Ozeli Oliveira dos Santos
Talvez o que vou dizer aqui para alguns não seja novidade. Porém, é preciso perceber que a maioria da nossa comunidade, por forças maiores, ainda não compreende a importância do existir poético. Tendo isso em vista, este diálogo parte de duas questões fundamentais: Por que o projetar-se é parte fundamental do existir? Por que o ativismo poético é um mecanismo urgente de resistência na contemporaneidade? Para refletir essas questões, conversaremos com Paul Ricoeur, Conceição Evaristo, Toni Morrison, Djamila Ribeiro e Grada Kilomba. Desse modo, veremos como estas literaturas refletem as questões aqui levantadas.
Projetar-se fora de si como forma de existir
Desde o momento em que somos lançados no mundo, desenvolvemos gradualmente maneiras de nos comunicarmos e interagirmos uns com os outros. Estas manifestações comunicativas se realizam, especialmente, a partir da mediação corporal e não corporal. Neste aspecto, a linguagem se torna um fio condutor que, intimamente, adquire o caráter de construção da realidade ligada à existência humana. Certamente não se expõe e não se esgota ao raio de alcance do mundo comunicativo que vamos construindo e edificando ao longo da vida, muito menos em um diálogo, um texto ou um discurso, diante do que é dito e do que não é dito porque é negado e julgado inferior. O objetivo aqui é refletir a ação poética como forma importante de comunicar e expor o “silenciamento” das experiências adquiridas na comunidade humana. Antes de adentrarmos na centralidade desta questão, primeiramente assinalo, mesmo que sucintamente, as formas mais conhecidas do dizer.
O filósofo francês Paul Ricoeur nos coloca, em sua obra Do texto à ação (1989), que a compreensão “assenta no reconhecimento daquilo que um sujeito estranho visa ou significa com bases em signos de todas as espécies, nos quais a vida psíquica se exprime (Lebensausserungen)” (Ricoeur, 1989, p. 185). Em outras palavras, nas expressões de vida apresentadas, especialmente, pelo discurso (escrita, fala), artístico, historiografia, práxis, etc.
Compreendemos o discurso e as artes como meios de dizer, ao externo, nossas compreensões de mundo.
Quando pensamos na forma de dizer por intermédio do texto, para Ricoeur[1] a linguagem acontece enquanto discurso que se realiza pela fala ou pela escrita. Neste sentido, o discurso torna-se um acontecimento de linguagem. Que se realiza no presente, remete para seu locutor (é autorreferencial), tem a pretensão de descrever, exprimir e representar sobre alguma coisa, isto é, onde acontece a troca de mensagens entre o locutor e o interlocutor. Diferente do sistema da língua, que é virtual, não requer um sujeito, dispensa o mundo porque é apenas código de comunicação. Se o discurso tem um agente, um mundo e dirige-se a alguém, que pode ser uma segunda pessoa ou um auditório inteiro para exprimir alguma coisa, podemos dizer que ele é o que vai dar sentido e significação da ação de linguagem, seja ela escrita ou falada. Neste aspecto, da importância do que quer dizer o discurso em seu ato de fala e escrita, supomos ser possível quando o locutor é conhecedor de algum modo das causas e do significado do seu dizer. Ao mesmo passo que o leitor, o receptor se dispõe à escuta do que foi dito para compreender mesmo que tardiamente, quando se encontra com a obra. Porém, o acesso às vivências, obras, entre outras formas do existir, só é possível quando testemunhamos ou fixamos (importante lembrar aqui a fidelidade ao acontecimento).
Arriscamos em dizer, neste ponto, que o discurso se realiza entre autor e leitor (escrita), locutor e interlocutor (atos de fala) e entre criador e apreciador no plano das artes, como: música, dança, pintura, escultura, arquitetura, cinema, teatro, literatura, entre outras, a partir da solidariedade e receptividade da experiência de si e do outro. Tendo isto em vista, compreendemos o discurso e as artes como meios de dizer, ao externo, nossas compreensões de mundo. Compreensão essa dada a partir do que temos acesso pelo fixado ou quando somos testemunhas pelo presente da experiência. Para tal, nossa hipótese é de que a poética (conjunto de recursos expressivos) é mecanismo importante das exposições comunicativas.
