A estrela
mudei dali vai fazer um ano
e agora quase não a vejo mais
discreto milagre elétrico que acende a noite
na torre da igrejinha católica perto da padaria
mas é um alívio saber que ela continua lá
tímida como sua fraca luz azulada
luz do mundo assombrando a penumbra perene
brilhando para os cachorros abandonados
para as garotas voltando da aula noturna
depois de um dia inteiro nas galés
para os casais conversando em voz baixa
para os crentes de bíblia na mão e pecado na cabeça
para os zumbis de crack amontoados na calçada
partilhando sua ceia de álcool barato
esta noite ela se acendeu mais uma vez
não tocou o coração da usura
não alterou o humor do mercado
nem ofuscou a fama do famoso
foi quase um pedido de desculpas
por fazer tão pouco
para manter o mundo de pé
(*) do livro “manual de pintura rupestre”.
7Letras, 2015
Promessas
certos poemas são como uma promessa
feita a alguém
em seu leito de morte
com a diferença de que
esse alguém é você mesmo
a decisão é sua
pode-se seguir vivendo
como se nada tivesse acontecido
isso significa morrer de uma vez por todas
quer sua foto esteja na capa
de todas as revistas de vida saudável
ou nos rótulos dos uísques
mais letais do mundo
a segunda opção
é fazer um esforço sincero
para se portar à altura do que
está escrito naquelas linhas
o que pode levar algum tempo
custar algum choro
e ranger de dentes
mas vai acabar acontecendo
e isso vai deixar você vivo
quem sabe, para sempre
se não é capaz de
enfrentar esse dilema,
é melhor continuar escrevendo
poemas que exigem de você
apenas habilidade com as palavras
mas a habilidade com as cartas
não faz de um jogador
um mágico
(*) do inédito “Anotações de um homem-multidão” (2018)
Fernando Abreu é poeta e compositor maranhense. Editou a revista de poemas Uns e Outros e publicou os livros Aliado Involuntário (2011) e O umbigo do Mundo (2003)
[Publicado na Revestrés#36 – maio-junho de 2018]