No ensaio A Room of One’s Own (cujo título, em português, recebeu pelo menos duas traduções: Um Teto Todo Seu e Um Quarto Só Para Si), Virginia Woolf discorre sobre o tema as mulheres e a ficção e – claro – não pode deixar de falar sobre a situação das mulheres oprimidas pela estrutura familiar e pelo patriarcalismo reinante na sociedade inglesa da época. Já no início do texto, a escritora antecipa a conclusão: se a mulher desejar escrever ficção, deve ter dinheiro e um teto todo seu. Não precisa dizer que a literatura inglesa era território dominado pelos homens.

Laís Romero, escritora: “as mulheres, que poderiam ser contistas, estavam cuidando das casas dos maridos contistas e dos filhos que seriam contistas.”

A inquietação de Virginia Woolf me veio a propósito do lançamento, em Teresina, de dois livros: exames aleatórios de imagens, segundo livro de poesia de Laís Romero, e o dia escuro – contos inquietantes de autoras brasileiras, coletânea de contos escritos por vinte mulheres, entre as quais, Laís. Além dos aspectos literários que tais livros podem suscitar, senti vontade de fazer uma pequena incursão ao tema que poderíamos chamar de as mulheres e a ficção no Piauí.

E começo relembrando duas coletâneas de contos editadas em Teresina: Ô de Casa! (Editora Nossa, 1977) e O Conto na Literatura Piauiense (COMEPI, 1981). Em ambas, a totalidade de contistas seria de homens, não fosse a participação de Ana Clélia de Freitas no segundo livro citado. Mas a presença das autoras de prosa de ficção aumentou. O número de mulheres subiu para oito em Caçuá (FUNDAPI, 2020) entre 44 contistas daquela coletânea.

Na Roda de Conversa com Laís Romero, mediada por Eulália Teixeira, ocorrida na última quinta-feira (30/01), na Entrelivros Livraria, perguntei onde estavam as mulheres contistas, que praticamente não figuravam nas coletâneas de contos no Piauí. Laís Romero respondeu algo que reproduzo com minhas palavras, sujeitas a erro, mas que na essência foi o seguinte: as mulheres, que poderiam ser contistas, estavam cuidando das casas dos maridos contistas e dos filhos que seriam contistas.

Perguntei onde estavam as mulheres contistas do Piauí. Laís Romero respondeu algo como: “as mulheres, que poderiam ser contistas, estavam cuidando das casas dos maridos contistas e dos filhos que seriam contistas.”

Voltando ao ensaio de Virginia Woolf, este certamente serve para uma reflexão sobre a situação da mulher escritora no Brasil e no Piauí, onde a literatura foi durante muito tempo território predominantemente masculino. Dentro da sociedade patriarcal extremamente rígida, a mulher não tinha vez e voz. Vivendo sob condições que tolhiam seus passos e sua imaginação, como poderia a mulher escrever, criar? Tais condições favoreciam um estado de espírito propício para o ato de criação? Ou, por outra, há um estado de espírito adequado para essa “estranha atividade”?

Novo livro de Laís Romero (Mórula).

A julgar pelo que escreveram os próprios escritores sobre o ofício de escrever, criar uma obra de gênio “é um fato de prodigiosa dificuldade”. Tudo concorre para que a mente não tenha um estado adequado para a criação. As dificuldades são de duas ordens: materiais e imateriais. Dentre as primeiras, pode-se mencionar a luta pela sobrevivência, doenças, falta de tempo, interrupções, barulhos. Mas a pior de todas é a “notória indiferença do mundo”. Por isso, nenhum livro provavelmente nasce livre de mutilações.

Se essas são dificuldades “normais” para o escritor, o que se dirá das escritoras? Segundo Virginia Woolf, “essas dificuldades eram infinitamente mais descomunais” para as mulheres. As mulheres não tinham um lugar, um quarto, onde pudessem escrever livre de interferências, nem tampouco possuíam dinheiro suficiente para um mínimo de autonomia. Entretanto, as dificuldades imateriais eram as piores.

“A indiferença do mundo, que Keats e Flaubert e outros homens de gênio tiveram tanta dificuldade de suportar, não era, no caso da mulher, indiferença, mas sim, hostilidade. O mundo não lhe dizia, como a eles: ‘Escreva, se quiser; não faz nenhuma diferença para mim’. O mundo dizia numa gargalhada: ‘Escrever? E que há de bom no fato de você escrever?’”

Segundo Virginia Woolf “as dificuldades eram infinitamente mais descomunais” para as mulheres. Mais que dificuldade material ou indiferença, elas enfrentaram hostilidade. O mundo lhes dizia numa gargalhada: ‘Escrever? E que há de bom no fato de você escrever?’”