Se olharmos para a produção teórica centrada nas vivências singulares e ao mesmo tempo plurais do que foi e do que é transmitido para nós, constataremos a falta da integridade do discurso e do silêncio das vozes. Em consequência, ambos limitados pela surdez ou pela mordaça. Ainda assim, o que nos ocorre é a possibilidade de recuperação da voz calada e a ressignificação do discurso mal fixado. Neste aspecto, o que não podemos mesmo é ficar em silêncio. Isto porque nas palavras de Ricoeur:
Qualquer coisa da sua experiência, precisamente porque foi trazida por uma obra, vai poder ser comunicada. A sua experiência nua, essa era incomunicável; mas, a partir do momento em que pode ser problematizada sob a forma de uma questão singular à qual se responde adequadamente sob a forma de uma resposta também singular, então ela adquire uma comunicabilidade, torna-se universalizante (Ricoeur, 1995. p. 243).
Nesta perspectiva, o dito em suas formas de dizer-se como, por exemplo, na obra, aumenta o raio de alcance do que se comunica “é como um rastilho de fogo saindo de si mesmo, atingindo-me e atingindo, além de mim” (Ricoeur, 1995. p. 244). Entendemos que o “para além de mim” traduz a vontade e o objetivo daquele que quer expor suas demandas existenciais, especialmente sobre a falta de algo, sobre o que não foi dito por imposição ou negação, mantendo assim a mordaça do silenciamento. Desse modo, a retirada da mordaça pode configurar-se em um ato poético em busca do lugar da escuta, do reconhecimento e engajamento do ato de uma fala livre e íntegra.
Ativismo pelo resgate da voz silenciada
Pensando no título desse tópico, começaremos refletindo este ponto com a estudiosa portuguesa Grada Kilomba que, logo na introdução de sua obra Memórias da Plantação (2008), chama a atenção para o silêncio imposto ao longo da história a inúmeras maneiras de atuação do existir humano em sociedade, provocado pelo apagamento do colonialismo que, por sua vez, continua a atuar. Com isso em vista, a estudiosa concentra seus estudos e suas performances artísticas na redução do silêncio imposto, visto mais claramente na realidade da pessoa negra, indígenas, entre outras realidades. Para tanto, Kilomba atua através da escrita e da arte em prol do processo de descolonização. Para a estudiosa, o discurso é um instrumento de poder e seu sucesso está nas mãos de quem performaticamente está no lugar de fala ou no espaço público.
Eu me apresento e me represento e crio meu próprio projeto. Ou seja, mesmo que digam, “a subalterna não pode falar”, eu respondo de inúmeras maneiras que posso falar, ao mesmo tempo em que recupero a voz e meu lugar de pertencimento, porque faz parte de mim e do meu valor.
Para Kilomba, as palavras, tanto na fala como na escrita, são possibilidades de materializar e recuperar a voz. E ainda pode excluir esse “outro” imposto e colocar no lugar o “eu sujeito”, tal como ele realmente é. Ou seja, “eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou” (Kilomba, 2008, p. 28). Em outras palavras, eu me apresento e me represento e crio meu próprio projeto. Ou seja, mesmo que digam, “a subalterna não pode falar”, eu respondo de inúmeras maneiras que posso falar, ao mesmo tempo em que recupero a voz e meu lugar de pertencimento, porque faz parte de mim e do meu valor.
Grada, fundamentada em Spivak[2] e pensando simbolicamente, questiona “se pode a subalterna falar”; em um regime repressivo, racista e colonialista certamente não haveria lugar para a subalterna, porque para que alguém fale é importante que tenha lugar de escuta e de reconhecimento. Pensando este lugar nos nossos dias atuais, é necessário que minha fala, minha escrita, meu conhecimento e minha capacidade de produção de valores sejam escutados, autorizados e validados na minha direção. Porém, existe uma neutralidade de validação em relação ao conhecimento de quem está no lugar de subalterno, diferente da crescente validação de quem está na condição de poder.
A filósofa brasileira Djamila Ribeiro nos coloca que o lugar de fala aplicado no debate público deveria ser de uma postura ética, pois “saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdades, pobreza, racismo e sexismo” (Ribeiro, 2017, p. 84). Desse modo entendemos que, estando na condição de lugar de fala, é fundamental, em primeira instância, ter a consciência do poder de transformação no espaço público. Isto é, poder desvelar as mazelas da opressão e caminhar em direção a possíveis reparações e reconhecimentos. Ribeiro ainda nos coloca que “falar a partir de lugares, é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer se pensem” (Ribeiro, 2017, p. 84). Ou seja: é necessário que todos falem, falem de machismo, racismo, sexismo, xenofobia, entre tantas outras doenças sociais. No caso de quem está na margem, bell hooks, na obra Teoria feminista: da margem ao centro (2019), nos coloca que devemos fazer o caminho de resistência da margem para o centro do debate porque o espaço público só conhece aquele que fala nele. Desse modo, estar contra o silêncio e a favor da fala que luta por respeito e solidariedade. O espírito do ativismo contemporâneo opera em sua criatividade poética especialmente para expor essas realidades, aqui brevemente postas.
