“Por seres tão inventivo e pareceres contínuo, tempo, tempo, tempo és um dos deuses mais lindo” 

Caetano Veloso 

 

Durante a pandemia parece que a gente ficou desorientado. No início, quando Wuhan se tornou notícia mundial, apareceram as primeiras dúvidas, essa doença chegaria ao Brasill? Depois foi a Itália, a Espanha e a França, e mais questões vieram. Como países europeus estão passando por essa tragédia? Como isso é possível? Foram muitas questões, espantos e ansiedades que vieram. 

Nesse ambiente de surpresas, recebemos informações de infectologistas, passamos a observar gráficos sobre curvas de transmissão. Aprendemos a lavar as mãos, colocar e tirar máscaras e luvas. Recebemos, de brasileiros incríveis da área da economia, da medicina, da biologia, da antropologia, da psicologia, informações importantíssimas. 

E o esperado veio, os casos da COVID-19 chegaram mais perto da gente e com eles também vieram as mortes, tudo isso criando mais apreensões em todas as dimensões da nossa vida: pessoal, social, econômica, familiar, profissional etc. 

O impacto da pandemia é tão grande que todos já aceitam que está sendo construída uma outra realidade e muito debate vai surgir disso, mas a construção dessa outra realidade certamente continuará por algum tempo provocando reflexões. Muitas dessas reflexões têm que ser feitas hoje ou poderemos abrir mão de participar, agir, em pontos importantes dessa realidade. 

Nossa relação com o tempo está mudando. E, quando o pós-pandemia chegar, seremos cobrados por todas as escolhas que estamos fazendo agora.

Nesse sentido, com essa outra realidade se fazendo em plena pandemia, problemas, que pareciam escondidos da nossa vida cotidiana, apareceram e precisam ser enfrentados agora, são vidas que estão em risco. Por exemplo, a quantidade de gente precisando da ajuda emergencial do Estado é imensa. É uma realidade cruel, revelada pela pandemia. Muitos brasileiros estão expostos às mais variadas fragilidades, faltam recursos básicos, muitos trabalham apenas para conquistar o alimento diário, muitos outros não possuem qualquer trabalho, não possuem qualquer segurança, o futuro para eles é a próxima refeição, é o amanhã. 

O funcionamento do SUS – Sistema Único de Saúde, também causa apreensão, faltam recursos para responder ao aumento da quantidade de doentes, faltam medicamentos, equipes médicas, muitos infectados e mortos, faltam leitos.  

Nesses dois casos houve reações da sociedade. Felizmente perceberam a necessidade de uma ajuda de emergência. O governo, com ajuda do Congresso e de muita pressão social, está pagando o auxílio. E os estados, prefeituras e o governo federal parecem ter percebido a importância do sistema de saúde. Porém, em nenhum dos casos as soluções foram as melhores. Muitos casos de contaminações nas aglomerações causadas para receber o auxílio e várias denúncias de desvio de dinheiro público na compra de equipamentos, construções de novos leitos etc. 

Assim, enquanto não chegamos lá no pós-pandemia e possamos fazer o julgamento deste presente-passado, é preciso refletir sobre os problemas difíceis deste momento e também as tentativas de solução destes problemas. E tem um problema que envolve a prática médica, atendimento aos doentes, as nossas relações sociais, a ética, o futuro. Esse problema está relacionado ao atendimento de idosos contaminados pela COVID-19 e às respostas que daremos a esse problema. 

Para fazer isso, a nossa orientação temporal pode ser um bom guia diante da urgência da necessidade de tratamento médico. Nossa relação com o tempo está mudando por causa dos efeitos nefastos dessa doença. E, quando o pós-pandemia chegar e a outra realidade estiver firmada, seremos cobrados por todas as escolhas que estamos fazendo agora no enfrentamento desta crise. 

Nossa orientação temporal está mudando. Por exemplo, a gente sabe que um século, desde a pandemia da gripe espanhola, é pouco tempo. Parecia uma eternidade, até fomos capazes de esquecer o quanto a humanidade é frágil diante de um vírus, um pedaço de DNA, RNA, que não se pode concluir facilmente se é vivo ou não. A gente sabe também que um mês em casa é bastante tempo, que quinze dias no hospital é tempo demais. A pandemia nos obriga a pensar nessas relações com o tempo. 

Não é simples, os questionamentos em torno do tempo são múltiplos. Estamos nos questionando, quanto tempo esse distanciamento social irá demorar? Quando a cura disso vai chegar? Quando as empresas voltarão a produzir? Quando poderemos nos abraçar novamente? O certo é que o tempo, como uma das nossas orientações básicas, está sofrendo modificações.  