Mesmo que os pais ou o marido não dissessem tais coisas, estas já estavam na consciência da mulher, isto é, as interdições, veladas ou não: você não pode fazer isso; não pode aquilo; é incapaz daquilo outro. A mulher, mesmo no século XIX, não era estimulada a ser artista. “Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a sermões e admoestada”.

Estava alinhavando este texto quando li o artigo Leia Mulheres: pode a provocação causar uma revolução?, de Dani Marques, na revista Peleja, a ser lançada este mês. Ela afirma: “A produção de autoria feminina piauiense sempre existiu, porém, não existia um olhar apurado sobre”. Citando os coletivos Leia Mulheres e Mulherio das Letras, Dani Marques diz que “Foi no coletivo que as mulheres perceberam que só assim esse cenário poderia ser mudado. (…) Sem precisar do aval masculino, as mulheres conseguiram resgatar confiança nas suas produções. O coletivo foi um catalisador para a libertação”.

Como nada acontece por acaso, fui neste final de semana a uma cerimônia de casamento católico. Alguém fez a leitura de um trecho da Carta aos Efésios, em que São Paulo afirma: “As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher”.  Ideias como essa ainda são presentes na (des)ordem dos dias.

Virginia Woolf diz às mulheres que elas devem ir à luta. Acho que Laís Romero faz isso – ela e outras autoras piauienses. Seu percurso evolutivo como escritora e poeta sugere um ativismo.

Esse o contexto que queria sugerir antes de falar um pouco sobre O dia escuro – contos inquietantes de autoras brasileiras. Talvez nem me ocuparia dele, não fosse a participação da escritora piauiense Laís Romero e se eu não estivesse presente na Roda de Conversa na Entrelivros Livraria.

O dia escuro: coletânea com 20 mulheres contistas, organizada por Fabiane Secches e Socorro Acioli (Companhia das Letras).

Trata-se de uma coletânea organizada por Fabiane Secches e Socorro Acioli, editada com o selo da Companhia das Letras. São vinte mulheres contistas. Diferente das publicações em que predominam autores do famoso “eixo Rio-São Paulo”, o dia escuro reúne autoras nascidas em Juazeiro do Norte, Recife, Teresina, Fortaleza, João Pessoa, Goiânia, Belo Horizonte, Santos, Campinas, São Paulo, Bento Gonçalves, Rio de Janeiro. As únicas “estrangeiras” são Carola Saavedra, do Chile, e Trudruá Dorrico, do povo Makuxi.

Não vou analisar os “contos inquietantes” do livro, primeiro porque não sei e depois porque estou lendo devagar, para não ficar com inquietação além da que podem suportar meus nervos e minha pobre cabecinha. Mas digo: os contos que li até agora me agradaram, com a atmosfera de noites e dias perturbadores e desconcertantes, que talvez imitem esses “tempos de fúria”. Não sei explicar por que contos e realidade são assim.

Antes de Cão dos Infernos, que integra o dia escuro, Laís Romero havia publicado Amor de antigos, conto da coleção Pé de Amora, que seleciona textos inéditos de novas autoras. Ambos são boas experiências, mas Cão dos Infernos leva vantagem pela densidade, pela coragem, pois escrever com medo não pode resultar nada que preste, e pela energia mobilizada para nocautear leitoras e leitores ao virar da última linha.

Aludindo, outra vez, a Virginia Woolf, o que ela diz às mulheres é que devem ir à luta. Acho que Laís Romero faz isso – ela e outras autoras piauienses. Seu percurso evolutivo como escritora e poeta sugere um ativismo que inclui dois livros autorais, participações em revistas, recitais, coletâneas, grupos de mulheres leitoras e autoras, cursos de aperfeiçoamento da escrita e a presença alerta em quase tudo que diz respeito a literatura e poesia em Teresina, com interlocuções com escritoras e escritores desse movimento que é nacional também.

Como estamos falando de prosa de ficção, quero lembrar aqui o que disse o romancista José Américo de Almeida no prólogo de A Bagaceira: “Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. E Virginia Wolf, sem a qual este texto não haveria de ser escrito: “mentiras fluirão dos meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade no meio delas: cabe a vocês buscar essa verdade e decidir se vale a pena conservar algo dela”. A autora coloca definitivamente essa questão nas mãos de leitoras e leitores.

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Rogério Newton é poeta, cronista, romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa escrita n´água (2006), Grão (2011), No coração da noite estrelada (2015), Crônicas dos enigmas de Oeiras (2017), A Outra Face (2019), Lua no Caminho (2023) e Negras e Negros do Rosário (2024).