Senti o desejo de escrever sobre o que vi e conheci dele, e sobre alguns encontros breves que tive com esse homem frágil e quase infantil, de voz profunda e quente saindo de um corpo espiralado e aterrado ao chão como uma árvore, com gestos delicados constantemente escapando dele. Decidi escrever talvez porque suas palavras ainda ressoam em mim, seus gestos e seus olhos cintilam ainda na minha memória. Escrever para tentar recuperar fragmentos dessa existência mítica e mais do que desejar prestar aqui uma homenagem ou enaltecer a sua obra, eu desejo reavivar o que dele ficou em mim como ato, como fala, como imagem que explode, como dança que vai continuar a ser dançada em tantos corpos após a passagem dele por esse mundo. 

Yoshito Ohno | Colagem: Maurício Pokemon

A primeira vez que vi Yoshito Ohno dançar foi em São Paulo em abril de 1986, quando de sua primeira vinda ao Brasil, com o pai, Kazuo Ohno (1906-2010). Ser filho de Kazuo Ohno não foi um detalhe na vida de Yoshito. Kazuo foi o mais importante e celebrado bailarino de Butô do mundo, e o responsável por divulgar essa dança fora do Japão. Se tornou uma estrela aos quase 80 anos (viveu mais de 100 anos) e percorreu o mundo aclamado por multidões dançando apenas duas peças: Admirando La Argentina e Mar Morto” essa última um dueto com seu filho e aprendiz, Yoshito Ohno. 

Esse espetáculo marcou a minha vida. Foi o último espetáculo que vi no Brasil antes de vir para a Europa estudar dança, e de alguma forma foi o meu rito de passagem. E aconteceu por acaso, porque fui ao Teatro Sesc Consolação aquela noite para me despedir dos amigos, eu estava partindo literalmente no dia seguinte, e fui então acometido por um golpe que foi aquela dança que não correspondia a nada que eu houvesse visto antes. Peguei o avião da LanChile para Paris no dia seguinte, atordoado e excitado com a imagem daqueles homens dançando lento e de forma grotesca, com os corpos pintados de branco, figuras travestidas e quase imóveis que pareciam almas do outro mundo. 

Quando cheguei em Paris e passei a frequentar o mundo da dança, ouvi falar de Tatsumi Hijikata (1928-1986), um coreógrafo e bailarino que diziam ser o criador da dança Butô, e que havia morrido três meses antes, ainda relativamente jovem, de um câncer fulminante. Descobri Hijikata na capa de uma revista especializada em dança, feições retorcidas, abdômen contraído, corpo seminu e ereto como que sob o efeito de uma convulsão, e aí liguei os pontos. Começava então a minha aventura, instável e movediça, pelos princípios dessa dança que me acompanha até hoje em tudo o que faço. 

Só fui encontrar Yoshito Ohno pela primeira vez em 2013, em Yokohama, a cidade onde ele vivia no Japão, depois de já o ter visto dançar outras vezes – sempre com o pai – em Paris e Amsterdam. Fui apresentado a ele pela crítica de dança Kazuko Kunioshi, que orientava uma parte da minha pesquisa sobre Hijikata, e que havia me convidado naquele dia para a estreia do espetáculo de Yoshito, dançando a famosa peça do pai, Admirando La Argentina, coreografada por Hijikata. 

Tatsumi Hijikata criou essa peça a partir de uma memória de Kazuo Ohno, 50 anos depois deste ter visto dançar em sua juventude a bailarina espanhola Antônia Merce y Luque (1890-1936), conhecida como La Argentina. 

Yoshito passou grande parte de sua vida ao lado da “Argentina” do pai, o vendo dançar, o acompanhando aos teatros e dividindo camarim, ajudando o pai já idoso com os vestidos, perucas e chapéus que compunham o figurino das peças. E ele estava ali no Teatro Red Brick Warehouse aquela noite, para dançar pela primeira vez uma peça impregnada de outra, ou seja, a peça que seu pai dançava invocando La Argentina, seria dançada agora por ele, invocando a figura do pai morto então recentemente, e personificando um legado hereditário e fundamental na História da Dança mundial. 

Fui apresentado a ele depois da estreia, entre muitas outras pessoas que o cumprimentavam, mas tive a honra de ser convidado para sentar à sua mesa, com a mulher e uma das filhas, e mais alguns convidados, quase todos artistas e bailarinos. Me impressionou a simplicidade de Yoshito depois de uma estreia tão importante, a curiosidade dele com o Brasil de onde eu vinha, um frescor quase de menino quando me perguntava sobre o que eu estava fazendo ali. Me falou de suas visitas ao Brasil, e quando mencionei o fato de o ter visto dançar em São Paulo durante a primeira delas, corou envergonhado, e os olhos brilharam como se estivesse voltando àquele momento. A conversa na mesa foi silenciosa e ele estava ali como a grande estrela da noite, mas ao invés de falar disso, falava amenidades e sorria do que se passava a sua volta. Me lembro que, ao invés de falar comigo de dança, preferiu me contar que, antes de vir dançar, fez o almoço da família, serviu e comeu com sua mulher, porque, segundo ele, ela não era uma boa cozinheira. E sorriu zombeteiro em cumplicidade com a mulher ali ao lado. 

