Sou um homem com uma extraordinária capacidade de sentir-me à vontade e encontrar acomodação em qualquer lugar ou circunstância. Desconheço a natureza do que seja o inóspito. Só arredo de uma posição de conforto ocasionalmente encontrada se me falam com ímpeto repreensivo. 

Em festas, se me oferecem uma cadeira macia além do padrão ordinário, logo começo a ressonar, pouco importando o barulho que corre ao redor. 

Mas faço mais que isso. Deitar-me no chão também é um hábito. Faço isso em público, de preferência em salas de estar. Também tenho um impulso irresistível de querer deitar-me em salas de auditórios e salas de aula, em que o amontoado de pessoas e o ar refrigerado fazem crescer em mim essa presunção de que o chão está agradavelmente frio. 

Outra coisa de que me orgulho é que toda comida me agrada. Restos de comida não são desperdiçados quando estou por perto, ponho tudo no meu prato e como com a máxima satisfação possível. 

Que fique claro que eu também gosto do conforto tradicional. Não rejeito nem desdenho uma boa cama com lençóis brancos e perfumados, tampouco recuso a comida de um restaurante decente. Por outro lado, não posso negar que me abalou por demais a intimação que Lúcia me fez há poucos dias. 

Lúcia é a mulher com quem estou noivo. Ela disse que ou eu deixava esses meus hábitos de canis vulgaris ou não haveria casamento. 

Suspeito que essa resolução adveio da última visita que fiz à casa dos pais de Lúcia. Na ocasião, um domingo em que fui convidado para almoçar, não resisti ao sofá macio e, recolhendo as pernas e juntando as mãos, inclinei-me para o lado e deixei caírem minhas pálpebras pesadas. Nada que eu já não tivesse feito antes, é verdade. Mas Lúcia pareceu um tanto ofendida com a minha conduta. 

Penso que meu amor por Lúcia seja mais frágil do que o esperado. Penso também que essa intimação despertou algo mais em mim. 

Canis vulgaris. Gostei disso. 

Ontem à noite, quando fui à cozinha beber água, vi panos velhos e imundos sob a pia. A atração foi imediata. Sentido as pernas tremerem, sentei no chão e me arrastei até os panos. Deitei-me embaixo da pia e dormi ali mesmo. Tive um sono dos mais tranquilos. 

Hoje ainda não tomei banho, nem pretendo tomar. Mais tarde ligarei para Lúcia para pedir que venha morar comigo, desde que não se incomode com minhas pulgas e com o cheiro de urina na sala. 

Pensando bem, não me interessa uma mulher que tem carteira de motorista e CPF. 

Um cão não precisa de carteira de identidade. Os cães se conhecem pelo cheiro. Não têm que se preocupar com camas perfumadas ou restaurantes finos. 

Ao cão que não é dado raça ou um dono abastado há poucas glórias merecidas nesta vida. Será sempre bicho sem modos, caminhando à margem, posto sob o fogo do açoite diário, procurando fim sob as rodas de um carro. À porta do INSS um fim ingrato, quem sabe. 

Sou humano que não me achei como homem. Sou um cão preso em corpo de gente. Um canto quente é o que me basta. 

Daniel Ferreira, escritor.

Publicado em Revestrés#40 – março-abril de 2019.

Para enviar material para a seção Occupy, utilize o e-mail: ocuperevestres@gmail.com