A terra dá, a terra quer (2023), livro do pensador e ativista Antônio Bispo do Santos, mais conhecido por Nêgo Bispo, apresenta uma conjunção rara entre sabedoria e informação. Trata-se de um livro-testemunho que só um narrador que conhece largamente sua aldeia poderia trazer à luz. Narrar, como queria o filósofo Walter Benjamin, implica ter a um só tempo a sapiência e a capacidade de transmiti-la; implica assumir o papel de guardião da memória coletiva e ser o elo entre gerações. Mas dizer isso ainda é dizer pouco: essa experiência, essa sabedoria ancestral, Bispo equilibra com o conhecimento que adquiriu em suas vivências fora da aldeia. Em A terra dá, a terra quer, temos o testemunho vivo, biográfico e existencial, do velho griot somado à combatividade do ativista e sindicalista que rodou o mundo, conheceu o Sul Maravilha e retornou da jornada mais rico de experiências e ressabiado pelo confronto dos valores de seu povo em comparação com aqueles do mundo urbano moderno. Ainda reportando a Walter Benjamin e seu clássico estudo sobre o narrador, diríamos que a experiência existencial de Bispo permitiu-lhe somar o conhecimento local do narrador-sedentário, que conhece sua aldeia com a palma da mão, ao espírito aventureiro e cosmopolita do narrador-marinheiro, que acumulou histórias dos quatro cantos do mundo.
Dessa confluência de experiências, surgiu uma obra incomum, que deve se fixar sem demora como um ensaio de relevo para o pensamento social brasileiro. Dentro desta seara, o pensamento de Bispo ocupa um lugar sumamente singular. Em primeiro lugar, não estamos falando de um acadêmico, mas de um outsider que aprendeu do jogo da academia a ritualística básica para entrar em diálogo e questionar seu modo de produção do conhecimento, seu lugar de fala e seus resquícios colonialistas e eurocêntricos. A terra dá, a terra quer é uma obra contra-acadêmica que propõem à academia um modo distinto de lidar com os problemas e com a linguagem. Bispo reivindica a legitimidade de outro estilo e outra perspectiva de se pensar, a partir de um outro padrão de prosa – que aproxima prosa e poesia, conceito e metáfora – ritmado na oralidade e eivado de um metaforismo extraído do universo da Caatinga e do imaginário quilombola.
É impossível cindir, no trabalho de Antônio Bispo, forma e conteúdo. Em seu importante trabalho anterior – Colonização, Quilombos: modos e significações, de 2015 – o narrador e o postulante a acadêmico ainda disputavam, e isso dava à obra um evidente desequilíbrio de estilo. Citações e notas de rodapé, aqui e ali, se chocavam com os momentos de prosa poética calcada na oralidade. Em A terra dá, a terra quer, oito anos depois, essa tensão foi resolvida: os planos de expressão e de conteúdo, aqui, se enlaçam fraternamente, fazendo do livro uma peça de genuíno valor literário. Símiles, metáforas, frases paralelísticas, máximas da sabedoria popular, expressões da oralidade piauiense, neologismos e tiradas humorísticas não são meros adornos que embelezam o estilo da obra; são, antes, a expressão autêntica do modus vivendi de onde o autor extrai sua sabedoria.
Em A terra dá, a terra quer, temos o testemunho vivo, biográfico e existencial, do velho griot somado à combatividade do ativista e sindicalista que rodou o mundo, conheceu o Sul Maravilha e retornou da jornada mais rico de experiências e ressabiado pelo confronto dos valores.
Bispo tomou, a meu ver, uma decisão sábia: elidiu a citação. Há, em todo texto, apenas uma citação de livro, e esta é com o fim de corroborar um dado estatístico. Ou seja: no conflito entre o narrador e o postulante a acadêmico, venceu o narrador. Nêgo Bispo afirma sua ciência calcada na sabedoria do seu povo e não na erudição. Assim, ele dirá no parágrafo de abertura: “Nos primeiros passos da minha vida, os mais velhos me orientaram a ouvir os cantos dos pássaros e os chiados da mata. Compreendo o ambiente onde dei os meus primeiros passos como uma das bases de lançamento da minha trajetória” (p. 1). A voz dos mais velhos guia a feitura de A terra dá, a terra quer. E daí vem um de seus pontos mais interessantes, que enfileiram o nome de Bispo ao lado dos de Davi Kopenawa e Ailton Krenak, entre outros: o pensamento social brasileiro está produzindo uma voz que vem do meio quilombola, uma voz testemunhal de uma ciência que, em nossa tradição, foi ora apagada ora falada por outrem. O testemunho existencial de Nêgo Bispo faz com que ele drible sem dificuldades ciladas como a folclorização, a exotização e o autovitimismo, ao tratar do povo quilombola. Da mesma forma, seu discurso, embora com picos de crítica acerba, não é um discurso ressentido.
