Sr. Melville abre o suporte de papelão e apoia seu centro na banqueta. A folha de papel grosso mal balança no ar morno e parado, ainda assim, ele assenta as peças de dominó nas bordas do banco para impedir que algum vento inesperado leve embora a mesa improvisada. Duas outras banquetas cercam o papelão uma de frente para outra. Na primeira, senta Sr. Melville; na segunda, seu adversário. O opositor não tem rosto, é fluido. Todas as sextas são assim. Desde 1800. No primeiro jogo, o cenário foi armado na beira da praia vazia, os jogadores protegiam os olhos da areia e as peças eram movidas no ritmo do mar. Passados alguns anos, a área foi aterrada e a praia recuou. Virou praça. O que em nada abalou Sr. Melville, que apoiava nas pedras portuguesas as banquetas e o papelão. Ruas cercaram a praça, lojas foram construídas. Sobrou só estreita calçada em forma de canaleta, espremida entre o trânsito e o comércio. Hoje, as pedras portuguesas descolam, são recoladas e descolam em infinito revezamento. Vem gente dos bueiros, dos morros, dos outros bairros, sotaques estranhos. Carros em número cada vez maior empesteiam o ar. Ambulantes disputam espaço com o dominó do Sr. Melville, que é sentido, pelos sonâmbulos transeuntes, como transtorno de menor importância. “O Sr. pode, por favor, dar licença. Moço, chega para lá um instantinho, tem criança. Pô, cara, tira essa merda do caminho. Vai jogar em casa, irmão, sai o meio da rua”. A todas essas interjeições, Sr. Melville responde: “Prefiro não”. Não é culpa minha, pensa ele, que aterraram a praia e taparam o sol e confinaram o ar. Para as sextas tem dominó, para todo o resto, prefiro não. Pessoas empurram Sr. Melville, que prefere não cair; pisam nos seus pés, que preferem não doer; derrubam o jogo no chão, mas as peças voltam. Melville é um nome difícil, tem dois eles, dobra a língua. E, para saber o nome de alguém, é preciso perguntar. O doido dominodeiro da Uruguaina é o nome mais corrente utilizado para falar daquele homem imóvel todo cheio de preferências. Os adversários, antes variados, desapareceram. Não se vê ninguém já faz um tempo. Os pisões e esbarrões ficam cada vez mais fortes. Sr. Melville afunda no piso, perde os pés, tem a cintura cercada pelas pedras portuguesas. Os braços, ainda soltos, preferem não protestar e, mesmo atrofiados pelo tempo, movem as peças do dominó. A cada dia Sr. Melville é mais empurrado e enfiado no chão quente. Derrete. Ontem mesmo, seu João da banquinha, que vende capas de celulares a preços compatíveis com o roubo de carga, passou correndo e chutou o queixo do doido dominodeiro enterrado na calçada. João sentiu o tranco, voltou para ver o que era e viu
solta uma pedra portuguesa. Diz que lá na Uruguaiana as meninas não conseguem respirar.

Júlia Alexim é advogada criminalista, mestranda em Memória social pela Unirio, Especialista em ciências jurídico-políticas pela universidade de Lisboa e Graduada em direito pela PUC-Rio. 

***

Para participar da seção Occupy Reves envie e-mail para: ocuperevestres@gmail.com
Pode ser poesia, conto, foto, vídeo, ilustração … Envie junto uma breve descrição sua. O material publicado é selecionado pelo conselho editorial de Revestrés. É uma alegria compartilhar o que você produz!

***

Novas assinaturas de Revestrés estão temporariamente suspensas, devido a pandemia de Covid.

A Revestrés#45 pode ser baixada gratuitamente:

CLIQUE BAIXE O PDF (link para pdf) OU LEIA ONLINE (link issuu).

A Revestrés#46 pode ser baixada gratuitamente:

https://revistarevestres.com.br/edicaoonline/ (pdf para baixar)

https://issuu.com/revestresdigital/docs/revestres46_web (para ler online)

***

💰 Continuamos com nossa campanha no Catarse.
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente: catarse.me/apoierevestres