Fui o reencontrar em sua casa dois anos depois, para o entrevistar e tomar classes com ele. Minha pesquisa sobre Hijikata prosseguia e eu precisava conversar com o bailarino que havia dançado a primeira peça de dança Butô de que se tem notícia, Kinjiki (Cores Proibidas), um dueto de 15 minutos coreografado por Hijikata para ele próprio e Yoshito, que na época tinha 20 anos. Kinjiki era uma peca escura, que falava de desejo e atração sexual entre um homem mais velho e um homem jovem, onde uma galinha viva era trazida para a cena para ser morta entre as pernas de Yoshito. Essa dança abalou a cena contemporânea do Japão quando foi apresentada em maio de 1959, e inaugurou o movimento artístico que iria se alastrar pelo mundo e revolucionar a história do corpo na dança mundial, o Ankoku Butô. 

Tivemos esse encontro na cozinha de sua casa, que na verdade foi a casa de seu pai e passou a ser dele depois da morte deste. Eu não conseguia parar de pensar que aquela pequena cozinha, a pia apertada entre os armários, a cortina na janela, as taças de chá e o bule sobre a mesa, era a cozinha onde Kazuo Ohno havia cozinhado a vida inteira e onde agora Yoshito me recebia muito gentilmente, para falar de Kinjiki, com a ajuda de uma tradutora. 

Me contou que foi fazer a peça porque Hijikata pediu permissão a seu pai para que ele fosse dançar, mas ele não entendia nada daquela dança estranha onde o coreógrafo lhe pedia para manter o corpo rijo enquanto ele havia aprendido que era preciso ser leve e flexível. Me disse com certo orgulho que na juventude era bonito e atlético e, por isso, foi convidado para aquele papel. Conversamos por muito tempo sobre as memórias dele daquele período, e às vezes seus olhos pareciam entrar dentro do corpo procurando as imagens, vasculhando as sensações que se precipitavam para fora pela voz e pelos gestos tentando me explicar o que havia sido Kinjiki. Ao final, perguntei se ele lembrava de Hijikata falando ao seu ouvido “je t’aime, je t’aime, je t’aime” durante a peça, e pedi que ele gravasse para mim essa memória. Ele levantou da mesa cerimonioso, fechou os olhos e pronunciou aquele “eu te amo” algumas vezes para o gravador de áudio do telefone. Me falou em seguida da importância de se dizer “eu te amo” e de como era necessário que se respeitasse e preservasse toda e qualquer forma de amor existente. Um ano depois decidi começar o meu espetáculo “Dança Doente” (2017), criado a partir dessa pesquisa, com a voz de Yoshito Ohno bradando “je t’aime, je t’aime, je t’aime”, pensando nas palavras dele sobre a importância do amor em tempos de tanta intolerância. 

Naquela ocasião, passei a frequentar o estúdio em sua casa, onde Yoshito dava classes à noite, para um grupo de aproximadamente vinte pessoas, a maioria estrangeiros. Nessas classes Yoshito nos dava instruções simples e nos contava estórias entre um experimento e outro. Nos pedia para segurar uma flor de plástico – havia um cesto com muitas delas por ali – e manter a flor viva próxima ao nosso corpo. Nos pedia para imaginar que estávamos em um campo de arroz e tínhamos que manter o corpo abaixado na direção do arroz que brotava do chão. Queria que buscássemos a delicadeza e a integridade do nosso corpo ao caminhar pela sala, e nos dizia que cada um de nós era uma obra de arte, que nossa existência era para ser valorada como obra de arte. Falava de Hijikata e do pai Kazuo, transferia informações sobre uma dança que se fazia no corpo dele mas que vinha de longe, e ria como um menino do que fazíamos e de si mesmo, ao mostrar gestos às vezes espalhafatosos. Depois de propor alguma imagem para ser trabalhada, ia para o pequeno aparelho de som no canto da sala e tocava a Ave Maria de Gounod, uma canção de Bob Marley ou um fado português. 

Entendi com Yoshito o sentido da palavra Sensei, que significa mestre em japonês, aquele a quem se deve seguir, ou literalmente “aquele que nasceu antes”, embora ele sempre nos tenha dito que o verdadeiro sensei é o nosso próprio corpo e a dança que brota em nós todos os dias. 

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Marcelo Evelin é bailarino, coreógrafo e pesquisador. Vive em trânsito entre Amsterdam, na Holanda, onde é professor de improvisação e composição na Escola Superior de Artes, e Teresina, no Piauí, onde está à frente do CAMPO Arte Contemporânea. Criou e dirige a Companhia Demolition Inc., com mais de 25 espetáculos encenados em vários países.

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