Gramática da Ira
havia lama na rua
e de quando em quando um corpo cadáver encalhado na vala
o espetáculo que a história nos oferece
restos e gestos do sim
alimentos recicláveis
bonecas sem pernas carros sem rodas
arqueólogo das sobras
a miséria
o não
pretinho maltrapilho
com as manchas sujas da vida
sem saber nem bem por que
nas suturas das fraturas
cresci
eu na pilha
você na mira
não vê o que foi feito de mim
pena sangrenta Gramática da Ira
meu rabisco mortal vai foder sua lira
Cores
Entre escárnios
Já fui chamado negro sujo
Entre afagos
Já disseram que não sou tão preto
Que sou mestiço, escuro, cor de azeitona, acobreado
As dezenas de palavras que me apagam
Eu sou breu da cor da noite
Eu sou piche da cor do asfalto
Entre escárnios
Já fui chamado branca de neve
Entre afagos
Já disseram que sou um deus negro
Que sou marrom cor de café achocolatado
Todas as cores que contornam os limites
Eu sou noite ébano azeviche
Eu sou lápis risco preto sou grafite
Entre escárnios
Já fui chamado de negão
Entre afagos
Já disseram que a minha alma é branca
Cores do racismo do escravismo e do degredo
Da inegável negação que me revestem
Eu sou carvão pano de guarda-chuva
Ausência das cores que não me fazem sentido
Entre escárnios
Já fui chamado africano
Entre afagos
Já disseram que sou um belo cabo verde
(Publicado na Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)