Diante disso, podemos compreender melhor o que nos apresenta a escritora e poeta brasileira Conceição Evaristo quando nos pontua a importância da união entre a vida e a escrita. Para a autora, essa união se transforma em “escrevivência”: “é uma escrita em que o sujeito se coloca no seu espaço de pertença, no seu espaço de nascença e no espaço de vivência”. A escrita é que vai imprimir e compartilhar as vivências para que, assim, possam ficar marcadas em sua importância, e todos poderão ter acesso. Dito de outro modo, “as palavras que estão arrumadinhas no dicionário só, ninguém chora diante de um dicionário e as palavras estão lá, arrumadas bonitinhas. Mas elas só ganham sentidos, elas só te tocam se você transformar em uma vivência possível”[3].
Não sou só um corpo no mundo portador de sentidos. Sou além do que os olhos veem, do que escuta e do que consegue sentir no tato das mãos.
Somos instigados a refletir sobre o importante papel de nossas performances de sujeito na sociedade. É diante dessa reflexão que me coloco, em primeira pessoa, para dizer que sou convocada pela experiência da carne, da pele e da história mal contada, a atravessar o silêncio e encontrar minha voz das maneiras pelas quais tenho acesso e me disponho. Como, por exemplo, na filosofia e na poesia. É fundamentada nesses dois planos que evoco meu ativismo pela existência, minha maneira de viver com mais dignidade. Não podemos fugir da responsabilidade de compormos e interagirmos sobre questões e situações que experenciamos para poder aliviar a falta, a angústia das dores e a necessidade de “vida”, “vida” bem vivida. Isto porque:
Corpo e +: Não sou só um corpo no mundo que a natureza se fez matéria vista nas lentes dos seus olhos. Sou a natureza e sou matéria que carrega em cada célula que me forma, memórias e infinitas possiblidades de ainda ser, de multiplicar e continuar existindo. Não sou só um corpo no mundo portador de sentidos. Sou além do que os olhos veem, do que escuta e do que consegue sentir no tato das mãos. Não sou só um corpo no mundo com a beleza que deseja ver. Sou além do corpo, de inúmeras formas, com alma e com vida. Não sou só um corpo no mundo ditado por regras. Sou essência e existência independente de regras. Não sou só um corpo no mundo visto para fertilidade e reprodução. Sou a decisão da fertilidade e da reprodução. Sou decisão pelo desejo, pelo erótico e pelo prazer. Não sou só um corpo no mundo com cores e histórias contadas. Sou além das cores e das histórias contadas. Não sou só um corpo no mundo visto pela lente majoritária como inferior. Sou valor que edifica mundos, roga por história real e convivência limpa. Sou o desejo de ser como sou e de existir porque sou (poesia de Ozeli Santos/2024).
Para finalizar, deixo aqui a possibilidade de um antídoto, defendido pela estudiosa bell hooks[4]: para ela, o amor deve ser nossa dedicação constante, porque é pelo amor, não pelo amor entre homem e mulher, mas pelo amor de simplesmente ser, se reconhecer e ver as pessoas e as coisas como partes importantes para o nosso próprio crescimento.
Ozeli Oliveira dos Santos é Cientista Política, mestra e doutoranda em filosofia – UFPI
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Referências
EVARISTO, Conceição. Trechos da fala da autora em evento no endereço a seguir: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem
HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora elefante. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: 2021.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Tradução de Antônio Hall. Edições 70, Ltda. Lisboa, 1995.
RICOEUR, Paul. Do texto a ação. Tradução de: Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando. RÉS-EDITORA, Ltda. Portugal, 1989.
[1] Nesta parte do texto (1989, p. 186), Ricoeur apresenta quatro diferenças entre o sistema da língua e o discurso e sua importância para elaborar sua hermenêutica do acontecimento, tema que não iremos aprofundar aqui neste texto, apenas apresentaremos a importância da compreensão desse mecanismo de mediação para o nosso dizer ao outro.
[2] Gayatri Chakravorty Spivak é uma crítica e teórica indiana, mais conhecida por seu artigo “Can the Subaltern Speak?”, considerado um texto fundamental sobre o pós-colonialismo.
[3] Trechos da fala da autora em evento no endereço a seguir: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem
[4] Hooks bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora elefante. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: 2021.