Estamos falando de um outsider que aprendeu do jogo da academia a ritualística básica para entrar em diálogo e questionar seu modo de produção do conhecimento, seu lugar de fala e seus resquícios colonialistas e eurocêntricos. A terra dá, a terra quer é uma obra contra-acadêmica.
O fato de A terra dá, a terra quer ser um ensaio de tom poético, vindo de fora da academia universitária e sem remissões bibliográficas, pode induzir a se pensar que se trata de um mero relato de experiência ou de um exercício de pensamento naïve. Mas mesmo o maior dos cínicos que leia a obra com atenção logo perceberá que jaz, sob a forma livre e poética do ensaio, camadas e camadas de saberes acadêmicos que o autor, pela escolha formal que fez, teve de deixar subentendido, deixando o trabalho ocioso de catar referências para algum acadêmico desocupado que precise rechear o seu currículo lattes. Os ecos e confluências – termo bem ao gosto do autor – são muitos, e destes é possível destacar o pensamento social brasileiro, a crítica da razão instrumental da Escola de Frankfurt, a crítica ao colonialismo de Franzt Fanon e Aimé Césaire, os estudos pós-coloniais, a ecologia profunda, a Hipótese Gaia de James Lovelock e o ecofeminismo de Vandana Shiva. Insisto aqui que, ao me referir a estas fontes da cultura escrita acadêmica, falo de confluência e não de influência: primeiro porque me falta prova material que Antônio Bispo teve contato de leitura com todo este universo de autores; e segundo porque, embora eu não espere provar neste breve texto, vislumbro no autor mais que um mero comentador de fontes anteriores a ele.
A que me refiro ao assinalar mais que um mero comentador? Quero ressaltar aqui o evidente mérito do autor de ser um criador de conceitos, mister da prática filosófica segundo Gilles Deleuze. Biointeração, confluência, transfluência, cosmofobia são termos que redescrevem – no sentido que Richard Rorty dá ao termo – a nossa percepção da realidade. Este, por sinal, é para mim um dos méritos maiores de Bispo: dá-nos a sensação que é possível vermos por outro ângulo, que o radical às vezes é voltar ao simples, que os preconceitos iluministas ainda nos moldam, que o saber tradicional ainda não é de todo do nosso conhecimento, pois o recebemos emoldurado no exotismo, na simplificação banal, que nos fazia sentir uma falsa nostalgia ou nos provocava um riso de condolência.
Numa época que decretou o fim de tudo e sentenciou a falência da crítica, é alentador saber que esta ainda é um recurso vigente; o objeto da crítica pode não mudar mas a perspectiva, o lugar de fala daquele que critica faz toda diferença, pois ainda não conhecemos o suficiente a história dos derrotados. Eventos como a colonização e a escravidão não apenas reverberam ainda hoje na nossa sociedade, como ainda têm camadas pouco exploradas que só os oprimidos podem escavar. Daí uma das importâncias capitais das falas de Bispo, Krenak, etc. Eles trazem um estilo de pensar e um ângulo distinto de revisitar o já conhecido. A democracia precisa dessas vozes para se fortalecer, fora que elas podem ser o combustível para nos repensarmos enquanto povo.
Essa potência da redescrição através da produção de novos conceitos é, inclusive, objeto de reflexão de Bispo, logo no primeiro capítulo do livro. O trecho é longo mas vale a citação:
“Certa vez, fui questionado por um pesquisador de Cabo Verde: ‘Como podemos contracolonizar falando a língua do inimigo?’. E respondi: ‘Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las’. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento.
Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização… e assim por diante. Ele entendeu esse jogo de palavras: ‘Você tem toda a razão! Vamos botar mais palavras dentro da língua portuguesa. E vamos botar palavras que os próprios eurocolonizadores não têm coragem de falar!’
