ao certo em que ponto da estrada nos encontramos.

Não sabemos se teremos o privilégio da boa morte e a oportunidade das despedidas. Mas a falta de conhecimento e consciência sobre a proximidade do fim, aliadas a más escolhas, faz com que, diariamente, pessoas em processo final de doenças terminais percam a chance de viver com algum conforto o tempo que lhes resta, se despeçam de pessoas amadas, ou realizem seus últimos desejos. Foi isso que a autora presenciou durante sua experiência como advogada da união e em sua pesquisa de doutorado, e que nos traz neste livro: “Além de tentar prolongar a vida dos nossos doentes pelo maior tempo possível, consagramos a regra moral de que o ser humano deve morrer na ignorância da proximidade da sua morte.”

Ao mesmo tempo que Cynthia nos convida a refletir sobre dignidade no processo de fim de vida de pacientes terminais, e sobre a importância de nos mantermos conscientes da nossa finitude para uma boa vida, ela também nos coloca outra questão — a única que ocupa, ao lado da morte, o posto de razão principal dos meus anseios — que pode fazer toda essa reflexão perder o sentido: “Cada vez que falo ou escrevo sobre a importância de ter a morte no horizonte, penso em quanto isso serve apenas para quem não tem que se preocupar hoje se terá o que comer amanhã. Para quem tem onde dormir. Para quem tem até onde morrer. Para quem já não vive, diariamente, à sombra da morte.”

“Cada vez que falo ou escrevo sobre a importância de ter a morte no horizonte, penso em quanto isso serve apenas para quem não tem que se preocupar hoje se terá o que comer amanhã. Para quem tem onde dormir. Para quem tem até onde morrer. Para quem já não vive, diariamente, à sombra da morte.” – Cynthia Araújo

Falar sobre o morrer quando ainda não resolvemos sequer questões tão urgentes sobre o viver pode parecer inútil. Mas, assim como a autora, acredito que sim, precisamos falar de morte para falar de vida, precisamos olhar para a morte e para nossa própria finitude para nos tornarmos seres humanos melhores, melhorar a nossa vida e as vidas daqueles que amamos e, quem sabe, também o mundo.

Se A vida afinal demanda a vivência pessoal do tema para ser lido, então ele é um livro para ser lido por todos os mortais que desejem fazer valer a pena sua passagem pela terra.

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Tatiana Eskenazi, é poeta e tem dois livros publicados: Seu retrato sem você (Editora Quelônio) e Na carcaça da cigarra (Laranja Original).