Para Valentim.

Eu estava sentada no chão. Na sala, pouca coisa havia restado. O sofá com as malas em cima ia para doação. O material de limpeza havia resistido no canto do cômodo porque pensei que, uma última faxina antes de entregar as chaves do apartamento na imobiliária, seria uma boa ideia. Depois daquela manhã, em que tiramos os móveis pra colocar no caminhão do frete, percebi marcas de pneu de bicicleta e patas de gato em todas as paredes. E uma mancha de óleo enorme fazia parecer que o fogão tinha ido e deixado sua sombra colada ao chão da cozinha.

 

Fazer uma mudança mal tendo começado uma vida sozinha não era bem o esperado para o ano de 2020. Após dois meses de confinamento, passeei com o moço do frete até o destino das minhas tralhas. No caminhão, eu, ele e seu filho. Avenidas lotadas, pessoas de máscara nas mais variadas funções. Seu Reginaldo havia me mandado mensagem na noite anterior avisando que o filho nos ajudaria a carregar o que fosse mais pesado. No percurso, tentei quebrar o gelo com alguma conversa, mas ambos pareciam apreensivos com a barreira sanitária que acontecia nas pontes e não demonstraram muito interesse.

O filho de seu Reginaldo e seu pai tinham os mesmos olhos e isso foi a única coisa em suas expressões que consegui captar durante a viagem. Falávamos mais alto, pra que o som atravessasse o tecido. Não sei se entenderam quando sorri de algo que haviam comentado sobre os policiais da barreira.

Mudei-me pro apartamento da rua 13 de maio com o Lucas e seus dois gatos. Tulipa e Valentim. Recém-chegados à nova casa, discutíamos a cor das paredes da sala e conversávamos sobre móveis e eletrodomésticos que ainda não tínhamos – quase todos. Lucas foi embora e não tivemos uma mesa de jantar. Escolhemos amarelo e cinza e ele queria desenhar umas bolas em alguma parede.

Talvez, se tivéssemos pintado, a sombra do fogão não teria me assustado quando voltei aquela noite ao apartamento vazio. Na vistoria, imaginei-me tendo que explicar que, certa vez, Tulipa estava no cio e destravou o basculante so-zi-nha, pra fugir pro telhado com outros gatos. Acho que não irão me perguntar essas coisas, mas o rastro confuso e desesperado que as patas dela deixaram logo abaixo da abertura de vidro me fizeram revisitar 2019. O ano em que saí da casa dos meus pais. E que tremi de medo ao tomar qualquer decisão alugando um espaço. Sorte é que Lucas, Valentim e Tulipa estavam comigo.

Pouco antes da pandemia, conversei com um amigo sobre nosso gosto em comum de colecionar cadernos, sem utilizá-los. Ele desenha, eu escrevo; e nossos cadernos permanecem em branco na prateleira. Algo nos impede de começar e nos faz achar que o branco é okay. O branco do apartamento parecia okay até o dia da mudança. Agora, ele parecia um insulto. Por que não pintamos tudo de amarelo e cinza e fizemos as bolas que o Lucas havia sugerido?

Por escolher não colocar uma cor, deixei a que veio com as chaves que em breve devolveria. Mas ela não era o mesmo branco que havíamos encontrado em junho do ano passado. Teve a vez em que derramei óleo e tentei limpar com o lado verde da esponja e a parede descascou. A bicicleta do Lucas ficou sem tripé por um tempo e vivia encostada na parede. Quando ele saiu em definitivo, pus um móvel na vaga, só pra enganar. Mesmo assim, o branco resistia. Em cada canto do lugar, como se não tivéssemos nada de interessante sequer para pendurar. Nossos vizinhos não podem reclamar de já terem ouvido uma furadeira ou um martelo insistente no apartamento 11, logo às 8 da manhã.

Duas hipóteses me são proeminentes: a de que tínhamos medo de começar a fazer modificações (e esta, certamente, gera um outro debate acerca de estarmos construindo também um espaço conjunto); e a de que algo nos dizia que logo, logo, sairíamos dali, então por que deixar a nossa cara?

Na analogia dos cadernos, eu e meu amigo encontramos sempre um caderno novo e atraente, que vai nos fazer sonhar com ele por um tempo. Afeiçoamo-nos, trocamos promessas, dividimos o travesseiro entre pensamentos, mas ele sempre nos abandona antes do café. Vai para a prateleira como se não merecêssemos deixar algo de nós ali.

Não conheci a boca por detrás da máscara de seu Reginaldo. Ele também não pôde tirar piada do piercing que tenho no nariz e que costumava ser um alvo constante. Os amigos que recebemos no apartamento 11 não conheceram as paredes amarelas com cinza – ou cinzas com amarelo? E até hoje não sei como eram as bolas que o Lucas imaginou na parte em que ficava a nossa geladeira.

Rodo o apartamento vazio e me despeço de uma pá de histórias. A ordem é ficar em casa, mas tendo que sair, prometo olhar o que considero branco de outra forma. E não subestimar os olhares que me cruzam sublinhados pelo novo acessório exigido na composição do outfit pandêmico. Quem sabe, surjam diante de mim, divertidos relatos de gatas no cio e bicicletas que ficaram sem o tripé.

Na dúvida, prometo também que vou rir bem alto. Só enquanto a gente se acostuma com o branco okay nas caras de todo o mundo.

Amina Andrade estuda Letras. Gosta de mudar o cabelo, pedalar e não come animais. amina.andrade@hotmail.com

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