sem isso, nada disso 

nem eu, nem você, nem ptolomeu 

nem a música das noites em perpétuo movimento 

nem os arrepios de pele, nem o estrondo do raio 

nem o som do vento 

nem a rebelião dos beats, nem a caverna de platão 

a caravana, a bonanza, o uivo do cão 

a voz aveludada de chet baker 

a orelha cortada de van gogh 

os versos mais loucos de leminski 

a revolta dos marinheiros no porto de helsinki 

o soldado russo morrendo de frio 

os labirintos, espelhos e tigres de borges 

as pilhas de corpos nos ocasos de treblinka 

os lábios entreabertos tocando de leve os mamilos 

os braços arrancados da vênus de milo 

a revolução cubana, os riffs de keith richards 

o passo displicente da garota empurrando um carrinho de supermercado 

as bombas caindo sobre dresden 

a caravela ao léu no mar revolto 

o último olhar do poderoso rei deposto 

a dança mágica do velho tuareg 

a cabala, o kabuki, o astrolábio 

os engenhos da geometria celeste 

a lágrima no olho do pai diante do jazigo da filha 

a noite de são bartolomeu 

os sinos repicando ao norte do himalaia 

a beleza da menina deslizando na praia 

o monge em zazen, os círios de belém 

o ardente segredo de diadorim 

o corpo profanado da heroína 

o tabaco, o antidepressivo, as ruínas de hiroshima 

nem as carícias mais íntimas 

nem kafka, nem zappa, nem zapata 

nem a lembrança do amor que se perdeu 

nem cristo, nem cruz, nem deus, nem judeus 

 

sem isso, nem isso 

esse poema 

: o fim e o início 

(A voz do ventríloquo, 2012, pág. 101, Edith) 

Ademir Assunção é Jornalista e Escritor. Nasceu em Araraquara (SP), em 1961. Publicou, entre outros, LSD Nô (poesia, 1994), A Máquina Peluda (prosa, 1997) e a novela satírica Adorável Criatura Frankenstein (2003). A Voz do Ventríloquo (2012) venceu o Prêmio Jabuti 2013 na categoria Poesia.

Publicado na Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018.