Por que o povo da favela fala gíria? Preenchem a língua portuguesa com palavras potentes que o próprio colonizador não entende. Enchem a língua como quem enche uma linguiça. E, assim, falam português na frente do inimigo sem que ele entenda. A favela adestrou a língua, a enfeitiçou. Temos que enfeitiçar a língua”. (p. 3-4).
O autor irá entender humanismo como um produto do nosso domínio e afastamento da natureza. O humanismo é uma espécie de religião perversa que, ao entronizar o homem, chancela a destruição do meio ambiente e rebaixa o valor das vidas não humanas.
Bispo denomina esta prática de redescrição de “guerra das denominações”. Segundo o nominalismo radical de Michel Foucault, os conceitos ou discursos produzem a realidade. Neste sentido, Nêgo Bispo, produzindo conceitos novos, quer que descubramos novas realidades – ou, pelo menos, que enxerguemos âmbitos da realidade antes imperceptíveis. O autor piauiense, assim, não faz a crítica esgotar em si mesmo: a ela seguem proposições, ideias para adiar o fim do mundo, como diria Ailton Krenak.
Há na estratégia escrita de Antônio Bispo um movimento pendular, quase diria dialético, entre relato pessoal e argumentação: o relato aponta o modelo viável, sustável, recebido da sabedoria acumulada pelo povo quilombola; o argumento racionaliza o relato e critica o modelo que ele denomina de eurocristão monoteísta. Se Euclides da Cunha viu que havia dois Brasis, o do litoral e o do sertão, Bispo também vislumbra dois Brasis – mas sua dicotomia é outra: a do eurocristão monoteísta versus os povos tradicionais politeístas. Desta dicotomia Bispo extrairá modos distintos de comercializar, habitar, festejar, produzir arte, organizar o território, praticar a agricultura e, sobretudo, se relacionar com a natureza. Nosso país é fruto dessas forças que tensionam.
O Brasil eurocristão monoteísta, vitorioso, apresenta três traços (não únicos) que podemos destacar: é colonialista, é humanista e é cosmofóbico. Tais traços se interpenetram e são interdependentes. Junto com outros elementos, eles foram o cimento civilizacional que formou o Brasil, segundo Bispo. O colonialismo, para Bispo, é uma prática continua que perdura até hoje. Colonizar constitui uma prática de adestramento, que o autor revela ter compreendido na lida com os bois; segundo ele, “tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta” (p. 2). A colonização, como o adestramento, pode ser violento ou sutil: “Há adestradores que castigam e adestradores que dão comida para viciar, mas todos são adestradores. E todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação” (p. 2).
Para Bispo, tanto direita quanto esquerda abraçam um modelo de racionalidade e desenvolvimento que instrumentaliza a natureza e, mais acentuadamente na direita, desconsidera os saberes tradicionais. O Estado moderno brasileiro é colonialista, independente da vertente política que esteja no poder.
Quanto ao humanismo, o autor irá entendê-lo como um produto do nosso domínio e afastamento da natureza. O humanismo é uma espécie de religião perversa que, ao entronizar o homem, chancela a destruição do meio ambiente e rebaixa o valor das vidas não humanas. É interessante, neste sentido, a interpretação do humanismo que Nêgo Bispo irá retirar do mito cristão do pecado original: “A humanidade se desconectou da natureza exatamente por ter cometido o pecado original. Seu castigo foi se afastar da natureza. Por isso Adão foi expulso do Jardim do Éden e o humanismo passou a ser um sistema, um reino desconectado do reino animal. Dentro do reino vegetal, todos os vegetais cabem, dentro do reino mineral, todos os minerais cabem. Mas dentro do reino animal não cabem os humanos. Os humanos não se sentem como entes do ser animal” (p. 8-9).
