Onde
estampa de quintal desalinhado
soluços de musgo
conta-gotas latas pedaços de arame
fetos de sabe-se lá que plantas
faces de tábua ressecadas pregos retorcidos
origamis de tempo
a clamar por uma existência de pétala
todo seu poder de ser e desistir encontra-se ali
na faísca do gume de um caco de vidro verde
no crepitar das rodas de um triciclo manco
sobre folhas e gravetos atemporais
o sol um olho de cristal sangrado
roído pelas marés
***
Dear
se estiver duro sem capa ou guarda-chuva
proteja meu diário de inverno sob a camisa
tome um rabo de galo depois de uma cerveja
de pé na porta daquele boteco de placa banguela
enquanto a chuva estala no asfalto
a exalar o morno odor que tomará a noite
só depois mergulhe no escuro
prontinho para ver o adieu au langage
***
Imaginar
a febre discretamente furiosa do Príncipe
ao escrever a Carta a Stalingrado;
a que derrapou na mente de Torquato
um minuto antes do gás absorvê-lo por completo;
Emily Dickinson de avental com babados
em sua labuta maciça paralela à ourivesaria;
Bandeira em ébrios passinhos de foxtrote
louvando o próprio eco no beco da madrugada;
as asas de lava de Ana Cristina zumbindo no ar
e se espalhando sobre as ruínas de Copacabana;
a desolação infantil de Oswald diante da peçonha
acadêmica que não engoliu sua verve ensolarada;
o teor de cólera no suor de Hilda toureando
com o que nos habituamos a chamar vulgarmente
Eternidade
***
zero de conduta
flerta comigo certa fúria
ao ver a língua a alisar brocados
tíques burgueses
tatibitates
vagos orvalhos que me ofendem
luta sem volutas
ou consequências graves
deste fluxo de ritmos
conheço músculos e achaques
em minha lírica deslavada
cabem salseiro e porrada
***
Ledusha é poeta e tradutora, identificada com os autores da poesia marginal carioca. Tem poemas musicados por Cazuza, Bebel Gilberto, Fernanda Porto e Francis Hime, entre outros. Publicou os livros Risco no disco, Finesse & Fissura, 40 Graus, Exercícios de levitação e Notícias da Ilha. Os poemas publicados aqui fazem parte do livro mais recente, Lua na jaula (Editora Todavia), semifinalista do prêmio Oceanos, dos mais importantes da língua portuguesa.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.
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