A nossa ínfima camada dominante sempre se alimentou de mitos, de superstições fantasiosas criadas e difundidas ao longo do tempo por ideólogos que têm procurado fornecer à oligarquia argumentos para ocultar, disfarçar e mascarar o elemento que de fato constitui a espinha dorsal da formação histórica da sociedade brasileira: o ódio de classe.

Uma série de mitos culturais foram produzidos e disseminados por essa produçào ideológica para que a “elite” tivesse um discurso pronto capaz de disfarçar suas práticas autênticas, que se verificam no dia a dia da sociedade brasileira na forma de violência simbólica e violência física contra tudo e contra todas as pessoas que não pertencem a essa pequena camada de privilegiados.

Que mitos são esses?

O mito da “democracia racial”, o mito da “tolerância” do povo brasileiro, da “convivência harmoniosa” das diferenças, da “alegria de viver” da nossa gente, da “hospitalidade”, da “humildade”, do “milagre linguístico”, porque todo mundo aqui fala “uma só língua” e todo mundo “se entende”, da “índole pacífica” do nosso povo, herdeiro da “assimilação amorosa” praticada pelos portugueses…

As manifestações contra o governo da presidenta Dilma Rousseff foram promovidas por essa mesma oligarquia, insufladas por empresas de comunicação acintosamente mentirosas e que apoiaram alegremente o regime militar, estimuladas por membros do poder judiciário descaradamente partidarizados e por parlamentares representantes do que há de mais abjeto e criminoso na sociedade.

Essas manifestações têm servido ao menos para uma coisa positiva: desmascarar aqueles mitos e expor, nua e crua, a carranca ideológica da nossa oligarquia dominante, que é, repito, o ódio de classe.

Quem saiu às ruas para pedir fuzilamento sumário de outras pessoas, para exigir a volta da ditadura militar, para se queixar da ascensão social das pessoas pobres, para sugerir que os negros fossem enviados de volta para a África… Quem, no supra-sumo do deboche e do descaramento, tomou champanhe e comeu filé mignon na avenida Paulista ou em Copacabana sob o olhar das babás negras uniformizadas… Quem não teve o mínimo resíduo de escrúpulos para expor semelhantes ideias e praticar tais atos diante das câmeras e ainda se orgulha de divulgá-las nas redes sociais… Essas pessoas têm ajudado a sepultar aqueles mitos, tão zelosamente construídos pelos nossos mais brilhantes ideólogos, artífices de uma retórica que nunca teve nenhuma base objetiva, empírica, a não ser o desejo das nossas oligarquias de se conservar no poder e controlar e subjugar, com violência simbólica (além da violência física da prisão arbitrária, do genocídio e da tortura), a ampla maioria da população.

A oligarquia branca escravocrata odeia falar como o “povão”, como o resto da “gentalha”, e por isso se desespera em aprender a língua mais certa possível. Odeia ver filhas e filhos de pessoas pobres “invadindo” as universidades públicas, até há pouco tempo espaço reservado à prole dos “bem nascidos”. Odeia ter de dividir os aeroportos e aviões com suas empregadas domésticas, com seus porteiros, suas faxineiras, com essa gente pobre, preta e mestiça que deixa os aeroportos parecidos com “rodoviárias”. Odeia ter de cumprir os direitos trabalhistas das domésticas, que sempre foram tratadas como quase escravas (e, em certas regiões, como escravas de fato). Odeia (e manda matar) os milhões de camponesas e camponeses sem terras que lutam por seus direitos ao trabalho digno e se organizam em movimentos sociais reivindicatórios.

O ódio de classe é o que a classe dominante brasileira conservou mais preciosamente de sua herança escravocrata e genocida. Ela teve de engolir a independência, a libertação dos escravos, a república, a crescente democratização dos bens sociais e culturais, o próprio sistema político democrático, que ela agora se empenha bravamente em destruir, uma democracia que não tem sequer 30 anos completos.

A sociedade brasileira é intrinsecamente desigual, injusta e violenta. E violenta também nos próprios mitos que nela circulam sobre a “tolerância”, a “democracia racial”, a “milagrosa unidade linguística do Brasil” e outras formas de ocultar “a experiência de violência e dor [que] se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação”, como escreveram Lília Schwarcz e Heloísa Starling em Brasil: uma biografia. A violência é a marca registrada da nossa história passada e presente. Só a desobediência civil e a resistência podem impedir que ela venha a ser também a marca registrada do nosso futuro.

*Marcos Bagno é professor, doutor em filologia, linguista e escritor.

(Publicado na edição#26, agosto/setembro de 2016)