O último ponto me parece o mais interessante e mais original: o conceito para o qual o autor cunha a palavra cosmofobia. Por esta se entende o medo que o eurocristão monoteísta tem do mundo não humano, resultante de nosso deliberado afastado e dessacralização da natureza. Parece que não nos integramos mais no mundo, estamos dele separado, e só o restituímos através de sua subjugação. Neste ponto, o pensamento de Bispo convergente com o do filósofo paulista Vicente Ferreira da Silva, para quem o cristianismo, religião humanista por excelência, desmitificou a natureza ao entronizar o homem: a natureza, perdendo sua sacralidade, vira meramente fonte de matéria-prima para usufruto do homem. Dirá Antônio Bispo: “A cosmofobia é o medo, é uma doença que não tem cura, apenas imunidade. E qual é a imunização que nos protege da cosmofobia? A contracolonização. Ou seja, o politeísmo, porque a cosmofobia é germinada dentro do monoteísmo. Se deixamos o monoteísmo e adentramos o politeísmo, nos imunizamos. No mundo politeísta não existe pecado original, ninguém foi expulso do Jardim do Éden, ninguém tem memória de terror. Os deuses e as deusas são muitos e não temos medo de falar com eles” (p. 9). Uma vez desconectado da natureza, transformando-a em mero recurso, “a cosmofobia é responsável por esse sistema cruel de armazenamento, de desconexão, de expropriação e de extração desnecessária. […] O desperdício é um resultado da cosmofobia. A cosmofobia é a necessidade de desenvolver, de desconectar, de afastar-se da originalidade. A cosmofobia é a mesma coisa que o pecado original. E tudo o que é original assusta o eurocristão monoteísta” (p. 14).
Antônio Bispo nos faz pensar sobre o que perdemos, enquanto civilização, quando abandonamos os saberes dos povos tradicionais. Da mesma forma, põe à descoberta uma pluralidade de modos de vida que nos faz pensar quão simplistas, para não dizer perversos, são os discursos que querem nos convencer da unidade nacional.
Do início ao fim, A terra dá, a terra quer é pautada na comparação. Cada capítulo põe em tela uma dimensão problemática de nossa realidade e as posições dos povos tradicionais politeístas são postas em confronto com o modelo eurocristão monoteísta vigente. Interessante notar que Bispo não identifica o eurocristão monoteísta com a chamada direita, ou mesmo a extrema direita. O modelo eurocristão monoteísta vige na prática política tanto na esquerda como na direita – mesmo que em graus distintos – já que tanto direita quanto esquerda abraçam um modelo de racionalidade e desenvolvimento cosmofóbicos e colonialistas, que instrumentaliza a natureza, menospreza a biodiversidade e, mais acentuadamente na direita, desconsidera os saberes tradicionais. O Estado moderno brasileiro é, em sua base, colonialista, independente da vertente política que esteja no poder: “Na prática, não há grande diferença entre gestões de esquerda e de direita. O Estado é um ambiente colonialista. Um ambiente colonialista e abstrato. […]. Ser colonialista é como ser adestrador de bois. Qualquer governo de um Estado colonialista será um governo colonialista. É preciso contracolonizar a estrutura organizativa” (p. 47).
Antônio Bispo nos faz pensar sobre o que perdemos, enquanto civilização, quando abandonamos, por preconceito ou desinformação, os saberes dos povos tradicionais. Da mesma forma, põe à descoberta uma pluralidade de modos de vida que nos faz pensar quão prejudiciais e simplistas, para não dizer perversos, são os discursos que querem nos convencer da unidade nacional e da suposta democracia racial que vige entre nós. Sobretudo, põe aos nossos olhos que a solução para problemas seculares de nossa sociedade, que se tornaram mais urgentes hoje, diante das catástrofes do Antropoceno, já tinham sido resolvidos ou remediados com eficácia por nossas comunidades tradicionais. Quilombolas e indígenas constituíram um modo de habitar, de comercializar, de celebrar e de produzir alimentos que permitiam um equilíbrio entre a população humana e a diversidade da natureza. Mesmo na caça, na pesca e na prática das queimadas havia uma ciência, uma racionalidade que franqueava a menor destruição possível dos bens da natureza e a manutenção da biodiversidade. Torna-se claro que a decantada pobreza e atraso dos povos tracionais – refletida na literatura, no cinema e no pensamento social – muitas vezes (não digo sempre) nasceu do preconceito eurocristão e de sua visada colonialista.
A concepção de pobreza de Bispo conflui com Walter Benjamin. Para o pensador alemão, a modernidade industrial e capitalista resultou em uma perda da experiência autêntica. A pobreza não é apenas entendida em termos econômicos, mas como privação da capacidade de vivenciar experiências genuínas, de conexão com o mundo, compartilhamento de histórias e tradições.