Infelizmente, os efeitos da nossa percepção sobre o tempo dentro da pandemia poderão ser graves. Por isso, não podemos permanecer na passividade, precisamos também agir levando em consideração a nossa orientação temporal que temos hoje, esta que está sendo abalada. 

Neste cenário, vem uma preocupação que parece ter estado presente em todos os continentes, países e cidades. E os nossos velhos? Perderemos nossos idosos? O que isso significa? Eles são exemplos da nossa mais longa experiência com o tempo, com as nossas origens, com os nossos primeiros afetos. O que será perdido com eles? Como serão as próximas gerações sem os idosos? E disso surgem mais questionamentos que confrontam a gente e a nossa sociedade, o que somos hoje e como queremos estar depois da pandemia. É mais uma parte da nossa relação com o tempo. 

Pensar em proteger os idosos é também uma questão ligada ao tempo e está entre dois polos importantes, a vida das pessoas desse grupo de risco e o colapso do sistema de saúde. Diante dessa realidade, falou-se que o isolamento vertical seria suficiente. Assim, os idosos estariam protegidos, não seriam contaminados. Essa medida também seria sufieciente para impedir que o sistema de saúde colapsasse. O isolamento vertical, felizmente, não foi o escolhido, mas o colapso do sistema de saúde chegou em várias cidades. 

O problema do colapso do sistema de saúde permanece para eles, não se trata mais de como proteger, mas de se serão salvos. Surgiram situações que eram imaginadas apenas em aulas de Ética, na apresentação de dilemas insolúveis: na ausência de leitos, iremos deixar os idosos morrerem? A escolha de Sofia será decidida com base na idade? Esses dilemas éticos não podem ser adiados. E algumas pessoas se apressaram em apresentar respostas, uma delas foi indicar critérios para escolha de quem vai ser socorrido com respirador e quem será deixado para a morte. Esta resposta, porém, não é e não deve ser considerada óbvia. 

A vida do idoso precisa encontrar, criar, provocar mais reflexão. Existem autores que já escreveram sobre a banalidade do mal. Essa banalidade indica que o mal é raso, não tem profundidade, não tem questionamento. Por isso, não podemos aderir sem reflexão aos critérios de escollha de quem receberá respiradores e, assim, diminuir o espaço de julgamento das equipes médicas. 

Critérios de escolha de quem vai ser socorrido com respiradores formam um método de ganhar tempo e superar as dúvidas que um julgamento ético sempre apresenta. É a marca do mundo moderno, anterior à COVID-19, um mundo que não existe mais. A pandemia nos obrigou a abandonar uma realidade, não obstante nossa reflexão pode nos ajudar a abandonar esses padrões de “ganhar tempo”, “fazer atalhos”. 

Precisamos lembrar que nossos idosos são importantes e os critérios de decisão não podem se impor para a morte dessas pessoas do chamado grupo de risco. Essas pessoas são tão importantes como quaisquer outras. A indicação desses critérios de idade faz parecer que o futuro dos jovens é mais importante que a história dos idosos. O que não me parece fácil de entender e certo. 

Não temos apenas um tempo vazio na vida dos idosos. O afeto dos idosos, a vida deles, são insubstituíveis. Essas vidas estão preenchidas de humanidade, de história, de relações. Os prejuízos emocionais serão imensos, caso abandonemos os idosos ao coronavírus. Por isso tudo, os jovens não podem carregar a responsabilidade pela morte de outras pessoas, nem as equipes médicas podem perder a capacidade de julgar. É preciso por em questão porque decidimos que oitenta anos, que ainda serão vividos pelos jovens, valem mais do que outros oitenta anos, que os idosos já viveram. O que há no futuro que pode dispensar o passado, a vida, a experiência, os efetos dos idosos? Não encontro justificativa para esta escolha e para a eleição daqueles critérios.  

Esse é um debate sem vencedores e que, por isso, precisa ser substituído por obstáculos que podem ser enfrentados. É o caso de tentar responder e explicar: como diminuir a contaminação? O que é preciso para abrirem mais leitos de UTI? Como diminuir a pobreza e o abandono dos jovens e velhos nas comunidades mais pobres das nossas cidades? E mais, a lista única de leitos de UTI vai ajudar a salvar vidas? Como podemos impedir atos das autoridades que colocam a vida das pessoas em risco? Existe muito a ser feito antes de abandonar os idosos e a nossa capacidade de julgar. 

Marcos Costa é professor de Direito.

Texto publicado na Revestrés#46 (agosto de 2020) que, devido a pandemia, circula online e gratuita.

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