A concepção de pobreza que Bispo extrai em suas reflexões conflui com a concepção do filósofo Walter Benjamin. Segundo o pensador alemão, a modernidade industrial e capitalista resultou em uma perda da experiência autêntica. A pobreza, assim, não é apenas entendida em termos econômicos, mas sobretudo como uma privação da capacidade de vivenciar experiências genuínas, de conexão com o mundo, de compartilhamento de histórias e tradições. Logo, uma consequência da alienação e da fragmentação social causadas pelo avanço do capitalismo. Bispo diria: a pobreza é uma consequência da desconexão do homem com a natureza causada pela pregaria humanista e sua indisfarçável cosmofobia. Pobre, portanto, é o citadino que vive numa casa ou apartamento minúsculos, sem quintal, sem conexão com a natureza, e cujas relações de troca com outras pessoas são sistematicamente mediadas pelo dinheiro. “A cidade”, diz Bispo, “é um território artificializado, humanizado. A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Os humanos excluíram todas as possibilidades de outras vidas na cidade. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Se existe, é graças à força do orgânico, não porque os humanos queiram” (p. 8). Este indivíduo citadino fetichiza a mercadoria que ele não sabe produzir nem quem produziu, consome uma cultura e uma arte como receptor passivo e substitui o ato de compartilhar pelo de comprar – porque só se compartilha numa vida em comunidade, e este indivíduo encontra-se atomizado.
O eurocristão não enxerga a natureza como aliada: ela torna-se obstáculo, e só pode ser humanizada se for remodelada (por exemplo, substituir plantas nativas por eucaliptos) ou substituída (derrubar a fauna do cerrado no sul do Piauí para plantar soja).
Um exemplo entre mil: as residências do programa “Minha casa, minha vida” são padronizadas em quase todo Brasil, não levam em conta a prática arquitetônica local nem aproveitam o material nativo:
“Se o quintal é essencial no quilombo, qual é a parte mais necessária de uma casa na favela? É a laje. A primeira laje é para o primeiro filho ou primeira filha que se casa, e a segunda laje é para fazer as festas. O que fez, porém, o Minha Casa, Minha Vida? Chegou às favelas e tirou as lajes das casas, sua parte mais necessária. Veio para os quilombos e construiu casas sem quintal, tirou o quintal das casas, sua parte mais necessária. O Minha Casa, Minha Vida é o programa mais colonialista nas políticas de habitação” (p. 37).
A morte precoce de Antônio Bispo dos Santos tolhe o Brasil de uma das vozes mais ativas e importantes, capaz de ler nossos problemas sociais seculares por ângulos pouco visitados. A terra dá, a terra quer candidata-se desde já a se tornar um clássico do pensamento social brasileiro.
Se há um remendo ou admoestação que eu possa fazer à crítica e ao programa de reforma político-social de Bispo em A terra dá, a terra quer é a projeção, aqui e ali, do mito do eldorado sobre sua avaliação do modo de vida dos povos tradicionais; embora não tenha autoridade biográfica para contestar, a harmonia reinante entre os povos quilombolas me pareceu pintada em cores muito fortes. A razão dessa mitificação talvez seja apenas sublinhar com mais vigor a dicotomia entre o Brasil eurocristão monoteísta e o Brasil dos povos tradicionais politeístas.
A morte precoce de Antônio Bispo dos Santos tolhe o Brasil de uma das vozes mais ativas e importantes, capaz de ler nossos problemas sociais seculares por ângulos pouco visitados. A terra dá, a terra quer, pela qualidade do seu estilo, pela argúcia da crítica, pela sensatez de suas propostas, candidata-se desde já a se tornar um clássico do pensamento social brasileiro. É lamentável ver a partida de um pensador sumamente importante para se repensar o Brasil no momento em que ele atinge a maturidade intelectual e estilística. Como consolo, esperamos que alguma editora possa reunir, em breve, as entrevistas em que Nêgo Bispo, com força didática e encanto verbal, nos brindava com seu pensamento in progress, cheio de verve.
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Wanderson Lima é escritor e professor do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade Estadual do Piauí. Recentemente publicou, em coautoria com Douglas de Sousa, a obra As crises do contemporâneo no audiovisual (Editora da Uema, 2023).